Havia novena essa noite.
Já as devotas começavam a chegar; e lá estava o tabelião com a família. Foi o Ivo recebido com muitos agasalhos pela velha Romana e todo o mulherio, que estava em contemplação diante da pintura. Atarantou-se o rapaz, e não sabia como atar-se, quando felizmente deu o tirador da ladainha sinal para começar a novena.
Colocou-se o rapaz de modo que pudesse espiar o rostinho de Marta, oculto sob o capuz da mantilha, que ela de propósito conservava sobre a cabeça para melhor recolher-se no seu pudor, como a corola da flor que cerra com o raio do sol.
Bem vontade tinha a menina de lançar de esguelha e a furto uma olhadela para ver como rezava o rapaz; não se animando, vingava-se em contemplar o improvisado Menino Jesus, como se o quisesse comer com a vista.
Notou a Sra. Romana que a neta várias vezes errara as palavras da reza; com o que teve algum desconsolo, pois seu maior desejo era fazer de Marta uma devota insigne, digna de receber a herança de seu oratório, de suas imagens, relíquias e todo o mais beatério.
Terminada a novena, os velhos sentaram-se na calçada, sobre o tijolo, com exceção do tabelião e algum outro também qualificado, para quem vieram cadeiras de couro. Rolou a prática sobre as novas do reino trazidas pela última frota, e afinal, depois de tocar em outros vários temas, veio a cair na mudança da única matriz que possuía então a nascente cidade, da Igreja de São Sebastião do Castelo, onde a tinham colocado desde a primitiva fundação, para a igreja de São José, de recente fábrica, e apenas acabada.
Foi este para nossos dignos antepassados negócio da maior monta, ou como agora se diria, a "grande questão". Não abalaria tanto os ânimos hoje em dia a mudança da corte para as cabeceiras do São Francisco, onde há muito devera estar, como naqueles tempos afonsinhos a mudança da sede paroquial da freguesia de São Sebastião do Rio de Janeiro.
Se já existira imprensa, com a sua gíria moderna, que rajadas de eloqüência tribunícia não haviam de aparecer a propósito? E como andaria em bolandas a opinião pública, essa bonita peteca dos jornalistas?
No estrado do oratório, corrida a cortina de crepe sobre o altar e as imagens, sentaram-se as devotas para a costumada prática. Bisbilhotou-se a vida do próximo; contaram-se histórias de almas do outro mundo ou casos de bruxos e lobisomens. Tudo isto, a um tempo, em contínua tagarelice, cada uma escutando e palrando do mesmo passo.
E não se fala de uns cochichos que se perdiam no rumor da prática animada. Esses eram de lábios frescos e rosados, donde se escapavam a medo, envoltos em um suspiro ou na reticência do pudor.
Quanto aos rapazes, saltavam no quintal, ao clarão da fogueira, impacientes pela hora da ceia.
— Querem ver como eu tiro já as velhas do estrado para a mesa? Esperem vocês, disse Ivo aos companheiros.
O diabrete do rapaz ouvira cantar um grilo ali perto, e foi-lhe à cata. No lugar onde o apanhou havia um pé de perpétuas, das quais escolheu a mais aveludada. Acercando-se então da porta que ficava próximo ao estrado, atirou certeiro a flor no regaço de Marta, que pensou morrer de susto.
— O que é? disseram as outras.
— Caiu uma cousa!
— Não sei! respondeu Marta sacudindo o vestido.
Não apareceu a perpétua que estava bem fechada na mão direita donde passou disfarçadamente para o seio. O Ivo se escondera logo depois de atirar a flor, mas a menina o vira de relance.
A infatigável curiosidade feminina procurava ainda o objeto caído no colo de Marta, quando ouviu-se novo estrépito, e alguma cousa bateu na cabeça de uma devota. Mas em vez de ficar-se como a outra, descansada e quieta, começou a dar pulos tontos.
Foi uma debandada. Dispersou-se o mulherio como por encanto, no meio de guinchos e faniquitos. Esta desgrenhava o cabelo cuidando que o trasgo, pois era um com certeza, lhe ficara preso ao toucado. Aquela sacudia as saias, examinando-as por dentro e por fora. Essa outra embiocava-se, para examinar no seio, se por acaso não se enamorara a larva dos dois jenipapos.
Ao grande espalhafato acudiu o tabelião, apunhando a enorme boceta de tabaco, à guisa de pelouro, na carência de outra arma ofensiva. Os outros velhuscos da roda, qual mais destemido, o acompanhavam, este com um pedaço de tijolo, aquele com um tamanco velho.
Dos primeiros a acudir, se não o primeiro, foi o Ivo, e em tão boa hora que amparou sem querer o corpinho trêmulo de Marta, quando ela ia cair; mas apenas a apertou nos seus braços, que a desmaiada logo ficou de todo restabelecida, e fugiu-lhe como uma sombra.
A causa de toda a balbúrdia fora o grilo, que tão a ponto lançara o Ivo na roda das mulheres, e quando contava-se a história de uma borboleta preta, que chupava sangue à gente, e não era outra senão uma velha bruxa.
Como previra Ivo, deu o susto em resultado apressar a ceia, visto que se tinham desmanchado as rodas, e não havia que fazer àquela hora para entreter o resto do tempo.
Depois da ceia, e antes de recolher-se com a família, escapuliu M4arta de perto da mãe, e foi ao quintal colher uma perpétua para deixá-la sobre o trumó, aos pés do Menino Jesus.
Nesse entretanto o tabelião, sempre grave, compassado e sacramental, como um instrumento em devida forma, chamava de parte a dona de casa.
— Sra. Romana, minha respeitável sogra, poderá dizer-me quem é este rapazola que vi hoje aqui pela primeira vez?
— É o sobrinho da Rosalina.
— A do alferes? perguntou o tabelião vincando a testa.
— Fale mais baixo, Sr. Sebastião, que ela pode ouvir!
— Vistos os autos, a referida está aqui?
— Que tem isso agora? Por que andaram a fazer enredos da pobre? E não passa da Pôncia, aquela linguazinha de...
— Pois, Sra. Romana, minha respeitável sogra, urge que ponha cobro a isso, porquanto, se a supradita e mais o bonifrate do filho, que a espertalhona alapardou em sobrinho, se meterem aqui, nem sua filha e minha mulher, nem a sua neta, filha minha e da sua também supradita filha, tornarão a pôr os pés em casa onde se agasalha gente descomedida, que...
— Ora, Sr. Sebastião, guarde seu palavreado lá para a rabulice. A Rosalina há de vir com o filho e o senhor também com a Miquelina e a Marta!
— A senhora teima? perguntou o tabelião em tom sacramental.
— Teima é a sua de engrimar-se com a coitada da mulher, que não lhe fez mal nenhum.
— Escandaliza os bons costumes; e bem vê que sendo eu um oficial do público, judicial e notas, não posso tolerar...
— E que remédio tem o senhor?
— Não me afronte, Sra. Romana, senão... senão...
Fez o Sebastião uma reticência tabelioa, prenhe de solenes ameaças.
A velha, porém, fincara as mãos nos quadris; e surdindo por baixo do nariz do tabelião, perguntou-lhe em ar de desafio:
— Senão, o quê?
— Senão eu me recolho ao silêncio! respondeu o tabelião com dignidade.
— É o melhor que pode fazer.