CAPITULO OITAVO

 
HISTORIA DE UM SONHO
 

I

Ganhou um medico, á cabeceira de um pobre, doença mortal. Chegou tão depressa a morte que não lhe deu tempo de chamar o padre. Chegou o padre, quando elle era já morto. Circumvagou os olhos pelos assistentes, disse que o chamaram tarde, e sahiu dando aos hombros.

As poucas palavras e o gesto impressionaram vivamente a viuva, que se quedou a pensar n'aquillo todo dia.

II

E eu velava á sombra do funebre leito. A viuva estava ali orando, soluçando, e sempre preoccupada, a pezar seu, com as palavras do padre. A intervallos, olhava ella para mim chorando, invocava-me como testemunha da virtude de seu marido, e dizia-me com anciedade: «Não se salvará elle?» — Não duvide, senhora — dizia-lhe eu; porém tristemente eu via que as minhas respostas a não socegavam.

Ao cahir da tarde, como ella desde a vespera não comesse nem dormisse, fiz que seu filhinho lhe offerecesse algum alimento. Debalde se esforçou por engulir. Então pediu um livro de orações. Abriu ao acaso um que lhe deram, esperando achar ali algum alivio, que não achou; pelo contrario, com a leitura cresceu-lhe a inquietação. Vi-lhe então no rosto uns tregeitos involuntarios, e um crispar de mãos, e por fim um grito e logo cahiu desmaiada nos braços de quem a levou d'ali.

III

Apanhei o livro cahido de suas mãos. Denominava-se Quotidiano do christão, e facilmente conheci nas paginas avincadas as passagens que ella tinha lido: eram os Pensamentos christãos para todos os dias do mez, pelo padre Bouhours, da companhia de Jesus. Tinha ella desmaiado quando lia no quinto dia uma meditação ácerca do Juizo final. Acontece sempre que o ferido ao cahir bate sempre na chaga. Alguns trechos do capitulo, cujas margens estavam laceradas, diziam assim: «Quão terrivel é o dia da ira do Senhor! Os justos escassamente serão havidos como taes: que será dos peccadores? Que sentença póde esperar o peccador impenitente de um Deus inexoravel? Oh! que terribilissima sentença! Ide, malditos, arder em fogo eterno! Ai! onde irão, Senhor, esses desgraçados que amaldiçoaes? Para que ponto do mundo quereis que se afastem, distanciando-se de vós? Onde é que está paragem tão funesta?

 

«SEXTO DIA

«O INFERNO «I. Que horror ganhariamos ao inferno, se podessemos ouvir os lamentaveis gritos dos condemnados! Suspiram, gemem, urram como bestas-feras em meio de lavaredas. Accusam-se de seus peccados, chorando-se, detestando-os; mas É TARDE. O chorar não lhes faz senão augmentar o ardor do fogo que os queima sem consumil-os. Penitencia dos condemnados! quanto és rigorosa, e inutil! «II. Não vêr Deus nunca, arder em fogo de que o nosso é apenas sombra; soffrer ao mesmo tempo quantos males ha ahi, sem allivio, sem repouso; sempre com os olhos postos nos demonios, sempre com o coração raivoso e desesperado, que vida! «III. Esses desgraçados enfuriam-se por terem desprezado tantas occasiões de salvarem-se. O recordarem os prazeres passados é-lhes um de seus mais penosos tormentos; mas o tormento superior a todos é a lembrança de terem, por sua culpa, perdido Deus.»[1] Pobre mulher! — disse eu entre mim lendo aquelle capitulo — vêr seu marido, tão bom homem, alcunhado de besta-fera! E topar em livro de piedade, onde procurava consolar-se, esta cruel sentença que de manhã ouvira da bôcca d'um sacerdote: É MUITO TARDE!... Quiz fechar o livro; mas o titulo do Dia seguinte, impresso em versaletes, susteve-me. {{bloco centro|«SETIMO DIA
«DA ETERNIDADE DAS PENAS DO INFERNO «I. Poderá ir mais adiante a cólera de Deus que castiga prazeres que tão pouco duram com supplicios sem fim? Que desgraça não é isto! Não bastará que os males d'um condemnado sejam extremos? É forçoso que sejam eternos? Uma picada de alfinete é mal bem leve; todavia, se este mal durasse sempre, tornar-se-hia insupportavel. Ora, os tormentos do inferno que serão? «II. Ó eternidade! Quando um condemnado podesse derramar lagrimas bastantes para fazerem quantos mares e rios tem o mundo, ainda que vertesse uma só lagrima em cada seculo, elle não estaria mais adiantado, depois de tantos milhões d'annos, como quando começou a penar. «Ser-lhe-ha forçoso recomeçar como se não tivesse nada padecido; e, quando tiver recomeçado tantas vezes quantos são os grãos de areia nas praias, os atomos no ar e as folhas nos bosques, nada d'isso lhe será contado. «III. Não só por toda a eternidade os condemnados soffrerão; mas, a cada instante, soffrem a eternidade inteira. Está-lhes sempre á vista a eternidade; em todas as dôres se lhes côa a eternidade. As penas infinitas continuamente lhes estão no espirito. Cruel idêa! deploravel situação! Arder por uma eternidade! chorar eternamente! Raivar sem fim!» Esta meditação corresponde ao Setimo dia, que é aquelle em que o Senhor entrou em descanso para admirar suas obras.

IV

Acabava eu de lêr, agitado, aquella pagina, quando a viuva recuperou os sentidos; mas quasi mentecapta. Exclamava ella que tinha a certeza de seu marido ter sido condemnado, por que não acreditava em tudo que a egreja ensinava, e morrêra sem confissão; accrescentava que o marido era bom para ella e para todos; que, ainda mesmo que a houvesse offendido, lhe perdoava pelo muito que elle estava padecendo, e que desejava ir juntar-se-lhe e consolal-o no inferno. Fallava em matar-se para mais depressa o vêr; e, dizendo isto, aconchegava o filho do seio, sorria-lhe, beijava-o convulsivamente, em duvida se devia matal-o; por quanto, dizia ella, o menino iria ao paraizo, se morresse então; e não se veriam mais, desejando ella leval-o ao pae.

Assim que ouvi os gritos, sahi do quarto mortuario para soccorrer, se fosse preciso, aquella afflicta gente, sobrecarregada com outra desgraça. Cercamos a joven viuva, vigiando angustiosamente os seus menores movimentos, por medo de que ella não praticasse algum acto de desesperação, de que dera mostras. Quizemos tirar-lhe o filho; mas ella dava ares de querer afogal-o antes que lh'o tirassem. Parecia já mais tranquilla que todos nós. Desfigurou-se-lhe cadavericamente o semblante; os olhos porém brilhavam, e o sorrir tinha um ar celestial. Fallava sem cessar do marido, e do prazer que ella teria em acompanhal-o no soffrimento. A mãe ajoelhou-se diante d'ella, que a levantou amorosamente, rogando-lhe que não pedisse a Deus pela sua alma.

Conseguimos em fim separal-a do filho, e levamol-os um apoz outro, elle já adormecido, e ella luctando comnosco, desgrenhada e rota. Seguiram-na os parentes, e eu fiquei sósinho á beira do cadaver.

V

Bem desejava eu tambem saír: carecia de distrahir-me. Piedade, cólera, fé, duvida, terror, mil contrarios sentimentos me agitavam, dos quaes eu não podia defender-me ao pé do esquife, e depois de similhante espectaculo! Encostei-me á banca onde estava deitado sobre uma alva coberta um crucifixo de marfim, e, contemplando aquella divina imagem, recolhi-me no mais intimo retrahimento d'alma. Perguntava eu a mim mesmo, com o coração apertado, o que devia crer-se da vida e morte de Christo, e se era certo que elle descesse do céo, como se dizia, para assombrar os justos, desesperar os peccadores, e conturbar a razão dos fracos. E a mim me quiz parecer que Jesus estava ali, e pensei vêl-o chorar, e que uma de suas lagrimas resvalou sobre o Quotidiano do christão, e tudo que eu havia lido n'aquelle livro subitamente se desfez.

Estava ainda comtudo a minha alma perturbada. Interroguei o Christo. Não me respondeu. Então entrei em duvida se eu estava adormecido ou desperto. Vi — seria sonho? — um oceano de trevas alcantilar-se á volta de mim, e no seio d'essa escuridão immensa lampejava um frouxo raio de luz. E esta luz saia das fendas de um sepulchro, e Jesus estava deitado vivo n'esse sepulchro. Eu quiz levantar a pedra que o cobria, mas uns verdugos envoltos em trevas me deceparam as mãos; eu quiz balbuciar, e arrancaram-me a lingua; e assim mutilado, cego e mudo senti-me arrebatado e precipitado ás entranhas de um abysmo, e comprehendi que estava no inferno. O meu unico soffrimento ahi era a cegueira, e a espectativa anciadissima dos supplicios que me esperavam. E, como só tivesse ouvidos para entender, escutei, e comprehendi o seguinte.

VI

Ao principio ouvi um rumorejar estranho, que rolava prolongando-se ao travez dos espaços infinitos, e depois decrescia até ao ciciar da folhagem que a brisa da tarde acaricia, e por fim augmentava em estridor até exceder o roncar das vagas cavadas pela borrasca. Estas comparações tiradas da terra não dão idêa da tristeza, do pungente e solemne d'aquelle immenso rugir de seres sem nome que eu não podia vêr e ouvir gemer. De toda a parte, suspiros, brados, soluços, gritos exhorativos, mas tudo distincto, conglobando-se sem confundir-se, e formando um brado unisono. Debaixo do sol não ha ahi espectaculo tão variado como o prantear d'aquellas almas, ressoando em choro universal quasi claro ainda, e mais afflictivo. Ao ouvir estes estrondos figurava-se-me que o sangue me escorria dos pulsos cortados, e o suor da fronte, e as lagrimas dos olhos, e tanto eu como tudo em redor soffriamos e supplicavamos.

VII

E uma voz exclamava: Oh! quanto eu soffro, Deus meu! Isto não terá fim? Vós, Senhor, que me atirastes ignorante a um mundo escuro, não me julgaes, apoz tantos seculos, bastante castigado dos meus desvios d'um dia?

E outra voz exclamava: Quando os meus peccados aqui me abysmaram, vossa mão, ó Deus, me amparava, e me ampara ainda; e, assim mesmo, em logar de diminuir, o meu supplicio augmenta. Soffro com quantos de longe molestei: tenho fome com os que eu poderia fartar; tenho frio com os que eu poderia vestir; peza sobre mim a cada hora e cada vez mais esmagadora a carga de males que fiz pezar sobre outros. Multiplicaram-se as minhas offensas como a herva sobre a minha campa esquecida, e as minhas feridas sangram sempre, e as minhas chagas lavram sem cessar. Isto é justo, meu Deus! Poderia eu ser feliz no céo, se visse o effeito de minhas obras? Em quanto fructifica a arvore fatal que plantei na terra, puni-me, Senhor! Mas não me tireis a esperança! O pouquinho bem que fiz na vida não germinará nem cobrirá, se o permittirdes, os vestigios das minhas iniquidades? Oh! quando nenhum ente vivo, n'algum logar do mundo, já não podér imputar-me seus soffrimentos, tende então piedade de mim, meu Deus!

E todas as almas peccadoras, unindo-se em um brado de misericordia, repetiram juntas, lá das reconditas profundezas: Tende piedade de mim! Tende piedade de mim!

Esta supplica em commum era a um tempo tão suave e dilacerante que eu imaginei que o ceo se abriria. Mas a noite que me envolvia espessou-se mais glacial; e o abysmo emmudeceu; e, apoz um instante de esperança, continuou a lamentar-se, correndo como o oceano nas fragarias da costa.

Ai! ai! — conclamavam os gritos que se extinguiam soluçando — é surdo o céo! é surdo o céo!

Nunca! nunca! — diziam outras vozes — Nunca! nunca! Meu Deus, que resposta á dôr! Nunca! nunca!

Descançai, filhos! — bradou um condemnado, que se me figurou, no tom de voz, ser um dos patriarchas do abysmo — Não profirais essa palavra horrida. Ahi sôa em vossos pobres seios um ecco das maldições da terra, e não palavra descida do céo. Ha mais de mil annos que padeço, e oro, e escuto o céo, e não ouço a resposta. Oremos, oremos sempre!

E o ancião entoou um cantico; e, ao primeiro versiculo, parou e debulhou-se em lagrimas.

Ai! — ressoavam ao longe milhões de almas gementes — Ai! o céo é surdo! o céo é surdo!

N'este lance, uma voz sobrelevou a todas, dizendo: — Ensinai-nos, ao menos, Senhor, a utilidade dos padecimentos. Se nos perdoasseis, acaso a vossa gloria padeceria com isso? A felicidade dos justos soffreria diminuição? Revoltar-se-hiam elles contra vós? Logo que as creaturas entraram á vossa presença, não se lhes acrisolaram os sentimentos de piedade? O padre que me estendia a mão quando era mortal e sujeito ao peccado, a esposa que eu amava, a mãe que me gerou, os amigos que me trahiram e aos quaes perdoei, os pobres que soccorri, e uma filha ingrata e amada a quem eu daria a comer o meu coração em ancias de fome, nem essa, ninguem vos intercede por mim? Hontem oravam elles quando eu me rejubilava nas culpas; pranteavam-me vivo e oravam por mim; e hoje esquecem-me, pendem para o crime, fogem da dôr; o amor a quem soffre e geme é sentimento ephemero, que vai mal para entes bemaventurados.

E a voz que fallava assim ergueu-se ainda para amaldiçoar, mas falleceu-lhe a força, e á maneira do vagalhão que rossa a nuvem rugindo, subita recaiu e expirou em prolongado gemido.

Mas logo um brado novo retumba mais estridente ainda, e, eu, ouvindo-o, não distinguia se era oração, se blasphemia.

E bradava: — Creio na vossa justiça, meu Deus; mas deixai-me crêr na vossa misericordia. Não é ella tão infinita como a vossa justiça? Não é eterna? Se me perdoaveis quando eu estava na terra, porque não me perdoais aqui? Se eu sou o mesmo peccador, não sois vós o mesmo Deus? E, se a morte me mudou, pôde a morte d'um ente como eu mudar a vossa immutavel natureza? Cansou-se acaso a vossa bondade? Exhauriu-se? Sois vós susceptivel de cansaço? E, se alguma de vossas virtudes é transitoria, de circumstancia e occasional, é forçoso que seja a bondade, aquella ineffavel bondade que nós ignorantemente consideravamos lá em cima a mesma essencial e inalteravel virtude vossa! Se assim é — proseguiu a voz desesperada — anniquilai-me, Deus Omnipotente! Esta existencia é inutil; sou de mais no universo. Que lucraes com as minhas dôres? Tendes precisão d'ellas? Retomai esta vida de que sem duvida abusei, e esta intelligencia que perverti; apagai em mim esta luz, visto que principiam a rasgar-se os veos que a escurentavam.

Tirai-me a lembrança do céo, a ancia de ser feliz, a necessidade d'amar, a necessidade de saber; tirai-me, sobre tudo, por piedade, o sentimento da justiça, porque eu não sou Deus, e a vossa justiça é um mysterio, e contra minha vontade, a blasphemarei. Deixai-me morrer, ó Deus! Deixai morrer quem soffre! Matai o peccado incuravel e a dôr esteril, a fim de que na creação não haja um só atomo que não palpite de reconhecimento e alegria, ao ouvir o vosso nome santissimo.

E um clamor horrendo abafou a voz que fallava; e, d'um angulo a outro do abysmo, todas as almas em tortura escabujavam, rogando a Deus que as deixasse morrer. E pediam a morte como os famintos mendigam pão; chamavam-na com os gritos da mulher em angustias de parto do seu primogenito, com a dôr da victima na fogueira, com o rugido da leôa que perdeu os cachorros, com o balido do cordeirinho que procura a mãe. E eu tambem a chamava, e me pareceu vêl-a aproximar-se, e beijei-lhe a mão glacial; e, quando me sentia morrer, despertei.

  1. O padre Bouhours foi um solerte engenho, bastante mundanal, que distillava a frio no seu gabinete aquella rhetorica medonha, cuja leitura, se lhe dessem valor serio, seria capaz de fazer abortar uma mulher gravida. Acintemente abastarda elle n'este livro a verdadeira doutrina ácerca do inferno, doutrina em que se aprende que os condemnados amam o peccado, pois que amar o peccado é odiar Deus; conhecendo, porém, a desmoralisação de tal pena, o padre Bouhours presume que os condemnados abominam o peccado, mas que os seus olhos se abriram já tarde, por maneira que substitue á pena immoral, mas apparentemente justa, uma pena de apparencia moral, mas para isso mesmo horrivelmente iniqua, por que detestar o peccado é amar o que ha mais avêsso ao peccado, isto é, a virtude, ou, mais ao claro, Deus. Segue-se que Deus deixaria infernados os que o amam e se arrependem de o haver offendido. N'outro capitulo da mesma obra o mesmo padre é de parecer que os condemnados não podem amar Deus. Mas, se elles não amam o bem nem o mal, nada amam; e então que vem a ser as penas espirituaes? Que soffrem? por que soffrem? por que se afflijem do perdimento d'um bem que não amam? e por que os afflige a perda dos prazeres que abominam? Tudo isso dispára n'um apontoado de sandices.