O MATUTO


Pasmado é uma velha povoação, outr'ora aldeia de indios, duas leguas ao norte de Iguarassú, na estrada de Goyanna. É celebre por seus ferreiros, ou mais especialmente pelas facas de ponta que estes fabricam, as quaes passam pelas melhores de Pernambuco onde têm estendida e tradicional nomeada.

Não ha terra que se não distinga por usança, defeito, virtude ou particularidade local, que vem a ser o seu como traço caracteristico, a sua feição dominante. Quem passa por Tigipió, na estrada de Jaboatão, encontra a cada canto tocadores de viola que vêm alegres, o pe no mato pé no caminho. Dos casebres do Barro o que logo se mostra aos olhos do viandante são mulheres metediças, com as cabeças cobertas com flores, os cabeções arrendados e decotados, os seios quasi de fóra. Costumes dos povoados onde ainda não tiveram grande entrada o trabalho e a instrucção.

Passando-se por Goyanna ouve-se d'aqui uma trompa, d'alli um baixo, adiante um piston, além um tromboni, uma clarineta, uma flauta, um assobio, uma harmonia ou uma melodia qualquer, e não se vê sala nem corredor que não tenha nas paredes uma, duas ou tres ordens de gaiolas com passarinhos cantadores e chilreadores. Ha ahi o instincto musico da Bohemia.

Quem atravessa Pasmado pela primeira vez tem a illusão de que todas as arapongas da mata proxima estão alli a soltar seus estridulos accentos. Mas logo vê homens tisnados batendo com o martello sobre a bigorna, folles assopradores, carvões ardentes e flammejantes. Então a illusão muda. O que parece é que todas as forjas de Vulcano foram transportadas para aquelle immenso laboratorio de instrumentos mais destruidores do que conservadores da vida e do socego alheio.

Neste particular, o de ser largo e opulento mercado de armas malfazejas, talvez Pasmado só possa contar em todo o imperio brazileiro uma rival—a côrte do sobredito imperio, na qual a navalha do capoeira disputa a primazia, em genero, numero e caso, á faca do matuto do norte. A côrte e a provincia neste ponto cortam-se bem. Uma não tem que fallar da outra.

No que Pasmado se parece com todos os velhos povos, é em ter casas esburacadas; entulhos e matos pelo meio das ruas; aqui uma baixa, alli um barreiro, onde, de inverno, coaxam os sapos dia e noite, respondendo á vozeria desentoada dos seus semelhantes que moram nas moitas formadas por dentro dos largos, sem licença nem prohibição da municipalidade.

A rua mais publica e principal da povoação é aquella por onde corre a propria estrada. Perto ficam os olhos-d'agua nativa onde os moradores vão prover-se da de que precisam, quando não aparam, por sua commodidade, como costumam, em potes e gamellas a que cahe das biqueiras da casa durante as chuvas.

O certo é que, ou indo buscal-a nas fontes ou aparando-a na porta da casa, não curtem sede os moradores de Pasmado dias e noites, ainda de verão, como curte a pobreza desta esplendida e orgulhosa cidade—primeira capital da America-do-sul.

Em um rancho ou garapeira que se via algumas dezenas de passos antes da povoação, estavam reunidos, por uma noite de 1706, á roda de um fardo de fazendas varios matutos que voltavam do Recife, onde tinham ido vender algodão. Entre elles havia dois almocreves das proximidades de Goyanna, um por nome Francisco, o outro Victorino.

O rancho não era mais do que o prolongamento da garapeira, com a qual tinha comunicação interior. Era, como são taes pontos, apenas envarado até meia altura e coberto de telhas. De um lado estava a longa mangedoura em que os cavallos dos rancheiros passavam a noite aproveitando, de mistura com alguns pés de capim, cortados de tarde, os talos e retraços que nella tinham deixado os cavallos dos rancheiros na noite anterior. Do outro lado o alpendre mostrava-se inteiramente livre, como convinha, a fim de terem os hospedes espaço para as suas rêdes, que elles armavam de um enchamel para outro, e donde a qualquer hora da noite podiam ver os seus animaes alguns passos de distancia, comendo si havia o que, ou estudando como muitas vezes acontecia. O dono da garapeira, responsavel pela segurança dos animaes, fechava as portas do puchado quando via os rancheiros recolhidos, e só reapparecia ahi de madrugadinha para receber destes a respectiva paga. Muitas vezes, estava elle ainda deitado quando ouvia uma voz que lhe dizia:

— Aqui fica o dinheiro, seu Ignacio.

Era a voz do rancheiro, o qual punha por baixo da porta a quantia devida. Nunca nenhum se ausentou sem ter primeiro cumprido o seu dever, com a proverbial probidade do matuto e do sertanejo do norte.

No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de algodão—eis o em que elle consistia.

Todos tinham os pés nús, e quasi todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portatil onde traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quaes serviam para dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Mettida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha. Da arma só apparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo occulto.

Já era noite, e dentro do rancho lançava crepuscular claridade o candieiro de azeite, que pendia, por uma corda corrediça, de um dos caibros da coberta.

Alguns dos rancheiros estavam com as mangas arregaçadas como si foram prestes para entrar em pugillato de vida e morte.

E de feito não era de outro genero o mister ou a luta que os ajuntara alli, uns de pé, outros inclinados sobre a barriga, todos com as vistas concentradas na superficie do fardo, onde uma taboa se pozera para servir de base a dois braços diferentes que nesse momento se alçaram e logo após se uniram pelas mãos, ficando firmes sobre os cotovellos. Um dos pegadores da queda-de-braço chamava-se Manoel Francisco; o outro era o Victorino. A queda-de-braço era já nesse tempo em grande uso entre os almocreves do norte.

Manoel Francisco era acaboclado, feio, baixo, grosso e reforçado; Victorino procedia de mulata e mameluco, era secco, musculoso e de semblante bem assombrado.

— Sustenta o motivo, Mané Francisco, sinão Victorino te lambe—disse um dos circumstantes, quando viu os braços inimigos se entesarem e ouviu o fardo ranger aos primeiros ensaios das duas forças que se experimentavam e mediam para uma grande luta, posto que dentro de acanhada arena.

— Este braço que estão vendo—respondeu Manoel Francisco—tem botado abaixo emquanto o inimigo esfrega um olho, muito curema rebingudo das ribeiras do Ceará e do Piauhy.

— Agora é que havemos de ver elle para quanto presta, e si tudo isto o que você está dizendo não passa de uma historia; retorquiu Victorino. Quando quiser cahir, diga.

— Si você é homem, mostre agora o seu talento—replicou Manoel Francisco, retesando o braço como quem queria entrar sem detença no momento decisivo.

Pegaram-se definitivamente os dois athletas.

O braço de Manoel Francisco dava dois do de Victorino; mas a resistencia que encontrou neste fez que não passasse nem uma linha da posição em que de principio se collocara. Eram duas pyramides petreas, immoveis, inabalaveis, uma talhada para competir com a outra na rijeza e na resistencia.

A queda-de-braço tem graça justamente quando os lutadores medem forças iguaes. Dá-se então o que é natural de pleitos identicos. Dividem-se as opiniões sobre a probabilidades da victoria. Uns, levando em conta as condições physicas dos combatentes, não hesitam em decretar, para o que lhes parece mais favorecido de tais circumstancias, as honras da peleja; outros, publicam que essas honras hão de caber, não a este mas áquelle contendor, autorizados por precedentes ou por outros muitos elementos de inducção e convicção. Fóra da arena dos pelejadores reaes, forma-se uma arena em que começam de porfiar os assistentes á pugna, discutindo, altercando, apostando cada qual pelo que suppõe ter por si mais probabilidades para o vencimento.

Foi o que se deu no rancho logo depois de se terem collocado defronte um do outro, ficando o fardo de permeio, o Victorino e o Manoel Francisco.

A cabo de alguns minutos, que bastaram a trazer os contendores cobertos de suor pelo esforço despendido, e antes deste pelo brio empenhado no jogo de honra, disse um dos rancheiros:

— Já você está sabendo, Mané Francisco, que o Victorino não é quem você julgava?

— Ora que tem isso? retrucou o que se achava mais proximo do que acabava de fallar. Ha de cahir como os outros; não ha santos que o accudam.

— Deixe-se disso, Renovato, deixe-se disso. Você não vê que ambos elles são dois cabras de talento?

— Sim, é verdade; mas você não dá o desconto. Olhe que Mané Francisco já tinha pegado com Damião e Thomaz, e a todos botou por terra.

— Ele me botou, é verdade—accudio Thomaz despeitado; mas de outra feita talvez não tenha a mesma felicidade. Olhe como o braço já lhe está tremendo, batido por Victorino.

— Aquillo é um peneirado que ele sabe.

— Sustenta o motivo, Mané Francisco—gritou Damião ao que minutos antes o tinha derribado.

— A coisa está feia. O que cahir para a aguardente.

— E o rancho.

— Está dito.

— Cahiu, cahiu, Mané Francisco! gritaram neste ponto muitas vozes, formando uma algazarra immensa, que repercutiu fóra do alpendre.

— Ainda não, ainda não—retorquiram outros no mesmo diapasão.

— Não foi mais do que uma negaça. Vejam lá como se levanta.

De feito o caboclo, depois de derreado quasi inteiramente o braço, o levantara lentamente até á altura em que se achavam no começo da luta: mas d'ahi não passou.

— Quem vence? perguntou um, logo que viu novamente restabelecidas a indecisão e a duvida.

— Nenhum vence—respondeu Francisco. Está visto que Mané Francisco e Victorino tem as forças iguaes.

— Não senhor. É preciso ir até ao fim. Um delles ha de poder com o outro.

— Não, não; disseram alguns da opinião de Francisco. Tem as forças iguaes, está acabado.

— Eu não me levanto si Victorino não se levanta—disse Manoel Francisco a modo de contrariado por ter encontrado no contendor força com que não contara.

— Eu não me levantarei sinão depois da sua queda—respondeu Victorino sem se alterar, antes com evidente serenidade.

— Levantam-se ambos, que já é tarde, e vem por ahi o Valentão-da-Timbaúba.

— O Valentão-da-Timbaúba! exclamaram os rancheiros, pondo-se de pé, inclusivamente os dois lutadores, que se separaram e com a vista percorreram como sobressaltados todo o ambito do alpendre.

— Quem disse que elle vem ahi? perguntou Victorino.

— Digo eu—respondeu Francisco. Por isso é preciso estar preparado para o receber.

— Si vier, ha de encontrar gente. Somos onze. Não ha de chegar um pedacinho delle para cada um de nós.

— Pelo sim, pelo não—disse Thomaz—vou pôr nova escorva na minha espingarda.

Vendo o Thomaz encaminhar-se para o lugar onde estava encostada a arma a que alludira, Francisco rindo-se, atirou-se dentro da rêde e disse aos companheiros ainda sobressaltados:

— Qual valentão, nem meio valentão! Rezem-lhe pela alma.

— Elle morreu?

— Morreu, sim senhor, e ficou bem morto.

— Você está gracejando, Francisco.

— Estou falando serio. Vou contar como o caso foi.

— O Valentão-da-Timbaúba era um malfeitor que por aquelle tempo commettia roubos e assassinatos na redondeza de muitas leguas de Pasmado. Esta alcunha foi-lhe dada pelo povo. Seu nome era Valentim. Não teve a fama extensa do Cabelleira, ao qual foi muito inferior na indole natural, na coragem e no physico; mas no pequeno theatro das suas façanhas adquiriu tamanha celebridade, especialmento nos ranchos, que de seu nome e feitos ainda hoje restam ahi lembranças enlutadas.

Era mais ladrão do que assassino; usava primeiro o subterfugio, o laço, a astucia, que a arma mortifera; mas, quando a manha não bastava, ou quando era sorprendido antes do resultado em que puzera a mira, então o encontravam facinoroso, cruel. Esfaqueava, matava, com tanto que se apossasse do alheio que excitára a sua cobiça.

Era cabra-negro, magro, anguloso. Tinha os olhos vermelhos, as orelhas largas, o queixo fino, a barba espalhada e carapinha. Havia nelle alguma coisa do vampiro. Mas a voz, que aliás era aspera e estridente, elle a adocicava e abemolava por tal geito que quem o não conhecesse, o teria por inoffensivo e lhe daria esmola si elle a pedisse, o que muitas vezes praticou para se disfarçar.

Em luta pessoal com outro valentão, recebera deste uma facada no olho direito. De outra vez levou-o ás portas da morte um tiro que lhe desfechára sobre a perna esquerda certo sertanejo, a quem roubára objectos de valor, e de cujas mãos conseguiu escapar, não obstante o ferimento. Resultou destes desastres ficar torto e côxo, o que si por um lado lhe diminuiu as faculdades do movimento e da inspecção, lhe aumentou pelo outro os meios e pretextos de illudir e explorar a credulidade dos transeuntes.

Morava elle em uma palhoça que distava tres a quatro leguas de Maricota, obscura povoação que o forte combate de que em 1848 foi scenario, entre as forças praieiras e as do governo, tornou illustre e historica.

Valentim levantára de intenção sua morada naquellas alturas para commodidade nos seus latrocinios.

O comboyo que por alli passava duas ou tres horas antes do pôr do sol, tinha de sujeitar-se a uma destas duas alternativas: ou pedia rancho na propria casa do malfeitor e pagava caro a hospedagem, deixando de ordinario um cavallo, uma sacca de lã, uma barrica de assucar ou de bacalháo, que no dia seguinte nenhum esforço, por maior que fôsse, era bastante a descobrir; ou ia descarregar adiante; á sombra de alguma arvore, e o tributo vinha a ser mais pesado ainda do que o primeiro, visto que, por escusas verêdas, o ladrão ia ter ao rancho, e em vez de um, trazia dois ou tres cavallos, duas ou tres saccas, emfim muitos objectos de grande valor. Valentim vingava-se com usura de quem procurava escusar-se ao tributo que ele cobrava no deserto.

É curioso o estratagema que ao principio usava para enganar a vigilancia e a simplicidade dos rancheiros.

Á hora que conjecturava estarem todos já deitados, apparecia no pouso sorrateiramente e com voz melliflua e vagarosa dizia estas palavras, que eram ha bem pouco tempo tradicionaes naqueles caminhos:

«— Coitados dos comboyeiros! Como estão enfadados!»

Assim fallando e repetindo sempre com razoaveis intervallos, estes fingidos e traiçoeiros dós, mettia-se por entre as rêdes dos rancheiros, muitas vezes passando de leve a mão esquerda por cima delles, emquanto com a direita apanhava muito naturalmente as espóras ou a faca apparelhada de prata, a maca onde vinha o melhor fato e alguma vez joias preciosas e dinheiro, o relogio, que descansava sobre uma mala, o gibão novo que estava pendente do galho da arvore ou do punho da rêde.

Tal era aquelle cujo fim tragico Francisco se propoz contar aos companheiros.

Para melhor ouvirem a narração, reuniram-se os matutos ao pé do narrador, uns fumando em cachimbos de barro, outros comendo da matalotagem que traziam em mochilas de algodão ainda hoje em uso entre esta especie de gente por occasião de suas jornadas.