À meia-noite, D. Romero embuçado em um poncho escuro, passeava defronte da casa de Fortunata.
Mais longe, na esquina da matriz, um vulto cosido com a parede e oculto pelo ângulo da rua, espreitava desde muito tempo os movimentos do namorado.
Eis que o primeiro galo soltou além nalgum quintal remoto o grito de alerta, a que os outros responderam sucessivamente; a rótula abriu-se timidamente, e fechou-se logo. Aproximou-se D. Romero, que sentiu através do gradil um hálito ardente e perfumado.
— Querida! murmurou o taful.
— O que é?
— Abra um pouquito.
— Não; tenho medo.
— Medo de quê, flor? De ser amada, como jamais foi outra mulher neste mundo? Ou medo de matar-me de felicidade, com a luz desses olhos formosos?
A rótula entreabriu-se de leve, mas quanto bastou para que o namorado passasse a mão, a fim de impedir que ela se fechasse de novo. A conversa continuou pela fresta.
— Eu trouxe um regalito para você, querida. Adivinhe o que é?
— Não sei!
— Pois olhe!
Alargou-se a fresta; e na sombra desenhou-se o perfil do rosto encantador da moça, que reclinava a fronte para olhar o objeto na mão do chileno.
— São confeitos mui lindos, disse ele. Quero adoçar este coração ingrato, que me faz tanto penar. Prove para ver como são gostosos!
D. Romero tirou então do cartucho, enfeitado com laço de fita e perfumado de baunilha, um confeito que retirou rapidamente quando a moça quis tocá-lo com o dedo.
— Há de ser na boca!
— Ora!
— Que mal faz?
— Tenho vergonha.
— Tome; eu lhe peço.
Depois de alguma resistência, Catita consentiu em colher sutilmente com a ponta dos lábios o confeito que lhe oferecia Romero, o qual repetiu o galanteio por duas ou três vezes.
Um suspiro sublevou o seio da moça:
— Ai!... Estou tão cansada! Não sei de quê!...
— De ser cruel? perguntou o taful sorrindo.
— Que noite tão linda!... Como é bom gozar desta frescura.
Os lábios de Catita debulhavam as sílabas dessas palavras, com uma voz frouxa e lenta, enquanto os olhos se engolfavam no azul diáfano com um sentimento de delícia inefável. Depois, cedendo à languidez que a invadia, a fronte reclinou-se apoiando na ombreira da janela.
— Que preguiçosa! disse D. Romero gracejando.
Entretanto o vulto da esquina, cosido à parede, assistia de longe a esta cena em extraordinária agitação. Às vezes arrojava-se para diante com os dentes rangidos, levando à cinta a mão que apertava o cabo da faca. Nessas ocasiões porém algum motivo detinha; agarrava-se ao ângulo da parede, procurando um apoio para resistir ao ímpeto, e para dominar o impulso da carreira, que malgrado seu erguia-lhe os pés do solo precipitando-o. Por fim deixou-se cair de joelhos; e ficou ali estrebuchando como um homem na agonia.
Sem dúvida um sentimento mais poderoso sobrepujava o ciúme que no primeiro momento impelia o desconhecido contra o rival feliz. Mas a luta se renovava a cada instante; e ninguém podia prever o resultado final desse choque de duas paixões infrenes.
De repente um bramido rompeu do peito cavernoso do desconhecido, que se arremessou com um salto de tigre.
Vira a rótula escancarada e pressentiu o que ia acontecer. Quando chegou ao lugar, a janela estava completamente fechada; e o chileno havia desaparecido. Onde podia ele estar, senão dentro da casa?
O desconhecido quis atirar-se contra a janela, para despedaçá-la; mas foi subitamente paralisado pela mesma força que de outras vezes o sofreara. Dos beiços crespos de cólera escaparam-lhe, como uma golfada de fel, estas palavras envoltas em um riso de fera.
— Se não for este maricas, há de ser o outro, o cão!
Dobrando-se com um movimento de desespero, para arredar-se da janela, deitou a correr como um possesso pela rua fora.
Nessa noite, Lucas Fernandes estava de guarda à entrada da vila, em uma casa que servia de quartel. O furriel promovido a alferes fora ultimamente ferido em um combate; e por isso resignava-se a ficar em Piratinim, quando se combatia em Pelotas, Camacã e São José do Norte.
Tinha o miliciano se deitado depois que fizera o seu quarto a pitar e a palestrar com os camaradas; roncava, como um porco, atirado sobre o couro que lhe servia de cama. Eis que chega um homem a correr.
— Que é isso, Félix! disse um dos gaúchos que estavam de vigia. Há novidade?
— Quero falar ao Sr. Lucas.
— Sobre quê?
— O negócio é só com ele.
— Desembucha duma vez.
— Onde está o homem?
— Olha! Se fores capaz, acorda-o.
— É uma pedra no fundo dum poço.
Foram precisos com efeito os maiores esforços para despertar o furriel.
— Que diabo me querem vocês?
Félix murmurou algumas palavras rápidas ao ouvido do miliciano, que ainda tonto de sono, não percebeu-lhes o sentido.
— Hein!...
O rapaz repetiu; desta vez o pai de Catita, compreendendo, soltou um berro formidável.
— Hei de espatifá-lo!
E partiu a correr, brandindo furiosamente o chanfalho, e acutilando o vento com desespero. Félix o seguia de perto, conduzindo o troço dos soldados e gaúchos que estavam acordados e tinham ouvido o grito do miliciano.
Apesar da diligência empregada por Félix para chamar o Lucas, eram decorridas perto de duas horas depois que se fechara a rótula. Oculto na esquina desde o princípio da noite, o rapaz vira sair o furriel, mas ignorava o lugar para onde se dirigia; por isso antes de chegar ao quartel, havia batido em diversas casas, onde costumava ele passar as noites jogando e prosando.
A porta de entrada estava interiormente fechada. O pai, ferido na sua honra, não esperou que a viessem abrir; ajudado por Félix arrombou-a, enquanto os gaúchos punham cerco na casa pela frente e pelo quintal.
Ao estrépito da porta espedaçada, as duas matronas soltavam gritos estridentes, que de envolta com os latidos do cão, os miados do gato e o cacarejar das galinhas formavam um concerto horríssono. A habitação estava completamente no escuro; foi preciso que Félix, tirando fogo do isqueiro, acendesse um grane molho de palha arrancado a um rancho próximo.
Ao clarão desse facho, Lucas penetrou no interior; antes porém de entrar, voltou-se para os gaúchos que cercavam a casa e lhes disse com uma voz que a raiva estrangulava:
— Não o deixem fugir; mas não o matem. Quero trincá-lo vivo.
O ímpeto do furriel esbarrou no limiar do quarto da filha. Catita em pé, com os cabelos desgrenhados, as vestes decompostas e os braços abertos enchia o vão da porta, impedindo a passagem. O talhe curvado para diante e a fronte reclinada, exprimiam submissão à cólera paterna, ou intenção de afrontar o perigo.
— Sai! gritou o pai.
— Não.
Lucas arrojou-se levando por diante a moça que foi bater contra a parede do aposento, quase desmaiada. Em um momento foram corridos todos os recantos do quarto, mas inutilmente; ninguém encontraram.
— Viste com teus olhos? perguntou Lucas a Félix, sentindo renascer uma vaga esperança.
— Olhe! disse o rapaz apontando.
No poial da janela via-se o pala de D. Romero e o seu chapéu à bolívar. Esse vestígio de sua desonra, levantou no coração do pai ultrajado uma cólera tão violenta, que de um ímpeto arremessou a filha ao chão para esmagá-la debaixo dos pés.
Maria dos Prazeres que chegava, e já advertida do que ocorrera, acudiu envolvendo a filha com os braços.
— Misericórdia! meu Deus!
O grito de aflição da mãe aplacou no coração do pai a sanha feroz que dele se apoderara. Erguendo os olhos ao céu para pedir perdão da morte que estivera a consumar, Lucas estremeceu.
Entre dois caibros apareciam quebradas as ripas: as telhas que deviam cobri-las escorregando tinham deixado vão suficiente para a passagem de um homem de talhe delgado. Não havia dúvida; o chileno se escapara por ali e talvez não andasse longe.
Com um gesto, o furriel mostrou a aberta a Félix e aos gaúchos que assistiam à cena. De chofre esvaziou-se o aposento; todos haviam compreendido instantaneamente, e lançaram-se no encalço do fugitivo.
Enquanto os outros iam pelo chão bater os arredores, Félix cravando a faca na parede, e apoiando o pé na janela, alcançou um caibro e ganhou o telhado da mesma forma por que o fizera meia hora antes o chileno.
Ouviram-se então brados de furor e estrépito de armas, do lado da matriz. Lucas correu naquela direção seguido pelos peões: e dois tiros soaram repercutindo ao longe pelas cavernas dos cerros.