Amanheceu o dia 3 de novembro sob a grave expectação de um grande acontecimento.
Muito antes das primeiras e tênues alvoradas, abriam-se as portas das casas e os moradores vinham à soleira, na esperança de colher algum vago rumor, que lhes comunicasse o começo do sucesso extraordinário que todos esperavam, mas ninguém previa qual fosse.
Avistando-se uns aos outros, inquiriam-se mutuamente acerca do caso que os punha em alvoroto; mas nada com isso adiantavam, pois nada mais sabiam além do zunzum, que tinha corrido a noite passada, e a que dera causa a indiscrição do Padre Rafael Cardoso.
Quando a primeira barra listrou o horizonte sereno e esclareceu os cimos da Jurujuba, o Dr. Pedro de Mustre Portugal saiu de sua casa, e acompanhado por sua comitiva, composta de dois beleguins e um galego, dirigia-se ao porto a fim de embarcar para o Espírito Santo.
À porta os vizinhos e alguns curiosos que tinham vindo ao cheiro da novidade, se despediam do magistrado com os costumados votos:
— Boa viagem, senhor ouvidor!
— Deus o acompanhe!
— Amém! E o traga a salvamento.
— Que vossa mercê torne, como vai, na paz do Senhor!
E outras muitas variantes da mesma cortesia, a que o Dr. Pedro de Mustre respondia:
— Obrigado, minha gente! Obrigado; até a volta em que espero achá-los a todos em paz com a sua consciência e com a justiça.
Nisso rompeu entre os presentes o Padre Rafael Cardoso, acompanhado de dois acólitos com tochas acesas. Perfilando-se em frente ao magistrado, desdobrou um papel onde se via o grande selo da Igreja, e alçando-o com a mão esquerda à guisa de estandarte, levantou-se no bico dos pés a fim de fulminar do alto com a palavra e o gesto ao corpulento magistrado:
— Auctoritate Dei Patris Omnipotentis et Filii et Spirítui Sancti et beata Dei genitricis Maria, omniumque Sanctorum, pro Vicario generale, te excommunicamus, doctor Petrus de Mustre Portugalis, anathematisamus, et a limitibus sancta matris Ecclesioe sequestramus; et nisi resipuerint et ad satisfactionem venerint, sic extinguetur lucerna eorum ante viventem in soecula saculorum.
Depois de ter ejaculado de um jorro a fórmula do ritual romano, o reverendo ingurgitou-se como um odre para gritar, vibrando a execração com o braço hirto:
— Anathema sit! Amen! Amen! Amen!
O povo em torno caíra de joelhos e automaticamente, possuído de indizível terror, ia repetindo: — Amém!
Ficara o Dr. Pedro de Mustre atordoado com a excomunhão maior que lhe acabava de lançar o padre. Além de não acreditar que o vigário-geral fosse capaz de levar a efeito a sua ameaça, a solenidade da cerimônia e o terror que infundia no povo, o deixaram profundamente abalado.
Quando deu por si, estava só, no meio da rua; já o isolamento do réprobo caía sobre ele; nas esquinas ainda aparecia alguma gente a olhar o maldito; mas não ousava aproximar-se; e os próprios meirinhos, um tanto arredados, procuravam um pretexto para se escamarem.
Ordenou-lhes o ouvidor que levassem aviso do acontecido a alguns amigos e pessoas de conselho, pedindo-lhes para virem à sua casa; feito o que recolheu-se a esperar que chegassem para deliberar com eles no mais consoante à difícil conjuntura em que se achava.
Entretanto o povo afluía para a casa da Câmara, onde naquele tempo se consultavam e decidiam os mais graves negócios da governação e regimento da terra; pois aí estavam os juizes e procuradores do povo, que formavam o Senado da cidade.
Isto sucedia naquele bom tempo de governo absoluto, em que havia franqueza e lisura. Agora, que se diz por aí vivermos em regime constitucional, ainda se ajuntam no mesmo sítio, onde era a antiga vereança, os que se inculcam de representantes da nação; mas já nas suas horas de aflição, nos seus dias inquietos, o povo não aflui mais para ali, pois tem os mais olhos voltados para São Cristóvão.
Ao rebate que ia pela cidade acudiu logo o juiz do povo, João Batista Jordão; como presidente que era da Câmara, convocou todos os oficiais dela, e bem assim os homens bons e o povo, para em vereação avisar-se sem perda de tempo sobre o caso estranho e tão fora da norma comum, que não havia exemplo de outro.
Estavam já bem excitados os ânimos. A insistência que fizera o prelado para a mudança da Matriz, era ainda muito recente; e deixara viva no espírito popular certa indisposição contra o Dr. Almada.
O povo tem a religião do passado: ele venera as tradições da pátria e da cidade; deleita-se com as relíquias e antigualhas, que lhe são como recordações da infância, e lhe retraçam o berço onde se embalou à sombra da fé rude de seus antepassados. Por isso não há mais puro santuário da história, do que seja o povo.
Os fluminenses daquela era, em que a vida não se tornara ainda uma empresa a comanditar, tinham seu fraco pela velha igreja, que primeiro se erguera na terra selvagem da Guanabara; e eram particularmente devotos de São Sebastião, que, na sua crença ingênua, se mudara para o Rio de Janeiro a fim de servir de patrono a essa terra de sua predileção.
Esse fermento de desfavor contra o Dr. Almada, veio azedá-lo a excomunhão do ouvidor, geralmente atribuída na cidade aos escândalos do prelado que sabiam ser derretido por mulheres, e que se metera a engraçar com a filha do tabelião.
Se ainda havia alguma consideração nos ânimos tolhidos pelo respeito à igreja, desapareceu de todo com a irrupção que fez na praça um magote de rapazes. Era a corporação dos estudantes, que vinha também requerer à Câmara remédio contra o excesso e exorbitância da autoridade eclesiástica.
Já naquele século, essa respeitável corporação tinha aquele "diabo no corpo", que no tempo de hoje faz estrepolias nos exames, e mais tarde deve produzir a alma nova da nação, a mocidade regeneradora de uma sociedade católica.
Não era de admirar, pois, a parte ativa que tomavam os estudantes no motim; sobretudo sabendo-se que Ivo estava à frente deles, e os fazia rir a gargalhadas.