Francisco principiou assim:
— «O sol estava a sumir-se, quando ouvimos, já arranchados ao pé da oiticica ramalhuda, que fica adiante da casa de Valentim obra de duas leguas, uns gemidos e uns queixumes que cortavam o coração a quem os escutava.
— «Quem me socorre? Christãos, filhos de Deus, acudi-me» dizia a voz: «Ai que dôr! Não tenho quem me metta a véla na mão. Ai que morro neste mato sem ter quem me chame pelo nome de Jesus.»
«Seu sargento-mór João da Cunha, com quem eu vinha de Goyanna, e que era o dono do comboyo, —si por informações, ou por prevenção, não o sei bem dizer—viu logo no affligido um velhaco; e quando, assim que chegou aonde nós estavamos, arrastando-se com muito trabalho e gemendo sempre, elle lhe pediu, com voz sumida um lugar entre os arrieios para passar a noite junto de quem o pudesse ajudar na hora de morte, reconheceu no pobre o Valentão-da-Timbaúba. Todos nós o reconhecemos tambem pelo olho furado e a perna quebrada.
— «Estou prompto a consentir que você pernoite entre nós, mas ha de ser com uma condição» disse-lhe seu sargento-mór. Valentim respondeu: «Farei tudo o que vossa senhoria ordenar, contanto que me deixe morrer entre filhos de Deus.»
— «Você ha de dormir amarrado pelas mãos do Francisco debaixo de minhas vistas no tronco desta oiticica.»
— «Ai meu senhor! tornou Valentim. Compadeça-se do pobre enfermo. A ninguém offendi nesta vida para merecer tanta crueza.»
— «Si não lhe serve a condição, vá morrer longe daqui enquanto é cêdo.»
«A estas palavras de seu João da Cunha, Valentim afastou se do lugar sem mais demora, gemendo mais do que d'antes. Todos nós fizemos tenção de não pregar olho essa noite, mas o enfado da viagem tinha vencido a todos algumas horas depois. Só quem não dormiu foi seu sargento-mór, que para fazer crer que estava deitado, mandou pôr dentro da rêde delle um surrão carregado, e junto della entre duas caixas de fazenda, se sentou escondido como quem fazia tocáia a veado, esperando pelo ladrão, com o bacamarte armado, por cima da caixa que lhe ficava na frente.»
«Quando foi lá pelas tantas, um vulto veio tomando chegada pé ante pé. Estava nú da cintura para cima. Tinha as calças arregaçadas e trazia uma arma de fogo na mão. Quando o ladrão ia a pôr a mão no cabresto de um dos animaes que estavam comendo milho nos embornáes defronte da oiticica, seu sargento-mór desabrochou-lhe fogo. Todo o rancho accordou atordoado e ganhou mão das armas. Eu fui o primeiro que corri ao ponto onde estavam os animais. Faltava um, e o ladrão tinha desapparecido. Seu sargento-mór ficou muito zangado com a perda do seu cavallo, e ainda mais por ter errado o tiro. Mas que se havia de fazer?»
— Gosto de um cabra damnado assim como o Valentim! disse um dos matutos que ouviam a narração.
— É verdade, disseram outros. Fez o que quiz, e acabou antes do amanhecer.
— Sim, mas, quando amanheceu—prosseguiu Francisco—e se viu o rastilho de sangue que elle foi deixando pelo caminho afóra, seu sargento-mór mandou que eu e Mameluco, seu pagem de confiança, montassemos nos melhores cavallos e lhe fizessemos companhia, guiados pelo rastilho, em busca do Valentão.
«O comboyo seguiu para o Sul, e nós tiramos para o poente. Pouco adiante o rastilho perdeu-se no mato; mas, nós entramos por elle, e fomos dar em um riacho.
«Ahi, bem na beira, debaixo de uma emburana, estava o cabra.
— «Acaba de matar este negro!» disse seu sargento-mór a Mameluco.
«Mas, não foi preciso fazer nada mais. Valentim estava morto.»
«Assim acabou o Valentão-da-Timbaúba. Podemos, por isso, dormir todos sem susto que ninguem mais nos ha de vir inquietar durante a noite.»
Tomando o conselho de Francisco, que por sua idade e prudencia, parecia exercitar sobre os companheiros legitima influencia, tranquillos e serenos estes metteram-se em suas rêdes e pouco depois estavam resonando profundamente.
Como visse o rancho em silencio, o velho Ignacio apagou o candieiro e retirou-se a seus aposentos, não sem ter primeiro fechado todas as portas, com excepção da de entrada, que de costume ficava sempre aberta para a qualquer hora da noite se recolherem os viajeiros que não podiam chegar mais cêdo.
Não havia luar, mas a noite estava clara. As estrellas scintillavam com a luz suave que ellas tem no deserto ou nos lugares onde não ha, para quebrarem sua branda claridade, as illuminações publicas.
Seriam nove horas quando de junto das cangalhas e cargas que estavam atiradas a um canto do rancho, rumor suspeito se fez ouvir distinctamente por Francisco a quem ainda o somno não tinha dado a respirar os seus deliciosos narcoticos.
Francisco era prevenido, e armára a rêde perto da entrada que estava livre. Ouvindo o ruido e tendo certeza de que pela porta donde elle guardava, como cão fiel, a casa adormecida, não presentira entrar ahi viva alma, sentou-se tão cautelosamente como poude na rede, e dahi volveu vistas prescrutadoras ao lugar donde lhe chegavam os sons suspeitos. Não foi sem resultado a sua inspecção. Um vulto rastejava por entre os objetos lançados a esmo no fundo do alpendre.
Quem era? Por onde entrára quem quer que era?
Estas interrogações apresentaram-se logo no espirito do matuto, que por impressão de natural superstição julgou ver na fórma vaga e indecisa que se agitava sorrateiramente, sinão o Valentão-da-Timbaúba, ao menos o seu espectro ou a sua alma malfazeja.
O vulto semelhava um cão e a uso deste animal, andava sobre quatro pés, posto que lentamente, acusando a intenção de illudir, pela brandura dos movimentos, o somno dos incautos.
Francisco, depois de detida observação, convenceu-se emfim de que o desconhecido era vivente e arrastava comsigo um volume tirado da bagagem commum.
Então todos os espiritos, um momento esmorecidos e vacillantes, voltaram a Francisco por ventura mais fortes e viris que d'antes. Quem estava alli não podia ser sinão um ladrão, um sucessor de Valentim no ignobil e torpe officio de defraudar os inoffensivos viajeiros, justamente quando, em lugar ermo e estranho, mais direito tinham á boa hospedagem dos moradores.
Desceu-se de manso e manso da rêde, armou-se com sua faca que elle tinha mettido entre as pontas de uma ripa, que vinha morrer no portal mais proximo, e em vez de ir no encalço do desconhecido quando este desappareceu por traz de um montão de cangalhas, rodeou por fóra a garapeira, e correu ao seu encontro do lado da cavallariça na altura em que presumiu teria elle de sahir.
Este não se fez esperar, e o matuto calculara com tanta exactidão a distancia que se mettia entre si e elle, que foi inclinar-se ao pé da propria abertura do envaramento por onde em menos de um minuto o estranho visitante poz a cabeça de fóra.
Cahir-lhe então com as mãos sobre o pescoço, tendo a faca atravessada na boca, foi acção que Francisco obrou em um abrir e fechar d'olhos.
— Damião, Victorino, seu Ignacio, acudam cá sem demora, que o cabra está pegado, e bem pegado! gritou o matuto com quantas forças tinha em si.
Um tiro que se tivesse desfechado subitamente naquelle ponto, não produziria tão grande arruido e sobresalto como a voz de Francisco alterada pelo inopinado do acontecimento e pelo esforço usado contra o desconhecido.
Tontos do somno e da sorpreza, apresentam-se os rancheiros pronptamente no lugar da acção. Emquanto uns rodeiavam a casa, outros passavam do outro lado atravez das varas. Este vem com a faca descascada, aquelle com a pistola armada, seu companheiro com a catana, o outro com o facão, prestes todos elles a cahir sobre o invasor.
Entretanto o ladrão, quasi todo de fóra, não obstante a força empregada por Francisco para o ter seguro entre os pés dos enchameis, debatia-se com tal violencia e animo, que nas mãos de outrem que não fôra Francisco já teria logrado escapar-se.
Sinão quando apresenta-se o dono da garapeira, trazendo acceza a candeia da sua serventia. O ladrão já safo e de pé lutava corpo a corpo com Francisco, despendendo herculeos esforços a fim de fugir de suas unhas.
Quando a luz esclareceu o recinto do conflicto, geral foi o espanto dos circumstantes.
Olhando para seu contendor, Francisco sentio-se cobrir de vergonha e tristeza. Aquella luta ingente tinha sido sustentada com elle por um rapazito que não representava mais de doze anos.
Entretanto estava alli um Hercules. Aquelle braço teria botado abaixo os de Manoel Francisco e de Victorino reunidos, visto que tinha podido com os de Francisco, que era apontado em todos os ranchos, desde Goyanna até o Recife, como o primeiro pegador de queda-de-braço daquellas alturas.
— Lourenço! Demonio! Ladrão sem vergonha! exclamou enfurecido o velho Ignacio, os olhos postos no actor principal daquella scena de desordem e escanlado. Quando quererás entrar no bom caminho, coisa ruim e desprezivel?
— Soltem-me. Quero ir-me embora—respondeu Lourenço, rugindo de raiva, e revolvendo-se entre os braços dos matutos a quem Francisco o tinha abandonado logo que reconheceu nelle os annos juvenis que na escuridão o fizeram ter por forte e varonil athleta.
— Que menino! disse Francisco, correndo-o com a vista de cima a baixo. Tem força que nem um touro.
— Assim é que eu gosto de ver um cabrinha bom—disse Victorino. Sem páo nem pedra está dando que fazer a todos nós.
De feito Lourenço atirava-se ora para um, ora para outro; investia contra este; atracava-se com aquelle, por fugir do circulo em que o tinham como encurralado os rancheiros.
— Isto é o demonio do Pasmado—acrescentou Ignacio. Não ha por aqui quem não tenha o que dizer desta perversa creatura. Eu, que sou eu, tenho-lhe respeito, porque, mais dia, menos dia, si não lhe tiverem mão virá a melar o Valentão-da-Timbaúba.
— Soltem-me, deixem-me passar, sinão mato a um—disse Lourenço, já fatigado, mas cada vez mais enfurecido da resistencia que se oppunha á sua vontade serpentina.
— Pega nelle, Victorino—disse Francisco. Quero leval-o comigo para casa. Quero ensinal o. Heide aproveitar-lhe as forças no cabo do machado e da enxada. Ha de dar para um perfeito homem do campo. Assim os pais estejam pelo que eu quero.
— Pai foi coisa que elle não conheceu—observou Ignacio.
— E mãi? perguntou Francisco.
A mãi era a Bilóca, fallecida ha dois para tres annos. Esta oncinha, que já então tinha mostrado para quanto havia de dar, quebrando as pernas dos cachorros a pedradas, furando com o espeto quente os porcos de casa a ver si lhes derretia o toucinho segundo elle mesmo dizia, e pondo carvões abrazados na rêde onde dormia um irmão menor que veio a morrer desta e de outras malindades, ficou depois da morte della ao desamparo. Tantas tinha feito, que não houve aqui alma caridosa que não temesse tel-o perto de si. O mais compadecido de todos os moradores, a velha Anninha, recolheu-o um dia em sua palhoça. Pelo correr da noite acordou debaixo de labaredas. Lourenço tinha posto fogo na casa da velha. Desde então todos fogem delle, até o vigario que ao principio foi muito por elle e lhe deu de comer e de vestir. Lourenbo vive agora vagando pelas ruas, judiando com os animaes, furtando e roubando como vocês acabam de ver.
— Este menino só enforcado pagará o mal que tem feito—disse Damião.
— Pois si ninguem o quer, levo-o eu comigo. Faço esta obra de caridade, e fico bem satisfeito com isso porque elle supprirá a falta que tenho de um filho para me ajudar. Queres ir comigo, Lourenço? Perguntou Francisco ao rapazito.
— Não vou com ninguem. Não sahirei d'aqui.
— Has de ir.
— Eu lhe mostro si vou.
— Eu te mostrarei si não vás—retorquio o matuto.
E voltando-se para o velho Ignacio, accrescentou:
— Tranque-me o menino em sua casa emquanto amanhece. Pago-lhe o dobro do rancho.
— Deus me livre—disse o velho. Si elle me cahe dentro de casa, tudo me arde como carvão em forja de ferreiro. Nem que me dê cincoenta cruzados.
— Si fazes gosto em leval-o comtigo, amarramos o rapaz em um enchamel, como seu sargento-mór queria fazer com o Valentim.
Lourenço rugiu e disse:
— Soltem-me, porcos.
— Guarde-me o menino por esta noite, seu Ignacio—tornou Francisco. Pago-lhe bem.
— Peça-me tudo, menos isso. Elle em achando-me dormindo, era capaz de sangrar-me.
— Pois não durma. Tenha-o debaixo das vistas para de madrugadinha restituir-m'o.
Como se calasse o velho, Francisco tomando o seu silencio por acquiescencia, fez signal a Victorino e Damião para que o conduzissem á garapeira.
Os dois matutos agarraram-n'o com quantas forças tinham; mas antes de chegarem á porta viram-se obrigados a largal-o, porque Lourenço a um tinha posto os braços em sangue, e sobre o outro desandára tamanho coice no estomago, que lhe tirou o animo para levar a effeito a empreza.
— Vejam só, vejam só—acudiu o velho Ignacio. Não lhes disse? Lá dentro não me piza esta féra. Nada. Nem por Santo Antonio. Si dois homens moços não podem com ele, que direi eu?
— Querem saber de uma coisa? inquiriu Francisco a cabo de um momento. Largo-me agora mesmo com elle por estes caminhos. Vamos, Victorino?
— Agora de noite?
— Que é que tem? A lua não tarda a nascer. Olhe já o clarão della por cima da mata. Vamos. Não percamos tempo.
Em menos de um quarto de hora Lourenço estava atado com cordas pelas pernas na cangalha e em cima do cavallo que o devia conduzir para longe do povoado.
— Adeus, adeus, minha gente, disse Francisco aos companheiros que ficavam no ponto. Até nos encontrarmos outra vez por estas estradas.
— Faça boa viagem, Francisco, disse um delles. Mas fique certo de que você leva sarna para se coçar. Olhe não se arrependa.
— A criança é de estouro—acrescentou outro.
— Deus é quem sabe. Muita vez não ha de ser assim.
Francisco saltou sobre a garupa do cavallo onde estava Lourenço, que só faltou arrebentar de furia para a qual não ha qualificação possivel.
Victorino, imitando o companheiro, montou no outro animal. Com pouco desappareceram na escuridão.
Francisco ia ruminando comsigo em silencio estas idéas:
— Não tenho filho. Tratarei deste desgraçado que não tem quem por elle se dôa. Farei conta que é meu filho. Espero em Deus que me ha de ajudar a fazer delle um homem que sirva a gente.
Sem saber explicar como nem porque, Francisco sentia-se satisfeito com o presente que levava a sua mulher, não obstante os prantos e os uivos de que Lourenço ia enchendo o caminho no ultimo desespero.