Não eram passados oito dias depois da novena, quando pela volta das sete horas da manhã, apareceu a Sra. Romana Mência em casa do genro.

Acabava precisamente o Sebastião Ferreira a, sua refeição matinal, e esgravatava metodicamente a dentuça com uma pena de galo, esperando que pingassem as sete para encaminhar-se ao cartório.

D. Miquelina e a filha, sentadas ao lado direito da mesa, não tinham concluído a reza, em que o tabelião, como de costume, se despachava mais depressa que elas.

— Deus esteja nesta casa! disse a velha entrando.

— E os anjos a acompanhem, senhora mãe!

— Amém! disse Marta.

— Muito bem aparecida, Sra. Romana!

— Onde a gente é querida, sempre há de ser bem aparecida.

Não deixou o tabelião de reparar na visita da sogra àquelas horas canônicas do trabalho; mas foi quando notou o desempeno da velha, com a mantilha passada por baixo do braço direito, e a venta arregaçada, que o Sebastião Freire agourou mal daquela vinda tão fora de vila e termo.

Avisando como homem prudente em evitar a tormenta, fungou os restos da pitada, que estivera a rolar em bolota nos dedos, e foi-se esgueirando para ganhar o. cartório. Mas atalhou-lhe o passo a matrona, com ar decidido de quem traz negócio de monta.

— Temos que falar, senhor meu genro.

— São horas de abrir o cartório; bem sabe, primeiro a obrigação, depois a devoção.

— Pode abrir seu cartório. Quem lhe impede? Se é mesmo por ele que venho.

— Pelo meu cartório, Sra. Romana Mência!...

Soltando esta exclamação foi tal o pasmo do tabelião, que inteiriçando-se-lhe o vulto já tão esguio, tomou a figura de um ponto de admiração. O oficial das justiças d'El-Rei não compreendia que ingerência poderia ter uma mulher, fosse ela sua sogra, em tão grave assunto.

— Pelo cartório, ou cousa que lhe pertence, que eu desta barafunda não pesco.

— Por certo que não é para mulheres entenderem com o serviço da república; muito fazem elas já em tanger o fuso e a roca, que algumas nem de remendar a roupa da casa se lhe dão.

— Está bom, isso é lá com a Miquelina. Com ela se avenha, que eu em brigas de marido e mulher não me meto. Só lhe digo que não fui eu quem lha meti a casa, mas o senhor quem andou arrastando-lhe a asa, cerca de dois anos, como namorado sem ventura, até que afinal por diligências do D. Abade de São Bento..

— Ora pois deixemos estas histórias velhas, senhora, e vamos sem mais detença ao que a trouxe, que o tempo perdido não se recupera.

— Encontra-se o desejo com a boa vontade; nem para outra cousa estou eu aqui há um poder de tempo, e o senhor a dar à taramela.

— Sra. Romana, não se exceda. Isto não são modos de se falar a um tabelião do público, judicial e notas por El-Rei, que Deus guarde muitos e dilatadíssimos anos.

— Amém, e a todos nós para o servir e respeitar. Quer então saber a que vim?

O Sebastião Ferreira, temendo que uma resposta vocal provocasse novos ricochetes da velha, concentrou-se desta vez em um aceno compassado, abanando com a cabeça do alto a baixo.

— Pois eu lhe digo. O senhor há de precisar de um escrevente ou copista para o cartório.

— Não há tal... ia dizendo o Sebastião.

— E eu tenho um papafina para lhe dar. É o Ivo.

Espetou-se no cume da ponta da cabeça a ruiva cabeleira do tabelião; os olhos esbugalharam-se; e a voz soçobrou-lhe no esôfago com a concussão que sofrera todo o indivíduo.

— O da Rosalina? gaguejou o homem.

— Esse mesmo, sem tirar nem pôr! retorquiu a matrona sem voltar pé atrás.

— Com a devida vênia, a senhora não está em seu juízo; minha sogra, desembuchou afinal o tabelião.

— Tão são tivesse o senhor o miolo, que já me está cheirando a mandioca puba!...

— Sabe acaso a senhora, o que seja um cartório? Pois aqui lho digo: é o depósito da paz e honra das famílias, em cujas notas se guardam os títulos de seus haveres, e os segredos de suas casas. Não será muito chamá-lo o tombo da cidade, pois que aí se vão lavrando e autuando todos os sucessos da república, ainda os menos importantes. E para um mister de tamanha ponderação, há de se admitir aí qualquer valdevinos...

— Apre lá! Não me esteja a estrelicar os ouvidos com suas cantigas. O rapaz há de dar um bom copista. Ande lá! Tem uma letra chibante!...

— Tire semelhante idéia da cabeça, senhora. E com sua licença!...

— Não se ponha comigo nestes pontos, Sr. Sebastião. Olhe, depois não se arrependa! intimou a velha, mostrando-lhe a unha do polegar, que espetava o indicador com frenesi.

Já a meio da porta o Sebastião parou perplexo. As palavras da sogra davam-lhe que pensar; e não era a primeira vez, que melhor avisado, ele tinha mudado de parecer diante daquela ameaça da velha.

Boquejavam pela cidade que a Romana Mência tinha uma bota de potro inteiriça, que fora de seu defunto marido, cheia de meias doblas e patacos em prata; a qual, segundo os noveleiros, estava enterrada por baixo do oratório da casa.

Se fora essa bota o talismã que prendera o Sebastião aos encantos da Miquelina, não reza a crônica; mas que era ela o condão com que a velha amansava o turrão do genro, e lhe abaixava a grimpa no meio de seus frenesis, nisso maldavam os murmuradores, quando ao cair da tarde, na Ribeira do Peixe, tomando a fresca e assistindo à chegada das canoas dos pescadores tasquinhavam na vida alheia.

Verdade ou não, o caso é que o tabelião já a meio da porta, parou atado, e esteve um instante a considerar no meio de tirar-se da embrechada. A Romana, que esperava pela volta, disfarçou.

— Enfim não havemos de brigar por causa disto, disse afinal o Sebastião virando-se.

— É como queira; eu cá danço segundo me tocam, replicou a velha.

— Vou pensar sobre o caso, e depois falaremos.

— Está bem aviado! Ainda vai pensar? Pois eu cá não sou de sanxa e marranxa; já pensei e repensei. Basta que trouxe o rapaz comigo, para duma feita deixá-lo no cartório. E por sinal que há de estar bem cansado de esperar, o coitado, feito pé de muro, aí defronte da casa.

— Então a senhora já contava com a cousa?... perguntou o Sebastião sentindo revoltar-se a sua dignidade de homem e de tabelião.

— Pois eu podia capacitar-me de que o senhor rejeitasse um tão bom achado?... Olhe, que o rapaz escreve que é mesmo um debuxo.

O tabelião sacudiu os ombros desdenhosamente.

— Mande-mo cá, senhora, que eu lhe tirarei os pontos.

Sumiu-se o Sebastião pelo corredor, em demanda do cartório, onde em pouco foi achá-lo a Sra. Romana, que levava o nosso Ivo à sirga, tirado pela aba do gibão.