Há almas de esponja, que o menor revés espreme; mas também o menor bochecho dágua basta para inchá-las.
Romero tinha uma dessas almas. Aniquilado pela ameaça que pesava sobre ele, apenas compreendeu o desígnio de Manuel pôs-se ao nível da posição criada pelos acontecimentos. Aceitou portanto o papel de noivo, com boa graça e rosto alegre.
Logo ocorreu-lhe que não estava em traje de cerimônia; e comunicou este pensamento a Maria dos Prazeres, a qual achou-lhe toda a razão, pois não concebia que um homem se casasse com roupa do diário e amarrotada.
Sabendo que sua bagagem ainda estava em Piratinim, dirigiu-se Romero à locanda, acompanhado por Manuel; enquanto Lucas ia apressar o padre coadjutor, e convidar a melhor gente da vila. A notícia do repentino casamento não produziu grande surpresa; todos achavam natural a reparação; e estimavam concorrer para a alegria da boda, que não era somente a festa da ventura, mas sobretudo a festa da honra.
Trajado a primor, D. Romero tornou à casa de Fortunata, que já estava cheia de moças e rapazes ansiosos de verem a noiva.
Esta não se fez esperar.
Catita vinha resplandecente de beleza. Coroava-lhe a fronte a auréola de júbilo celeste que devia cingir as virgens mártires expirando em um êxtase de bem-aventurança. Havia em seu rosto a expressão vaga e indefinível que resta, quando a alma se desprende da terra para remontar ao céu.
Depois que Lucas a deixara debatendo-se em uma incerteza cruel, a moça julgou compreender o sentido das últimas palavras de seu pai. Manuel queria sacrificar-se para salvá-la: ela não devia aceitar o sacrifício; mas não tinha ânimo de recusá-lo. Esse amor ardente e generoso era uma bênção que a purificava.
— Ser dele e morrer! balbuciou.
E vestiu-se com suas roupas mais garridas.
Assomando à porta com a fronte baixa, não viu nenhuma das pessoas ali reunidas na sala. Só passado o primeiro vexame, coando a medo o olhar entre os cílios, procurou Manuel; mas quem encontrou foi D. Romero que lhe ofereceu a mão sorrindo com faceirice e requebrando o talho gentil, realçado pelo rico traje.
— Señorita! dizia ele fazendo uma mesura.
A moça teve uma vertigem. Sua alma arrebatada violentamente ao corpo hirto submergiu-se em um abismo de vergonha e dor. Desde então ela não teve mais consciência de si. O chileno tomou-lhe a mão fria como gelo e a conduziu sem a mínima resistência.
Durante essa cena rápida, Manuel de pé, a um canto do aposento, parecia de todo estranho ao que passava. O olhar frio e baço, fito no chileno, era o único vínculo que prendia essa consciência à vida externa.
Mudo como uma sombra, sinistro como uma aparição, fazia lembrar o espírito satânico das lendas da média idade, esperando o momento de arrebatar ao inferno a alma do precito.
O vestido de Catita roçou-o e ele não a viu. Uma nuvem densa ocultava-lhe tudo quanto não era aquele homem, cuja passagem deixara em sua vida o rastro da fatalidade.
O acompanhamento seguiu para a matriz que regurgitava de gente. Já o sacristão acendera os círios do primeiro altar da epístola, e o coadjutor, de roquete, descia os degraus da capela-mor.
A cerimônia foi breve. No momento de pronunciar as palavras que deviam ligar para sempre sua existência à dessa moça a quem seduzira, o chileno hesitou, volvendo automaticamente a vista em torno, como se procurasse um ponto de apoio a seu espírito perplexo; mas encontrou o olhar de Manuel, e curvou a cabeça.
Momentos depois os noivos entraram na casa, que uma festa improvisada havia transformado durante a cerimônia, adornando-a com ramos de flores, palmas de coqueiros e lanternas de copos pintados.
O sol acabava de esconder-se no horizonte; flocos de vapores cor de fogo se erguiam lentamente no ar e condensavam-se na atmosfera. Os arrebóis do ocaso tinham listras rúbidas que pareciam laivos de sangue. A brisa do crepúsculo, de ordinário fresca e embalsamada com o hálito das flores, vinha impregnada de súlfur e exalava um sopro morno.
Fazendo honra ao banquete, os convidados não se apercebiam desses presságios do próximo temporal; nem ouviam os mugidos dolentes do gado carpindo o morrer do dia.
A função durou até meia-noite e foi muito divertida. D. Romero nadava em prazer; a única sombra que podia anuiar o seu horizonte, era a torva fisionomia de Canho, e esta havia desaparecido desde o começo da festa.
Já todos os convidados se despediram, repetindo ainda uma vez os parabéns, e fazendo votos pela felicidade dos noivos. A casa repousa em silêncio, apenas interrompido pelo eco da tirana, que ainda ressoa ao longe de algum peão saudoso da festa.
Catita, sentada no seu quarto com as mãos cruzadas sobre os joelhos, o busto vergado como o cálix de uma flor cheia de orvalhos, e os olhos cravados no chão, perdia-se em um pélago de dor. A mísera não sabia qual era maior vergonha e suplício para ela: se a falta passada, se a reparação tardia. Antes tinha ela o direito de desprezar o homem que abusara de sua inocência; agora esse homem era seu esposo; ela o recebera de Deus, aos pés do altar, como o companheiro de sua existência.
Entretanto Romero entregue a pensamentos muito diversos, contemplava sua noiva com volúpia. Nunca a vira tão bela, como naquela atitude de mórbida languidez, que punha em relevo os contornos suaves do talhe. Nesse momento esquecia quanto ocorrera nos últimos dias para lembrar-se unicamente que a linda moça era sua noiva.
Quando seus olhos saciaram-se da imagem sedutora, o chileno aproximou-se: um calafrio percorreu o corpo de Catita, que estremeceu sentindo em sua mão o contato dos dedos do marido.
— Querida!... murmurou Romero.
— Deixe-me! suplicou a moça.
— Não seja má! Tenha pena do que sofri nestes dias de ausência; se não me lembrasse de sua felicidade, cuida que daria ao trabalho de fugir e defender-me? Deixava que me matassem logo; mas eu sabia que não me matavam a mim unicamente! Diga, tantas saudades curtidas longe daqui não valem um beijo, um só?
Pronunciando estas palavras, o chileno cingiu com o braço o talhe da noiva, procurando estreitá-la ao peito; porém ela, estrincando o corpo como uma serpe, escapou-se daquele abraço que lhe causava horror, e refugiou-se em um canto do aposento.
— Nunca! tinha ela exclamado com veemência.
E o lábio erriçado pela ira e pelo terror, depois que arremessou essa palavra impetuosa, ficou vibrando como a lâmina sonora de um estilete percutida com força.
Essa energia e súbita resistência surpreenderam um momento ao chileno, que respondeu com um motejo.
— Por que me quer tanto mal assim, muchacha? É por que sou agora seu marido?
Catita compreendeu o sarcasmo.
— É por ser meu marido, sim, que eu lhe tenho horror. Até ontem o senhor não foi mais do que a minha desgraça: eu podia perdoar-lhe e esquecer. Hoje é a minha vergonha! Antes me queria amarrada na forca, do que unida ao mais vil dos homens.
A moça abatida com o estupor que lhe causara a presença de Romero, se tinha deixado arrastar àquele casamento; mas agora na solidão de seu aposento, ameaçada pelas carícias do ente desprezível, sua alma reagia contra o opróbrio dessa cruel situação.
— Serei tudo que você quiser, Catita; mas o meu crime qual foi, senão o amor cego que lhe tenho?
— Seu amor seria para mim um insulto!
— Lembre-se que já fui bem castigado com o receio de perdê-la para sempre. Não acha que mereço seu perdão? Eu suplico de joelhos.
Romero caminhava para a moça, que recuou horrorizada até o leito. Aí no desespero de se ver sem defesa, à mercê daquele homem, que era seu marido, acudiu-lhe uma lembrança. Metendo a mão trêmula por baixo do colchão apalpou o cabo da faca de Manuel.
Entretanto Romero aproximando-se passara o braço pelo colo da noiva, e inclinou-se para beijá-la. Catita retraiu-se violentamente, e o ferro grilhou em sua mão. Ouviu-se um grito de aflição.
A faca rolou pelo chão, ao tempo que a moça caía desmaiada sobre o leito. Faltaram-lhe as forças pensando que já o coração de Romero estava traspassado pelo ferro; quando este apenas cortara as roupas e arranhara a epiderme.
O chileno sorriu vendo a moça inanimada. Esse amor travado de ódio, a luta violenta que prostrara aquela mulher, o excitavam.
— Agora é minha!
Nesse momento alguém travou-lhe do punho. Era Manuel.