O sol brilhava em meio de um céu do mais lindo azul. A aragem branda, esgarçando as nuvens que apareciam no horizonte, franjava de branco arminho esse manto aveludado.
Catita, encostada à ombreira da janela, cismava, contemplando os esplendores do dia.
O semblante sempre risonho e petulante da graciosa menina, estava amortecido pela mágoa. Fatigados e baços, os olhos apenas se inflamavam por momentos de efêmeros lampejos; e esse não eram mais as cintilações da estrela, porém os surdos vislumbres de um incêndio sopito. Nos lábios se desvanecera o delicado matiz; a vespa babujara essa rosa florida, pungindo-lhe o seio.
Um noite, algumas horas, bastaram para produzir nessa vida uma revolução profunda. A menina gentil e descuidosa já não existia; na expressão da fisionomia, como na atitude de seu corpo, ressumbrava a preocupação dalma ao transpor o limiar desse caos que chamam o mundo.
Na folhagem de uma árvore fronteira à janela dois gaturamos, cuja penugem brilhava ao reflexo do sol como pingentes de esmeralda, se namoravam, adejando de ramo em ramo, e chilrando o seu canto mavioso; os olhos de Catita fitaram-se um instante naquela cena e se anuviaram. Duas lágrimas ardentes lhe desfiaram pelas faces.
Como se aquele pranto a humilhasse, a moça enxugou rapidamente os olhos, e erigiu a fronte arrostando o pesar que um momento a oprimira.
— Sou feliz!... Ele me ama!...
O lábio, murmurando estas palavras, esboçara um sorriso que se desfolhou como a flor pálida do outono, ao sopro ardente do suão.
Insensivelmente o espírito da moça, desprendendo-se deste incidente, voltou à preocupação constante, que desde a véspera o absorvia. Seu pensamento remontava ao dia da partida de Manuel, e acompanhava o curso de sua vida durante essa última fase. Chegava a um ponto em que um abismo se abria a seus pés, e ela se precipitara nele sorrindo, enlevada em um sonho voluptuoso.
Era no momento em que sentindo-se cansada recostara a fronte lânguida na ombreira da janela. D. Romero estava ali a galantear; ela já não escutava suas palavras, mas sentia-se embeber da voz e dos olhares do cavaleiro.
Os dedos mimosos, que a princípio retinham a rótula com tamanho cuidado, afrouxaram deixando-se colher pela mão impaciente do chileno. Ela, Catita, pensou em esquivar-se, mas não pôde. Por quê? Não sabia se eram as forças que lhe faltavam, ou a delícia do êxtase que a engolfava.
Depois Romero debruçou-se na janela, cingiu-lhe o talhe, conchegando-a ao seio, e pousou um beijo ardente em seus lábios ávidos. Foi então que a rótula fechou-se sem que ela se apercebesse, e o sonho inefável continuou até o instante em que a despertou um estrépito horrível.
— É seu pai! disse Romero.
— Que quer ele?
— Matar-me!
Essa palavra a arrancou ao doce enlevo. Só então sentiu que estava na profundeza do abismo, e não no berço aéreo das nuvens, embalada pelo sopro acariciador das brisas celestes.
Como se dera esse transe em sua vida? Eis o que ela não compreendia, o que desde a véspera perscrutava sem cessar nos refolhos da consciência, e não achara ainda em sua alma a explicação, ou pelo menos os indícios da força poderosa que a precipitara.
Nessa cogitação, sobressaltou-se a moça; acudia-lhe uma circunstância mínima, que até então escapara. Fora depois de ter provado os confeitos que ela caiu no suave delíquio, desamparada inteiramente de sua vontade.
Tinha Romero usado de algum filtro para rendê-la ao seu amor?
Não se enganava Catita nesta suposição. De fato o chileno, resolvido a rematar naquela noite a aventura que já o detivera demais em Piratinim, e não querendo contar só com seu galanteio, recorrera a um meio eficaz e por diversas vezes empregado com feliz êxito.
Em seu giro constante, o mascate encontrara outrora nos pampas um velho guaicuru que tinha por costume embriagar-se com o suco de uma planta indígena. Bastava-lhe sorver dessa resina a porção contida na unha para cair em um torpor, que logo se transformava em rapto celeste.
D. Romero a troco de ferragens e munições comprara do índio velho uma porção da resina, e tendo experimentado por si mesmo o efeito, compreendeu que lhe podia prestar, em certas ocasiões, grande serviço, vencendo em minutos resistências que durariam longos dias.
Fora um grumo dessa resina deitado sutilmente na cuia de mate, que ia-lhe entregando Jacintinha, se o pudor indignado não reagisse contra a ação do narcótico, arrancando o gemido doloroso que repercutiu no coração materno.
Os confeitos perfumados que ele dera a Catita estavam impregnados da mesma essência inebriante; mas a filha do Lucas, seduzida pela vaidade, não teve para protegê-la, nem o véu casto do pudor, nem a ara do amor materno.
Entretanto, quando lhe acudia a explicação tão sofregamente procurada; quando a intervenção dessa causa estranha lhe fazia compreender o que antes parecia impossível, Catita, por uma contradição inexplicável, repelia essa idéia e exclamava consigo:
— Não! Não foi isso!...
Em seu orgulho não se podia considerar uma vítima. Fora ela mesma, que decidira de sua sorte; e empenhara tudo ao homem a quem amava.
Eis que soa ao longe o relincho de um cavalo. Catita estremeceu. Aquela nota selvagem, afinada na grande harpa do deserto, ao sibilo do pampeiro, e ao crépito do raio, só a tinha o Juca, o brioso alazão.
Canho estava pois de volta.
Um calafrio percorreu o corpo da moça, que sublevou-se a meio para fugir espavorida, mas caiu pesadamente como um fardo inerte, sobre o poial da janela.
Era com efeito Manuel que chegava. Atravessando rapidamente a vila, apeou-se à porta da Fortunata. A casa parecia deserta; Lucas ainda não se recolhera da perseguição ao chileno.
Percorrendo os aposentos, chegou o gaúcho ao quarto onde estava Catita, ainda prostrada pela forte comoção. Ouvindo o tinir das chilenas de Canho, a moça fez um esforço inaudito e levantou a cabeça, mas sem erguer os olhos.
Manuel parara a alguns passos de distância, partido entre duas emoções: o soçobro de ver a amante, e a surpresa dolorosa dessa recepção glacial.
— Catita! balbuciou com a voz transida.
A moça cobriu as faces com as mãos, para defendê-las contra o olhar de Manuel, enquanto seu peito martirizado estalava em um soluço convulso.
— Ah!
Não foi uma exclamação; mas um rugido bravio que rompeu do peito do gaúcho, por entre os lábios cobertos de uma espuma sangrenta.
Ou porque a mesma veemência da aflição brandisse as fibras de sua alma, ou porque a vergonha daquela humilhação reagisse em seu coração contra o remorso, Catita por súbita transformação ergueu a fronte selada com uma calma impassível. Sua voz era firme, embora áspera como o ranger do vidro:
— Jurei que lhe pertenceria, Manuel: acreditava que lhe queria bem. Enganei-me; o homem que eu devia amar, era outro. Me perdoe; esqueça-se de mim que não merecia ser sua mulher.
Manuel ouvia o borborinho destas palavras; e sentia que lhe caíam, a uma e uma, dentro dalma, como o granizo gelado que durante o inverno peneira sobre a campanha, e mata a semente no seio da terra.
À porta assomou a figura de Lucas Fernandes. Avistando-se, os dois corações, feridos pelo mesmo golpe, se lançaram um ao outro, como para se ampararem mutuamente contra o infortúnio:
— Desonrado, Manuel! exclamou o pai, apertando em seus braços o gaúcho.
Este não proferiu palavra; mas nas profundezas dalma repercutiu o grito que ele conseguira sufocar nos lábios; e no semblante derramou-se todo o fel, que lhe extravasava do coração.
Lucas viu essa expressão de uma dor imensa: e arrancando a faca da cinta do Canho arrojou-se para a filha. No primeiro assomo Catita empalideceu, mas recobrando-se apresentou ao pai o seio para que ele o ferisse.
Durante esta cena rápida e muda, Manuel não se movera. Ele não se julgava com direito de deter a mão do pai que vingava sua honra; e no fundo dalma talvez desejasse antes ver morta a mulher que amara, do que transformada em um ente desprezível.
Uma vertigem passou pelos olhos de Lucas, e a faca lhe resvalou da mão inerte. Canho o arrastou para fora.
Passada aquela grande comoção, o pai contou ao amante, no meio de blaterações de furor e soluços de cólera, a cena que na véspera ocorrera e as informações que lhe dera Félix, a respeito dos acontecimentos; bem como a diligência inútil que tinham empregado para apanhar o chileno. Manuel escutava em silêncio. Seus lábios pareciam selados como um túmulo. A serenidade das grandes cóleras da natureza enquanto se não desencadeiam, derramava-se em sua fisionomia, que parecia embutida em máscara de aço.
Um piquete tinha parado na rua; a alta estatura de Bento Gonçalves assomou na porta.
— Já de volta, Manuel? disse ele dirigindo-se ao gaúcho.
Este permaneceu imóvel sem dar o menor sinal de ter ouvido o coronel e se apercebido de sua chegada.
Bento Gonçalves surpreso daquela atonia voltou-se para as outras pessoas presentes interrogando-as com o olhar. Lucas abaixou a cabeça. Foi a Fortunata que referiu o que havia ocorrido.
O coronel aproximou-se de Canho e apertou-o nos braços com efusão, procurando em sua alma uma palavra de consolo para tão grande dor.
— Vem; teremos combate esta noite!
Despertado por aquela voz generosa, Manuel compreendeu o pensamento do guerreiro; mas um triste sorriso fugiu-lhe dos lábios. Tomando a mão do coronel a impôs sobre o coração, como se quisesse exprimir com aquele movimento que o tinha já morto e extinto. Depois, entregando a carta de Rosas a Bento Gonçalves, apartou-se lentamente.