À rua da Quitanda, nome que lhe viera da banca de marisco, já então mudada para a Praia do Peixe, foi morar o reverendo Doutor Almada, numa casa próxima ao canto da Rua do Ouvidor, e fronteira ao quintal do tabelião.

Construída ao gosto do tempo, de regulares dimensões, o que se via mais notável na tal casa era uma grande pitombeira que havia na cerca, onde servia de regalo à vista pela beleza de sua copa frondosa, e de refrigério à calma pela fresca sombra que derramava no horto.

Era costume naquele tempo, mais do que hoje, de acompanharem-se as dignidades da igreja de não pequeno número de fâmulos, de ordinário mancebos que na qualidade de minoristas cursavam as aulas e se preparavam para tomar as ordens maiores. Formavam essas famílias eclesiásticas pequenos seminários, que se não eram de profanidades, como dizia um célebre pregador, não estavam isentos delas.

Entre os fâmulos do nosso prelado, e primeiro dos minoristas, contava-se um sobrinho, Cláudio de nome, endiabrado rapaz, que fazia-as todas e dava sota e bastos ao mais arteiro dos garotos da cidade.

As horas de folga e os dias de sueto, passava-os aquela rapazia trepada na pitombeira, comendo fruta e desinquietando as vizinhas, a quem atiravam as cascas e perseguiam de galhofas. De todas, porém, as mais expostas às chácaras dos minoristas eram a Miquelina, mulher do tabelião, e sua filha Marta, por ficarem defronte.

Das grimpas da árvore, ocultos pela folhagem, devassavam os rapazes não só todo o quintal, como a varanda de jantar, e os quartos do outão. Não punham mãe e filha o pé na cerca, nem passavam por perto das janelas, que não fossem alvo dos remoques e chacotas dos brejeiros.

Advertido o Sebastião do desaforo, uma vez saiu à varanda com a sua mais grave compostura tabelioa; e em voz de audiência, fanhosa e estridente, intimou aos rapazes que se comedissem. A resposta foi uma tremenda surriada e um granizo de caroços de pitomba, que bombardeou a respeitável penca do Sebastião Ferreira.

Vendo em grave risco, não somente a integridade de sua pessoa, como a dignidade de seu caráter público, o tabelião bateu em retirada, e abrigou-se por detrás de uma pilastra da varanda.

Com os escreventes acudira o Ivo, que aproveitara a ocasião de avistar-se mais de perto com Marta, e atirar-lhe um segredinho ao passar por alguma porta entreaberta. À vista do desacato que sofrera o Sebastião, correu o rapaz a ele:

— Deixe-os estar, senhor tabelião, que amanhã virei munido de meu bodoque, e então lhes faremos as contas. Hão de ver o que é mais rijo, se as suas pitombas, ou os meus carolos de barro.

Ficou o tabelião um instante perplexo, e como saboreando o antegosto daquela desforra que lhe oferecia o escrevente; mas ao cabo, resolveu não consentir na travessura do rapaz.

— Nada de vias de fato, moço, que não condizem com um oficial de Justiça de El-Rei. Estou que eles com a ceboleta que lhes dei se aquietarão; e quando não, irei então às vias judiciais, e terão de haver-se comigo.

Longe de se aquietarem, redobraram os minorenses as diabruras, e tão apoquentadas se viram a Miquelina e a filha, que todo o santo dia viviam encerradas na sala de frente, para escaparem às chançonas dos formigões. Não tardou porém que desconfiassem do couto, e então levavam a espiar pela rótula, atirando bouquinhas e escritinhos pelas frestas.

Quando se tornavam por demais insuportáveis, a senhora Miquelina mandava pela filha chamar o tabelião, o qual tomando a competente pitada, sobraçava o seu espadim de cerimônia, encaixava na cabeça o enorme tricórnio, e saía fora flanqueado dos escreventes armados de réguas, cunhetes e cabos de vassouras. Com a aparição daquele piquete, desaparecia o bando dos minorenses, que se ocultava no canto da casa, à espera de vez para outra investida.

A princípio mordia-se o Ivo com a maganeira dos minorenses; porém mais tarde, cogitando melhor, se consolou da perseguição que faziam à moça, pelas ocasiões que lhe davam de vê-la no cartório, quando ia ao pai com recado da senhora Miquelina.

Além dessas rápidas entrevistas, arranjara o Ivo um meio engenhoso de comunicar-se inocentemente com Marta.

Tinham as casas antigas uma particularidade, de que nunca me deram cabal explicação. Havia nas portas interiores junto ao solo, uma pequena aberta em meia-lua, de palmo de altura. Se era para não impedir ao bichano a caça dos ratos; se para dar a estes passagem franca, evitando que roessem a tábua ou esburacassem o soalho, é ponto este de arqueologia que ainda não foi decidido, e espera a profunda investigação dos que desenterraram os ossos de Estácio de Sá.

O certo é que na porta da serventia interior do cartório havia um rombo daqueles; e que uma galinha com a sua ninhada de pintos, abusando da liberdade, que as donas de casa costumam deixar nesse período interessante da criação, todas as manhãs se introduzia no santuário forense; e faltando com o respeito devido à veneranda poeira daquela arca, levava a ciscá-la por baixo das mesas e prateleiras.

Foi essa visita uma fortuna para o Ivo, que sentia a sua jovial mocidade sufocada pelo silêncio espesso e polvorento daquela atmosfera de alfarrábios. Desde o primeiro dia em que apareceu-lhe a ninhada no cartório, buscou ele entrar na privança e ganhar a amizade daquela família galinácea. Mas a poedeira mostrou-se arisca, lembrada sem dúvida dos pontapés que lhe disparavam o tabelião e seus escreventes, quando ela passava-lhes por baixo da mesa.

Mudaram essas disposições logo ao outro dia, pelo cuidado que teve o rapaz de levar no bolso do gibão uma broa seca de milho, a qual lhe servia não só para ir merendando enquanto copiava, mas também para familiarizar-se com a ninhada, espalhando as migas, que ela vinha comer a seus pés.

A cabo de uma semana estavam íntimos, a ponto que em toda confiança deixava a galinha ao Ivo apanhar-lhe algum dos pintainhos, e alisar-lhe a penugem dourada. Então levou o rapaz de casa certo papelinho, onde havia pintado um coração com asas que voava pelos ares, como se fora um pombinho, e que era de súbito trespassado por uma seta cruel.

Esse papelinho feito em rolo e atado com um fio de seda cor-de-rosa, guardara-o ó rapaz no peito da véstia com todo o resguardo porque nem o perdesse, nem o amarrotasse.

Na volta do meio-dia, vinda que foi a ninhada ao cheiro da broa, apanhou o Ivo um dos pintainhos, e pondo-lhe no pescoço à guisa de colar o papelinho enrolado, guardou-o na gaveta, tendo o cuidado de o regalar de migas, para evitar que piasse muito forte e avisasse o tabelião.

Não tardou que assomasse à porta o rostinho de camafeu da Marta, que vinha a recado da mãe, por causa das perseguições dos rapazes do prelado. Como os olhos da menina, embora com disfarce, de curiosos que eram, todas as vezes se enfrestavam pelo vão dos armários, viram o pintainho, que lhes mostrava o Ivo, e mais a redoma de papel que tinha ao pescoço.

Se ela entendeu a mímica, não se sabe; mas no dia seguinte quando a ninhada beliscava-lhe os pés impacientes pelos farelos da broa, notou o brejeiro do escrevente que um dos pintainhos tinha uma crista artificial. Era nada menos que uma perpétua branca, na qual contra todas as noções da botânica, achou o nosso namorado um perfume suavíssimo.

Desde então se estabeleceu por aquele novo correio uma correspondência inocente e pitoresca; pois de urna parte escreviam as pinturas e da outra as flores.

É preciso advertir que apesar da esperteza do Ivo, não passavam de todo desapercebidas do Sabino estas artes.