Cedo veio uma manhã, fatal manhã, que dissipou os fagueiros sonhos do nosso Ivo, e anuviou-lhe os dias prazenteiros, ali fruídos naquele soturno aposento, que lhe fora um seio de Abraão.
E todavia raiava o sol brilhante, e o céu ria-se de tão azul e transparente. Os passarinhos chilreavam entre os ramos das árvores, meneadas pela fresca brisa do mar, que já começava a soprar; e o escrevente, de coração farto e espírito folgazão, esforçava-se com ardor e prazer no trabalho, para adiantar o cumprimento da obrigação, de modo a distrair uns momentos, os mais felizes da sua vida, quando pingasse meio-dia da torre de São Bento.
Ainda faltava cerca de meia hora; mas a galinha, ou porque esse dia se expedisse nas suas correrias, ou porque se fosse cada vez mais amorando ao lugar, apresentou-se com a ninhada. Recebeu o rapaz com o costumado alvoroto, que logo cedeu a grande desconsolo; pois desta vez não traziam os pintainhos a prenda a que se acostumara o nosso namorado.
Já se sabe que não ganharam as migas da broa; além de parecer-lhe justo castigar a pouca diligência do mensageiro que vinha debalde, entendia o rapaz que era o modo de escorraçar dali a ninhada, e fazer que a menina reparasse o seu esquecimento, se não era antes alguma pirracinha.
Piavam os pintos e cacarejava a galinha, a espicaçarem-lhe as pernas, e ele a enxotá-las com a ponta do pé e a régua; donde tal ruído se levantou, que já era um escândalo naquele soturno asilo da murmuração forense. Felizmente o Sebastião Ferreira, quando se embrenhava em um alfarrábio, não dava pelo que ia cá fora.
Nessa conjuntura soou pelo cartório um "zute", ao qual levantaram os escreventes a cabeça de supetão para fitarem o vulto do tabelião. Este segurando na mão esquerda um auto, com a direita erguida e espetado para o Ivo o indicador, três vezes fechou em croque e abriu a formidável falange.
De pronto acudiu o rapaz ao chamado, acercando-se da mesa grande.
— Um edital por este teor e forma! disse o tabelião com o laconismo do costume.
Mas a galinha e sua ninhada não deixavam de atormentar o Ivo à gana das migas de broa; e faziam tal matinada e cacarejo por baixo da mesa e entre as pernas do Sebastião Ferreira, que deu ele enfim pelo atrevimento dessa profanação de seu cartório transformado em terreiro de criação.
— Enxote-me esta cambada, moço! gritou o velho escriba.
Fê-lo o Ivo, mas debalde, que a ninhada lhe voltava no encalço:
— É teimar em vão, já agora tomou esta manha.
— Feche a porta que já não tornam.
— E o buraco? retorquiu o Ivo apontando para o rombo. O remédio é prendê-la no galinheiro.
— Pois prenda-a, e não me atormentem.
Isto, disse o Sebastião ao Ivo e à galinha conjuntamente.
Lesto, como o galgo que aventou a caça, tangeu o rapaz diante de si a ninhada pelo corredor a fora em busca do quintal, com o ouvido alerta e olhar à espreita na esperança de lobrigar de longe a filha do tabelião. Mas não viu sombra da linda imagem que trazia n'alma.
Encaminhou-se pois ao galinheiro, bem desconsolado de sua vida; e lá deixou, com a ninhada, a esperança de receber naquele dia a lembrança do costume. Ao voltar tropicou com a fraqueza e tremor que lhe deu das pernas.
E não era para menos. Encontrara-se rosto a rosto com a Marta, que ali estava diante dele, palpitante, como um passarinho sob o olhar do gavião, e fechada em seu enleio, como a flor que abrocha em botão, com o temporal.
Tinha a menina cingida ao seio pelo braço esquerdo uma franga de penas mui alvas, que a brancura de sua tez escurecia. Andava triste aquela diva do poleiro, talvez pelo seu estado interessante, pois achava-se no primeiro choco. Daí vinham os desvelos de Marta, que depois de a tratar, ia levá-la ao galinheiro.
Com o susto que sentiu a rapariga dando com o Ivo em frente a si, escorregou-lhe do braço a franguinha que, passado o primeiro instante de atordoamento, disparou a correr. Após ela partiu Marta, e no encalço de ambos Ivo, que se não fez esperar.
Começaram então as corridas e reviravoltas, de que se lembra com saudades quem em menino se divertiu a apanhar uma galinha no terreiro da casa paterna. E os logros que pregava a maldita, e as quedas que se davam no brusco torcer do corpo, e as boas gargalhadas com que se adubava a travessura?
No meio do pega que ia pelo quintal, não sei como foi, que os dons em vez de apanharem a franga, se agarraram a si. Um maldoso era capaz de cuidar que se tinham abraçado.
— Ai! gritou Marta, soltando-se da cadeia que a prendia.
Trêmulo, o rapaz não teve ânimo, nem forças de retê-la; e ficou palerma, a olhar, balbuciando em voz sumida:
— Não foi por querer!...
— É capaz de me pegar?... acudiu Marta com petulância, acenando uma corrida. Nem nada!
— Quer ver?
E o Ivo disparou atrás da menina uma nova corrida, que depois de muitas negaças e risadas, veio como a primeira acabar em abraço.
Desta vez, naturalmente pelo cansaço, deixaram-se ficar os namorados como estavam, arrimados a uma latada de maracujás, juntinhos e entrelaçados pela cintura.
Ápage! Que tremenda algazarra soou de repente na copa da pitombeira Onde já estavam encarapitados o Cláudio e seus companheiros.
— Está bonito!
— Ai! que desejos!
— Mais outro!
— Bem apertadinho!...
— Agora uma beijoca!
— Ora, sem cerimônia!
— Sô malandro!...
— E o velho tonto que não dá pela maroteira!...
— Pato choco!
— Quiá! Quiá! Quiá!...
— Abraça, abraça, que da pele te há de sair!
— Gostas, hem? Pois hei de dar-te um bem apertado, mas é de embira!...
— Ora vejam que patola!
— Bigorrilhas!
— Desavergonhado!
Esta saraiva de chutas e ditérios misturada de caroços de pitomba, não veio aos esguichos, o que talvez se induza das falas assim apanhadas. Foi uma vaia e caiu de roldão sobre os dous míseros namorados, como o fracassar de um raio que os fulminasse.
Marta, criando-lhe asas o pejo, sumiu-se no interior da casa. Quanto ao Ivo, seu primeiro ímpeto foi afrontar a récua dos minoristas, e expugná-los a pedra. Mas lembrou-se do tabelião, e esfriou; embiocando-se no gibão e esgueirando-se pela cerca, pôde ganhar o corredor.
— Que ficou a cheirar lá por dentro, moço? gritou-lhe o tabelião ao vê-lo entrar.
— Saberá Vossa Mercê que... Sim, senhor, que... a franga deitou a correr, e foi preciso apanhá-la!...
— Apanhar... apanhar... repetiu o Freire arremedando o Ivo com o seu mais esganiçado falsete. Apanhar precisava você na cabeça, mas era um carolo desta régua.
— Alto lá, Senhor Sebastião, que os truques não foram do ajuste.
— Não me respingue, hem!
Ainda uma vez sofreou o rapaz o seu ímpeto, lembrando-se de Marta cujo piso sutil lhe parecera ouvir do lado da porta.