No dia seguinte abriu o Dr. Pedro de Mustre a devassa e, inquiridas as testemunhas, mandou em segredo de justiça lhe fosse o feito concluso para julgar.

Quando chegou à notícia do prelado que o ouvidor estava devassando de seus fâmulos, o reverendo urrou com a afronta, e no primeiro momento disse cousas que muito haviam de alegrar a Satanás, se as ouviu. Vindo a reflexão, mandou chamar o vigário forâneo, o licenciado Vilalobos, e com ele praticou encerrados ambos na câmera eclesiástica.

Nessa mesma tarde apresentou-se em casa do ouvidor o Padre Rafael Cardoso.

Era uma sexta-feira, e contava-se 30 de outubro. Estava o Dr. Pedro de Mustre aproveitando o tempo em arranjar uma pacotilha para a viagem que tinha de fazer por aqueles dias ao Espírito Santo, onde ia em correição tirar devassa da morte do capitão-mor assassinado à boca-de-fogo, assim como de outros graves malefícios. Apreciador do bom prato, o digno magistrado não deixava, nas suas excursões judiciárias, de levar sofrível provisão de alguns temperos prediletos, que naquele tempo, e talvez que ainda hoje, se não encontravam pelo interior.

Já tinha ele diante de si na mesa vários embrulhos de drogas, e ajuntava uma porção de cominhos espalhados na gaveta, quando entrou-lhe o Padre Rafael Cardoso.

— Deus dê boas-tardes ao senhor ouvidor.

— As mesmas a Vossa Reverendíssima. O que o traz por esta sua casa? perguntou o magistrado com fingida simpleza.

— Motivo bem desagradável, senhor ouvidor; mas está nas mãos de vossa mercê que daí não venham outras e piores conseqüências.

— Como então?

— Bem a meu pesar. e por obediência ao superior, que é um dos preceitos da nossa Santa Religião, venho por ordem do reverendíssimo senhor Vigário-geral, licenciado Francisco da Silveira Vilalobos, notificar a vossa mercê para devolver incontinenti a devassa tirada por esta Ouvidoria contra os fâmulos do reverendíssimo prelado ao juízo eclesiástico a quem só releva este assunto

— Ah! foi só a isso que veio? E se eu não quiser receber semelhante notificação?...

— O senhor ouvidor não fará isso!

— E por que o não farei, reverendo, se desconheço a autoridade com que o vigário-geral ou ainda o administrador se intromete na jurisdição secular, e tem a protérvia de mandar intimações a mim, ouvidor-geral desta comarca?

— Assim, Vossa Mercê persiste?

— Tenho dito.

— Neste caso sou forçado a consignar a vossa mercê três dias para cumprir a notificação sob a pena de excomunhão maior, que em nome do senhor vigário-geral lhe comunico pelas três canônicas admoestações.

Ao ver o tom citatório, que tomou o beleguim do vigârio-geral, e sobretudo ao ouvir a ameaça de excomunhão, teve o Dr. Pedro de Mustre ímpetos de agarrar o padre pelo gasnete, e atirá-lo pela janela fora. Mas avisou que seria derrogar de sua hierarquia, tomar ao sério aquela farsa eclesiástica.

Entretanto havia o Rev. Rafael sacado do bolso da batina um rolo de papel, e depois de ler por três vezes a canônica e paternal admoestação, estendeu o rolo ao magistrado.

— Vem a ponto! disse o ouvidor com ar zombeteiro. Estava mesmo à cata de um papel para embrulhar este cominho!

E seu dito, seu feito.

— Cautela, senhor ouvidor! Veja o que faz!...

O Dr. Pedro de Mustre cresceu para o padre, e calcou-lhe a manopla no ombro:

— O reverendo já fez as suas três admoestações; agora quero eu fazer-lhe uma, uma só e que não tem nada de canônica. Suma-te e não me esgote a paciência.

Não recalcitrou o Padre Rafael Cardoso, que só ao transpor o limiar da porta sentiu dissipar-se o calafrio que produzira nele o olhar do ouvidor.

Ficou em segredo essa ocorrência, da qual não transpirou nova na cidade. Por sua parte o ouvidor acreditando que a tal notificação não passava de uma ameaça para meter-lhe medo, persistiu em não tomar ao sério a empófia do prelado, e a ninguém falou do caso, que ele tinha como não sucedido.

Quanto ao prelado e sua roda, como esperassem reduzir o magistrado a abrir mão da devassa, assentaram que não era prudente metê-lo em brio com a divulgação do fato, o que tornaria indispensável a excomunhão. Embora resolvido a não recuar da grave censura, quando a necessidade o exigisse, entendia o prelado que não devia levar o ouvidor a tal extremo, tendo por mais prudente prevenir do que punir.

Assim decorreu o tríduo da notificação e veio o dia de finados que esse ano caiu em domingo. Durante esse tempo preparou-se o Dr. Pedro de Mustre para a viagem do Espírito Santo, fixando sua partida precisamente para a segunda-feira.

Já o galeão, que o governador pusera à disposição do presidente da comarca para transportá-lo em sua correição, estava sobre amarra, defronte do Rossio do Carmo, aprestado para a viagem e só esperava o magistrado para levar d'âncora e fazer-se ao mar.

A viagem do ouvidor era naquela época fato importante, e pois servia de tema à parlice das calçadas e boticas. Sucedeu que ouvindo falar da próxima partida do Dr. Pedro de Mustre, a qual estava para a madrugada seguinte, o Padre Rafael Cardoso soltou uma risadinha sarcástica.

— Vê-lo-emos!

— Cuida V. Revma que não se partirá o ouvidor?

— Não sei, tornou o padre, metendo-se na concha. Se nesta terra, onde tudo anda em bolandas, se consente comércio com excomungados!...

— Mas então?...

Rompera essa exclamação do pasmo que deixaram na roda as palavras encobertas do padre.

— Deus lhes dê as boas-noites, disse o reverendo embrulhando-se na capa; e sem mais abalou.

Derramou-se imediatamente pela cidade o boato assustador de que o Dr. Pedro de Mustre ia ser excomungado pelo prelado, se àquela hora da noite, sete dadas, já não estava. Uns recebiam a nova persignando-se; outros volviam os olhos em torno, como se receassem o contacto do réprobo; e por toda a parte o rebate ia assoprando no ânimo da população o terror e o assombro.

Não foi Ivo dos últimos a saber da novidade; e atinando com a razão do conflito armado entre o prelado e o ouvidor, sem mais detença tomou seu partido.

Imediatamente deitou-se para o Beco do Cotovelo; mas em vez de buscar a casa, bateu à rótula da tia Pôncia:

— Quem é? perguntou a regateira acudindo ao bater.

— Sou eu, tia Pôncia, não me conhece?

— Ah! o enjeitadinho?. . Ora, esta minha língua escorrega, que é um Deus nos acuda. Mas não foi por mal, menino. E para bem dizer não é crime ser enjeitado, ainda que... Está bem, isto agora não vem ao caso. Então, menino, que bom vento o trouxe por cá? É grande novidade?

— Pois não sabe o que vai pela cidade?

— Eu?... Sou lá alguma abelhuda mexeriqueira para andar metendo o nariz por toda a parte! Mas visto isso, sucedeu alguma cousa? O que é, menino? Ande, não se taça de rogado! Diga de uma feita!

— Ora, faça-se de novas? Então ainda lhe não soou que o prelado ia excomungar o ouvidor?

— Abrenuntio!... Credo!.. — Quem se pode julgar seguro quando a gente grande leva dessas!... Mas é que alguma ele fez, o tal doutoraço, que também não é lá boa rês. Eu desde que vi aquele toutiço de frade, que lhe tirei as inquirições.

— O ouvidor não fez nada de mais, tia Pôncia. O prelado, ou lá sua gente, que eu não duvido fosse ele mesmo, começou a desinquietar a família do tabelião, e como este não esteve pela graça, deram-lhe uma assuada. Era o caso de devassa, e o Dr. Pedro de Mustre por queixa do Sebastião Ferreira, tratou logo de tirá-la, como tinha de obrigação. Daí vem tudo.

— O caso é este?... disse a velha piscando os olhinhos. Pois, menino, adeus, que tenho mais em que cuidar. (

Fechou a Pôncia a rótula; mas poucos instantes decorridos, o Ivo oculto numa esquina a viu sair à sorrelfa embrulhada na mantilha e enfiar rua acima a trote batido.

Era o que ele esperava.

Uma hora depois nos quatro cantos da cidade corria a voz de que o motivo da excomunhão fulminada pelo prelado não era outro no fundo, senão a raiva de ver burlados os seus requebros pela filha, do tabelião.

A tia Pôncia tinha lançado em uma ou duas casas de terço, por onde passou, aquela semente que brotou com rapidez espantosa. O povo murmurava: e teria dado desde logo sinais de descontentamento, se não fosse a hora da noite, pois já estavam muitos recolhidos.

Em todo o caso o motim ficava armado pelas comadres, tão jeitosamente como o fariam as gazetas, que são as comadres do tempo de agora.