A essa hora corria D. Romero à rédea solta pela campanha.

Evadindo-se de casa da Fortunata pelo telhado, o chileno ganhou rapidamente um mata-pasto que havia por detrás da matriz, e no qual, por precaução, ocultara ele seu cavalo, deitando-lhe uma focinheira de couro para impedir que rinchasse.

O mascate era um aventureiro prudente e sagaz. Embora a empresa não parecesse oferecer o menor risco, ele sabia por longa experiência que de repente surgem complicações imprevistas. Por isso era seu costume trazer sempre as armas na cinta e o cavalo ao alcance da mão.

Foi sua salvação. Se não tivesse tão pronta a fuga, infalivelmente cairia nas mãos dos peões que o perseguiam, dirigidos e instigados por Lucas e Félix. Assim mesmo, antes que pudesse apanhar o cavalo foi atacado por três que o seguiam mais de perto. Conhecendo que sua salvação dependia de um ato de desespero, o chileno investiu com fúria contra os agressores, desfechando-lhes repetidos golpes de espada, e dois tiros de pistola que os feriram e atordoaram.

Aproveitando-se desse momento de vacilação pôde ele saltar no cavalo e desaparecer. Quando Lucas chegou ao lugar, nem mais se ouvia o estrupido do galope.

Vendo-se fora da vila, antes que o furriel montasse a cavalo para persegui-lo, Romero, que até então não tivera outro pensamento senão fugir, tratou de orientar-se no meio da campanha e seguiu no rumo do oriente.

O chileno tinha-se dirigido para aquele lado da província com intenção de percorrer as vilas e povoados do sertão até Cruz Alta. Daí se ainda fosse tempo de ir à feira de Sorocaba, se passaria a Curitiba com os marchantes e invernistas; senão entraria na Confederação por São Borja.

Como a ninguém comunicara sua intenção, pensou que podia seguir com segurança a rota já traçada. Esperava alcançar no dia seguinte a Encruzilhada, donde mandaria buscar sua bagagem, que ficara na locanda.

O sol transmontava.

D. Romero, tendo corrido durante o resto da noite e boa parte da manhã, descansara algumas horas em um rancho, e continuava agora a jornada mais tranqüilo. Montava outro animal; o castanho galopava ao lado.

Embalava-se o chileno nas recordações de sua aventura, quando o animal deu sinal de inquietação, copando as orelhas para trás e insuflando as narinas. O cavaleiro voltou-se, e em toda a extensão que abrangia seu olhar do algo da coxilha, nada avistou.

Mas o inquieto animal resfolgava esforçando por tomar o freio. Romero pensou que fosse a vizinhança de alguma onça das matas de Canguçu; pouco disposto a perder o tempo com essa caça, soltou as rédeas e deixou o cavalo disparar. Às vezes parecia-lhe ouvir longe um surdo estrépito, como o do mar batendo na praia do Albardão; mas esse rumor passava com a lufada.

Entretanto o cavalo redobrava de velocidade, e parecia sentir a aproximação do perigo.

Afinal convenceu-se o chileno que não se enganava; e voltando-se descobriu longe um ponto negro, como a asa de uma águia que rasasse pela terra. Era a vingança que voava sobre ele; tal foi o pressentimento que cerrou o coração do fugitivo.

O vulto crescia de momento a momento. Romero passou-se para o castanho, seu destemido parelheiro, e debruçado sobre o pescoço do animal confiou-lhe a sua salvação. O brioso cavalo compreendeu o que o senhor esperava dele, e arrojou-se a toda carreira.

Mas não era um homem: era um turbilhão que o perseguia. Observando uma última vez, viu o fugitivo destacar-se perfeitamente do alto da colina, no azul do céu, o vulto sinistro do Canho. Juca, sentindo que fora reconhecido, e já não tinha necessidade de emudecer, soltou o nitrido.

A vasta solidão, como uma lâmina imensa de bronze, percutida pelo raio, vibrou aquele grito estridente, cujos ecos, reboando no espaço, se propagaram ao longe pelo ermo.

O chileno sentiu gelar-se o coração; entretanto esse homem era bravo e muitas vezes na sua vida afrontara o perigo com o sorriso nos lábios. Mas o gaúcho lhe inspirava misterioso terror; desde o primeiro dia em que o viu, sentira essa obsessão inexplicável.

Certo de que sua hora aproximava-se, o fugitivo contava os instantes pelo tropel do alazão que se aproximava com rapidez espantosa. Já ouvia-lhe o ornejo, terrível como o surdo rugir do tigre; e armava as pistolas para fazer face ao inimigo.

Nisto assomou-lhe pela frente, à distância de duzentas braças, um troço de cavaleiros.

Nas situações desesperadas, uma intervenção estranha desperta sempre a esperança. O chileno lembrou-se que podia ser uma partida de legalistas; e nesse caso estaria salvo.

A revolução já havia triunfado em toda a província. O marechal Barreto e o tenente-coronel Silva Tavares se tinham refugiado no Estado Oriental com os destroços das forças do governo.

Mas a presença do novo presidente Araújo Ribeiro reanimara a resistência. Alguns chefes legalistas, como o coronel Albano, o major Marques e outros, se empenhavam em levantar gente. Já o capitão Procópio, à frente de 500 homens, batera os rebeldes e os expulsara do distrito do Rio Grande até São Gonçalo.

A estrela do chileno não o tinha abandonado. Era justamente uma partida que ia reunir-se ao coronel Albano na Encruzilhada. Bastou ao fugitivo uma palavra para ser bem recebido.

— Os rebeldes me perseguem!

— Aonde? perguntaram vinte vozes.

Romero voltou-se. O Canho tinha desaparecido. Ainda os legalistas bateram os arredores por algum tempo; mas aproximando-se a noite, dirigiram-se à povoação.

Na Encruzilhada, Romero, que levava a bolsa bem fornida, ajustou seis capangas destemidos para o acompanharem; despachando um portador para avisar os seus camaradas do lugar onde o deviam encontrar, partiu para Rio Pardo.

Estava ele há quatro dias nessa vila, esperando pela bagagem. Arranchara-se na casa de um lojista, seu conhecido de outras vezes que por ali passara. Ali se julgava seguro, mas por precaução não saía à rua senão guardado pelos camaradas.

Ao lado morava uma antiga apaixonada em quem ele procurava soprar a chama extinta. Lembrada da facilidade com que o taful se desprendera de seus laços, a moça andava arisca; mas afinal, depois de muito rogada, prometeu esperar o namorado na janela, ao toque de recolher.

Era noite há muito, e noite escura. D. Romero deixou que seus inseparáveis capangas se acomodassem; e ganhando a sala conchegou-se à janela do canto, que ficava encostada à casa vizinha. Os dois sobrados eram da mesma altura, e ambos tinham janelas de balcão, de modo que os amantes debruçados podiam quase tocar-se.

Estava a rua completamente deserta. Uma sombra apareceu na janela próxima.

— Amor, sua mãe já dorme?

— Para quê?

— Para conversarmos mais perto?

— Cuida que eu já esqueci?

— Ingrata! Assim me paga as saudades que curti ausente dela!

— Eu não acredito!

— Quem me trouxe a Rio Pardo? Não foram esses lindos olhos que de longe me arrastam, e de perto me repelem?

— Ai!

Soltando um gritozinho de susto, a moça retraíra-se para dentro.

— Que é? perguntou o chileno.

— Não ouviu, ali defronte?

Em face havia o muro em ruínas de um quintal abandonado. Malvas silvestres e arbustos cobertos de abóboras formavam uma vegetação luxuriosa que estofava as brechas do valo junto do qual se elevava um pinheiro.

— Foi o vento, disse o chileno.

— Vi uma pessoa em cima do muro.

— Ora! Havia de ser o pinheiro! replicou o chileno rindo-se.

— Tive um susto!... suspirou a moça esquivando-se.

Romero aproveitou o ensejo para escalar a grade, a fim de passar ao balcão vizinho.

— Espere!

A moça foi até ao meio da sala para assegurar-se de que todos dormiam, mas não teve tempo. Um grito cortado atravessara o espaço. Arrastando-se à janela, trêmula e fora de si, apenas vira um vulto que perpassou no ar e sumiu-se. Era porventura o arremesso de algum abutre, que soltara o pio lúgubre, caindo sobre a presa?

O chileno tinha desaparecido.

Todos os esforços dos capangas, acordados em sobressalto, foram inúteis para descobri-lo.