Uma manhã Francisco, acordando, deu por falta da mulher.

Era muito cêdo ainda para o serviço da casa, e fóra estava chovendo. O mato, de seu natural sombrio e ermo, desprazia antes do que convidava naquelle momento a quem não fosse obrigado a buscal-o por grande negocio.

No começo da trilha que ia ter á lagôa de presente mudada em terreno de lavoura, mas neste tempo com bastante agua e occulta pelos matos que se levantavam, contornando-a em fórma de semi-circulo, no lugar onde acabavam as terras plantadas de abacaxis por Francisco, vio elle atirados a uma banda sobre as hervas os sócos grosseiros que sua mulher usava em casa.

Pareceu-lhe claro que ella os tinha deixado alli para ter mais ligeiro e prompto o passo ao logar aonde se dirigia.

Antes disso já tinha chamado por ella do lado da estrada; mas só teve em resposta o echo de suas proprias palavras.

Tendo agora a prova de que ella tomára direcção opposta, cruel suspeita atravessou-lhe, sem o menor fundamento, o espirito, sinão o coração, que sobressaltado transbordava inquietações e duvidas.

Sem olhar para seu estado de convalecença, Francisco, que viera de casa até alli abrigado da chuva pelas folhagens das laranjeiras e dos cajueiros novos do sitio, não hesitou mais um só momento e metteu-se pela trilha, que se lhe mostrava, agora mais do que nunca, em fórma de serpente, pela planicie a fóra. Não era grande a distancia que separava a lagôa da parte roçada; por isso, d'ahi a pouco se achou elle por tras da renque de arvores que circulava a lagôa e pôde ter esta debaixo dos olhos sem deixar a quem quer que fosse possibilidade para vel-o.

Neste ponto parou Francisco, e poz-se a examinar com a vista de um lado para outro todo o espaço livre até aonde podia chegar a sua inspecção.

Ninguem estava alli. Sobre a lagôa a chuva fina cahia em fórma de fumo ou de nevoa espessa. Os sapos coaxavam pela beira d'agua, e os jassanans soltavam de dentro das moitas aquaticas suas risadinhas de som vibrante e agudo; tudo o mais era immobilidade e silencio.

Não tendo mais para onde ir, Francisco em cuja imaginação exaltada pela fraqueza physica e pelos subitos temores, se desenhavam cenas desesperadoras, não pôde acabar comsigo que não chamasse novamente pela mulher.

A voz desprendeu-se-lhe irresistivelmente da garganta, e o som das palavras—«Marcellina? Marcellina?» Repercutiu pela vasta solidão.

Immediatamente a seus olhos se mostrou uma visão cruel.

Acima dos juncos, que formavam vastos partidos dentro da lagôa, appareceu-lhe uma cabeça coberta com um chapeu de palha. Um homem estava alli e Marcellina não podia achar-se longe. Talvez já estivesse de volta.

Francisco sobresteve um momento immovel, como estatua; mas notando que o madrugador tão depressa levantara a cabeça, como se abaixára e desapparecera no meio do juncal, mergulhou por entre as folhagens que o occultavam, e sahiu da outra banda no animo de ir por dentro da agua até ao ponto onde se sumira o desconhecido.

Quando ia a atirar-se na agua, a cabeça reappareceu a seus olhos, e uma voz, reboando por cima das aningas e dos juncos, foi levar-lhe aos ouvidos estas palavras, em gráo de grito e em tom de reprehensão:

— Que vem cá fazer, Francisco? Você quer morrer?

Era a voz de Marcellina.

Tanto bastou para que elle não avançasse mais um só passo. Fixando a vista com mais serenidade, reconheceu no desconhecido sua mulher.

— E você que está fazendo ahi mettida, com esse tempo todo? Saia dahi, que nem sabe os sustos que me causou com sua ausencia.

— Anda você sempre assustado, Francisco! Susto de que? Parece menino.

— Saia já, que eu não posso apanhar chuva.

— Agora já não póde apanhar chuva. Ha instantinhos podia até metter-se na agua da lagôa. Parece menino este meu marido. Já lá vou.

Momentos depois Marcellina achava-se na margem, a saia a tira-collo, o chapéo de palha na cabeça, os pés descalços, a perna de fóra, sobraçando um alentado feixe de juncos.

— Então acha que só devo trabalhar nos cestos e na limpa dos abacaxis? perguntou ella ao marido logo que se achou em terra firme. Vim cortar estes juncos para fazer esteiras de cangalha. Estão dando muito em Goyanna segundo me disse hontem o compadre Victorino, que até me encommendou umas de que precisa.

Livre do peso que lhe opprimia o coração como si fôra uma montanha, não teve Francisco para sua mulher demonstrações de desagrado nem rudes expressões, antes agradecido á sua solicitude, para a qual não havia solução de continuidade, seu semblante fez-se de boa sombra, e até um risosinho meigo e terno ensaiou o matuto satisfeito com esta nova manifestação do genio essencialmente activo e previdente daquella com quem repartia o peso da vida.

— Não estranho, Marcellina, disse-lhe ele brandamente. —que você, vendo-me no estado em que me acho, trate de supprir as faltas da casa augmentando o seu esforço e trabalhando por você e por mim. Mas por que rasão não me hade dizer o que tem de fazer antes de entrar em obra? Que lhe custa isso? Si me tivesse dito o que vinha aqui fazer, eu não teria sahido de casa com risco de recahir, estando já quasi bom.

— Para que está dizendo isso? Si eu lhe dissesse que vinha cortar juncos na lagôa, você não me deixaria vir. Eu bem o conheço, Francisco.

— Deixava. Porque não deixava? No que eu não vejo razão foi em esconder-se de mim, quando eu já a tinha visto.

— Cuidei que não me tinha visto, sinão eu tinha logo apparecido. Eu disse comigo: «Francisco, não me vendo, volta para casa, e deixa-me tempo de sahir da lagôa nas costas delle.»

— Que lembrança esta, Marcellina! Então as hervas não haviam de declarar-me a verdade?

— Ora! Eu podia dizer-lhe que as tinha comprado ao Manoel da Hora, como disse quando você perguntou donde tinham vindo os cipós.

— E então os cipós tambem foram cortados por você na mata virgem?

— Está bom, Francisco; fiquemos nisso. Você tudo quer saber. Vamos já para casa; Deus queira que não lhe voltem as malditas. Não satisfeito com apanhar esta chuva, ainda queria metter-se na agua.

— Marcellina, você faz mal em andar assim só pelos matos. Para que faz isso, meu bem? As vezes apparecem por estas bandas malfeitores. Ali dentro havia até bem pouco um couto de negros fugidos do engenho. Quem sabe si não estão mettidos lá ainda alguns que seu sargento-mór não póde descobrir?

— Não se lembre disso, Francisco. Quem é que me ha de offender? Os negros? Elles não. Conheço todos e sei que gostam de mim, porque compro algumas coisas que trazem de seus mucambos. Vamos já, que a chuva está engrossando.

Assim fallando, Francisco e Marcellina metteram-se por sob as folhagens, e com pouco estavam debaixo de coberta enxuta.

De outra vez achava-se Francisco muito a seu salvo limpando o seu partido de abacaxis, quando ouviu fortes bateduras na janella da casa.

Receiando fosse alguma violencia praticada pelos dítos negros, em quem elle, menos credulo e simples do que sua mulher, não tinha a menor confiança, pôz no hombro a enxada com que estava trabalhando e que, em caso de necessidade, serviria de arma contra os aggressores, e tirou para a casa. Entrou ahi agitado e perturbado.

— Hoje voltou muito cêdo do serviço—disse-lhe Marcellina.

— Vim correndo ver que pancadas eram estas. Cuidei que, tendo-se você trancado com medo dos negros, elles, não pensando que eu me achasse aqui por perto, estavam botando a porta abaixo.

— Você tem lembranças, Francisco!

Eis a causa dos estrondos, que assustaram o almocreve.

De ha muito Marcellina batalhava com o marido para que lhe arranjasse uma taboa, de que dizia ter grande necessidade. Por esquecimento ou por não lhe sobrar tempo, o matuto estava ainda em falta para com ella. Naquelle dia Marcellina, que, quando tinha qualquer idéa que lhe parecia vantajosa, não descançava emquanto a não punha por obra, lembrou-se de um meio de realizar sua intenção, sem ser preciso o concurso do marido.

Não a porta, mas a janella da casa achou Francisco fóra do seu logar; só os portaes tinham ficado na mesma posição que dantes. As dobradiças tinham sido mudadas para o batente inferior, a fim de que a porta em vez de ser aberta pelo lado, o fosse pela parte superior, e de modo que, cravado da banda de dentro no chão um páo que chegasse ao nivel do primeiro batente, formasse ella descansando sobre a cabeça do dito páo, um como balcão qne pudesse ser visto por quem passasse pela estrada. O fim de Marcellina, realizando esta mudança, era ter onde expôr aos viandantes fructas, tapiocas e outros productos do commercio domestico.

Esta pequena industria é muito praticada nos caminhos do norte. Quantas vezes, em minhas digressões pelas provincias de Pernambuco e Alagoas não tive occasião de chegar-me, montado em meu cavallo, ao pé da janella ou do balcão movel da casinha pobre, onde se mostravam fructos frescos e sazonados, e de os comprar para nelles me desalterar do calor do sol e do cansaço da jornada!

Não levou a mal Francisco a alteração que a mulher fizera na obra das mãos delle, antes approvou, com elogios, a lembrança que lhe dava novo testemunho das faculdades industriais daquella que, como bôa e fiel companheira o ajudava a tornar acil e digna a acquisição do pão custoso da pobreza.

— Si me tivesse dito que a taboa que me pedia era para este fim, já eu a teria trazido da villa.

— Gosto de fazer as minhas invenções sem dizer nada a ninguem, nem a você mesmo—respondeu Marcellina.

Vivia assim feliz, sem ter coisa alguma que lhe causasse inquietação nem tristeza aquelle casal pobre, mas honrado e discreto, só pedindo a Deus que lhes desse chuva e sol nos tempos opportunos, para que o milho, o feijão, a mandioca, a macaxeira, as batatas, os abacaxis não morressem alagados ou queimados, e que não lhes mandasse doenças graves que os privassem do trabalho, sua distracção e prazer de todo dia.

Marcellina não ficava ahi, levava ainda além o seu espirito emprehendedor, a sua notabilissima vocação para o pequeno comercio.

Criava porcos, gallinhas, patos e perús. Nos tempos de festa os porcos ou eram vendidos por bom dinheiro na villa, ou ella os retalhava, e em sua casa expunha á venda a carne e o toucinho, sempre com tão bôa cabeça que só lhe ficava a porção que reservava para seu proprio uso. Ás vezes desta mesma parte fazia o picado e o sarapatel para vender aos matutos que eram perdidos por estas especies de comidas.

Quando as criações estavam muito augmentadas, Francisco mettia-as nas capoeiras, e ia vendel-as em Goyanna, importante centro commercial de toda aquella redondeza, como o Recife já o era de todo o norte por aquelles tempos. Voltava de Goyanna trazendo parte dos generos apurada em boa moeda, e a outra parte empregada em fazendas para uso da casa.

Emfim a vida do almocreve, a vida do pequeno negociante das estradas e feiras, ninguem nem antes nem depois daquellas duas creaturas tão irmãs e amigas uma da outra, comprehendeu melhor do que ellas, nem talvez tão bem como ellas, em suas especiais applicações.

Causava a todos inveja e admiração a harmonia, a felicidade desses dois entes rudes, que dispensavam lições da gente civilizada para viverem com honra e conveniencia e que da beira de um caminho deserto, do pé de uma mata, sem saberem ler nem escrever, davam edificativos exemplos de moral domestica, amor ao trabalho, e fé no Creador.

Não se pretende fazer nestas palavras a apologia da ignorancia, nem a da pobreza, que são os dois maiores males da terra; o que deste rapido esboço de dous caracteres puros e respeitaveis se aspira a inferir é que o bom natural traz em si mesmo, como por instincto, a sciencia da vida, e que o trabalho, ainda o mais humilde, é o primeiro meio de supprir as faltas da fortuna e vencer os defeitos da condição.