O Livro de Esopo/O judeu, o escudeiro e as perdizes

XLV. [O judeu, o escudeiro e as perdizes]

[Fl. 33-r.][C]omta o doutor[1] este emxenplo, e diz que hũu judeu queria passar pella terra de hũu rrey com muyto aver que comssiguo leuava; e rrogou a el-rrey que lhe désse hũu de ssua casa que o aconpanhasse sseguro, ataa que passasse sseu rreygno. El-rrey lhe deu hũu sseu scudeyro, do quall sse fiava muyto; e mandou-lhe que acompanhasse este judeu bem e ffiellmente, ataa que o passasse em ssaluo fora de ssua terra.

E quando este judeu foy em hũa mata, o escudeyro tirou fora de ssua espada pera o matar e rroubar-lhe sseu aver; e ho judeu lhe disse:

— Nom me mates, porque, sse me matas, aquellas perdizes que estam em aquella aruor te acusarom a teu ssenhor, e mandar-t’á matar.

O escudeyro escarneçeo do que o judeu dizia, e matou-ho, e tomou-lhe todo sseu aver que comssyguo leuaua.

E d’aly a pouco tempo pressemtarom a este rrey perdizes, sseendo a jantar. Este sseu scudeyro cortaua amte ell; e como a Deus prouue, compeçou este escudeyro de rryr, e nom sse podia teer nem fartar de rryr. Ell-rrey sseendo aa mesa nom lhe disse nada, e depoys que jantou, chamou-o a de parte, e porque rria tam fortemente aa mesa[2] que lhe dissesse a verdade. Ho escudeyro nom lh’o queria dizer, que sse temya. Elrrey[3] /[Fl. 33-v.] amtre afaaguos e ameaças ssoube d’ell a verdade, em como matára aquell judeu e lhe tomára todo sseu auer, e que o judeu, amtes que o matasse, lhe disera que as perdizes que estauam na aruor [o ac]usariam[4] a elle, e que o mandaria matar. Elrrey tomou d’elo gram nojo, porque amaua muyto o escudeyro:

— Por certo as perdizes te acusarom!

Depoys ouue consselho com sseus comsselheyros:

— O que mereçia este ’scudeyro?

E acordarom todos que morresse na forca.

E assy foy o escudeyro enforcado pelo mall que fezera.




Pe[r][5] este emxemplo o poeta nos amostra que nom façamos humeçidio, nem furto, nem outro graue pecado por cobijça de dinheyros[6], nem escondidamemte, nem manjfestamemte, ca do mal que homem faz, sse em este mundo nom ha peemdemça, ha-a no houtro de Deus, que he suprema justiça; mas[7] as mays de vezes ha peemdença em este mundo[8], porque nom he nhũa cousa tanto escomdida que sse nom ssaybha em algũu tempo; e no Avangelho diz[9]: Nichill occultum quod non rreueletur[10].

Aquell que faz omiçidio e furtos e outros pecados graues, que nom ha temor de Deus que nos criou e em cujo poder ssomos, nom he christãao[11], nem sse póde chamar, ca nom viue a[12] ley d’homem, mais viue como diaboo do Inferno, que senpre faz e cuyda em mall.

  1. Assim está, por extenso, no original.
  2. Talvez seja «e perguntou-lhe porque etc.»; com ponto e virgula depois de mesa.
  3. No comêço da pagina repete-se Ellrey, mas só com um r.
  4. O que ponho entre colchetes está roto.
  5. O ms. no logar do r está roto.
  6. No ms. drrºs.
  7. Postoque neste logar a lettra esteja um pouco apagada, vê-se que é mas, e não mais (e muito menos mays). De facto no ms. alterna mas com mais (mays); cf. fab. XXXIII, moralidade: «mas deuemos amar mays», onde se dá a coincidencia de, como aqui, a conjuncção mas concorrer com o adverbio mays.
  8. As duas primeiras pernas do m estão rotas.
  9. Talvez falte se antes de diz.
  10. No ms. quod e non estão em abreviatura. (Tradução do latim: Não há nada tão oculto que não venha a ser revelado)
  11. No ms. xpãao, abreviatura usual na idade media (xp = χρ = chr)
  12. Aqui a é proposição.