Uma legua antes de Goyanna, a estrada geral que vai do Recife á Parahyba, atravessa um lugar, de presente augmentado, mas ao tempo desta historia apenas formado de uma casa de barro, e duas ou tres palhoças espalhadas não longe della, por dentro dos matos circumvizinhos, sem regular alinhamento a uso das casas que, para assim escrevermos, se improvisam nas entranhas das florestas.
A casa de barro ficava á embocadura da mata de Bujary, a qual por então tinha, não como hoje, meia legua, mas quasi uma de comprido. O lugar supramencionado, já nesse tempo aprazivel e risonho, era alguns annos antes um como prolongamento dessa mata, menos fechado—é certo—, mas não menos ermo e deshabitado do que ella. De um cajueiro velho que se mostrava, na beira do caminho ao que sahia da espessura, adveiu-lhe o nome, que hoje designa o lugar, e tem por si a autoridade da consagração do povo e do tempo.
Fizera-se subitamente a transformação daquella secção da floresta como nos contos antigos mudam as situações ao puro querer de um genio ou de uma fada. Eis como a coisa se deu.
Um matuto passando por ali, de jornada para Tejucupapo, ficou encantado pela amenidade e belleza da situação. Do cajueiro para dentro estendia-se larga planicie coberta de arvores meãs, sombrias e graciosas. Em arvores semelhantes ha algum tanto das donzellas faceiras e namoradas com que se arreiam os salões e que são as graças mimosas do lar. Era o intermedio entre a espessura humida e medonha, e a campina núa, fresca, monotona, que se seguia á planicie adornada com a vegetação moderada e pittorêsca. Emfim era, em escala ascendente, a transição natural para a mata virgem.
Na volta entendeu-se o matuto (que não era outro sinão Francisco) com o senhor do engenho Bujary a quem as terras pertenciam, e que consentiu em que elle levantasse casa de morada e abrisse roçado.
Francisco cortou madeiras, apparelhou-as e armou a casa ao pé do cajueiro. Havia barro perto. As palmeiras mais formosas daquella zona estavam agitando suas longas folhas verde-negras na espessura vizinha. Emfim, em menos de uma semana aquelles que, de passagem para o Recife, tinham visto a casa apenas envarada ou encaibrada, vinham encontral-a agora fechada e coberta; e os que tendo passado por alli antes destes ultimos voltavam ao mesmo tempo que elles da capital, ficavam admirados e satisfeitos de verem uma habitação nova e risonha, onde quinze dias atrás tinham deixado a solidão e o mato fechado.
Esta novidade era obra das mãos abençoadas de Francisco, homem de trabalho e paciencia.
Forte de constituição physica; ajudado, sinão animado pela energia de seu espirito; affeito desde os mais verdes annos a ganhar pela força de vontade que era o seu primeiro dote natural, a vida honesta, os dias suados mas tranquillos, as noites sem remorso, o somno solto e largo, estava o matuto habilitado a levar effeito prodigios semelhantes, e outros ainda maiores e mais admiraveis.
Francisco era semi-branco, corpulento, espadaúdo e de boa estatura. Tinha no semblante a expressão da virilidade e da resignação do que luta quasi incessantemente com a pobreza, e a vence agora para a ver novamente diante dos olhos d'aqui a pouco, por ventura mais forte, mas nunca invencivel.
Os matutos podem dividir-se em diferentes especies, mas, as mais communs são as dos lavradores e almocreves. Os primeiros são os que dispoem de alguns meios a saber, escravos, cavallos, terras, os quaes sem darem para ter um engenho ou, ao menos, para movel-o, por si sós habilitam o que os possúe a cultivar a canna nas terras do engenho alheio, posto que sujeito a dividir com o respectivo proprietario o assucar apurado em cada safra. Os ultimos são os que se alugam com sua pessoa e seu cavallo para a conducção de cargas, por ajustado fréte. Os lavradores são matutos limpos, que entram muitas vezes nos negocios intimos do grande proprietario, merecem a estima delles, a pezam com seu conselho na decisão dos interesses comuns. Aos almocreves já não succede o mesmo. Paga-lhes o senhor de engenho o salario, e elles retiram-se a seus casebres onde vão comer, com a mulher e com a ninhada de filhos que ordinariamente contam, o escasso pão que lhes deram o cavallo magro e o trabalho puxado e cansado.
E pois o cavallo é, para assim escrevermos, a primeira riqueza do almocreve, visto que por elle é que vem a sua sustentação e a de sua familia, ter um cavallo é a primeira aspiração do pobre no matto. O almocreve não vota mais affecto a sua mulher do que a seu animal. Por elle dá muitas vezes a vida. Para o rehaver, si lh'o furtam, vai ao fim do mundo e mata o ladrão.
Quando o almocreve, firmando-se pelos dois primeiros dedos do pé, sempre descalço, sobre a raiz da curva da perna do seu cavallo, ganha de um pulo a cangalha, si elle está descarregado, ou a anca si o animal tem carga, considera-se mais feliz e garboso do que um general de mil batalhas. A seus olhos aquella altura que o homem de pé attinge com a mão lhe parece superior a todo poder humano. Dahi não teme o agente da autoridade publica, nem o golpe ou o tiro mortal que lhe desfechem. Reputa-se inaccessível a todos os males da terra. Entre suas pernas, querendo-o elle, o cavallo é uma locomotiva que se perde na immensidade dos caminhos ou dos descampados; é a faisca electrica que corre terra a terra e desapparece, rompendo fechados e abatendo folhagens, na massa densa e sombria das selvas. O touro afasta-se, a onça recúa, para o deixar passar livremente na vertiginosa carreira.
De ordinario, porém, a marcha do animal do almocreve não sahe do rojão de todo dia. Tendo sempre presente na lembrança o muito que lhe custou ganhar o seu precioso bem, poupa-lhe as forças quanto póde, e só em caso extraordinario exige delle a corrida afanosa, os saltos subitos, o galope, o cansativo esquipar.
Do numero dos almocreves sahem os cantadores e os repentistas, que, não obstante as privações ordinarias de sua vida quasi errante, tem dias de consolação e regozijo.
Pelas festas do anno ajuntam-se na casa dos camaradas para cantar, dansar e beber.
A esses saráos campestres, conhecidos por sambas, não faltam as moças mais desembaraçadas das vizinhanças, —fadas da roça, que com suas chinellas de marroquim, seus vestidos de chita ou de cassa de florões, nos lábios, que estão a verter sangue e frescura, o riso vergonhoso e a promessa duvidosa, os cabellos enastrados de jasmins, mangericões e malmequeres, dão alma a pastoris episodios, a curiosos melodramas e muitas vezes a tragedias medonhas e fataes. Algumas dellas mais desgarradas trazem os seios mal cobertos por vistosos cabeções de que pendem, não sem acertadas combinações e phantasias, bicos e rendas bem feitas e elegantes.
Taes festas tem o seu lado bom e providencial, —fazem esquecer as maguas passadas e as privações presentes. O primeiro e o mais proveitoso resultado dellas é o seguinte: diminuem a estatistica dos crimes graves e infamantes.
Pobres matutos!
Quantas vezes, ao ver-vos descalços, mal vestidos e mal passados, não senti apertar-se-me o coração com pena de vós?! Esta pena redobrava sempre que, passando pela frente dos vossos casebres, eu descobria ahi por mobilia um banco tosco, uma caixa grosseira, um pote de agua suspenso entre os braços de uma forquilha enterrada no canto da salinha, e por leito de dormida para vós e vossos filhinhos uma esteira ou um giráo de varas!
Então eu comprehendia a razão porque em nossos encontros nos caminhos ereis vós os primeiros que tiraveis o vosso chapéo e me salvaveis com mostras de profunda humildade sem saberdes siquer quem eu era. É que vós tinheis sempre presente no entendimento a consciencia da vossa pobreza e consequentemente vossa fraqueza. Esta consciencia, este aguilhão intimo, que nunca se embota, vos dava uma falsa idéa de superioridade de minha parte sobre vós. Pobres creaturas sois vós, ó matutos, mais dignos de compaixão e amparo, do que do riso mofador de que vos fazem alvo os que na ignorancia, na simplicidade e na miseria alheia acham assumpto para desenfado e divertimento proprio! Pobres sois vós dobradamente; porque recebestes de vossos paes por herança esta lamentavel condição, e porque não podeis deixar em dote a vossos filhos condição differente desta!
Francisco pertencia—é verdade—á classe dos almocreves; mas tinha seu cavallo, que não era qualquer, antes pelo contrario, era passeiro, carregava baixo e esquipava tão maciamente que quem nelle ia, levava a illusão de que era conduzido e embalado em uma rêde.
Entremeiava o officio de almocreve com o de trabalhador de campo. Tinha mesmo plantações posto que fracas.
Por felicidade sua casára com Marcellina, cabocla ainda nova das proximidades da Alhandra, trabalhadeira, poupona e ajuntadeira que com as escassas economias de suas industrias ajudava o marido a achar a felicidade no seio da pobreza, e guardava a idéa de libertar-se deste estado ás custas do seu esforço.
Tempos depois de mudado de Cruangy, onde ao principio morou, para o seu sitio do Cajueiro, nome que ficou pertencendo não só ao sitio mas ao lugar de que Francisco foi o fundador, teve elle umas maleitas tremedeiras na fôrça de rigoroso inverno. A molestia pegou-o desprevenido, sem vintem nem dez reis, como diz o povo—illustre sabio que versa a sciencia da linguagem com autoridade e propriedade que lhe invejam os sabios de maior conta.
Mas durante ella nunca lhe faltaram remedios nem diétas: Marcellina suppria as faltas e a casa com admiravel promptidão.
— Donde lhe veiu dinheiro para tudo isto? perguntou uma vez Francisco a sua mulher.
— E os cestos que faço não haviam de dar dinheiro? respondeu-lhe ella com graciosa e movel expresão. Veja estas rodilhas de cipó que comprei hontem. Chegam para uma duzia de cestos. Logo que estiverem promptos, não ha de faltar quem os queira. Os outros, que pendurei da banda de fóra, não levaram uma semana a ser vendidos.
— Ora, Marcellina, disse o marido com manifesto pezar. Para que se cansa tanto? Eu quero muito bem a meu cavallo, mas vai-se um cavallo hoje, virá outro amanhã. Por isso sou de parecer que, em lugar de estar a trabalhar tanto para a casa, veja antes si alguem quer comprar o pedrez. Elle está em boas carnes e pôde achar bom dinheiro.
— Quem? O seu cavallo pedrez? Vendel-o? Não, senhor, que você precisa delle para quando ficar bom. Você mesmo bem sabe que um cavallo não vem assim tão depressa como está dizendo. Não estamos ainda em ponto de vender o nosso unico bem para remir as nossas necessidades, Deus louvado.
— Deus mesmo havia sempre de ajudar-me a comprar outro.
— Mas que necessidade temos nós de nos desfazermos do animalzinho? Só si eu estivesse doida o venderia. Deus me livre.
Não tinha medidas o amor que Francisco votava a Marcellina, exclusiva possuidora do seu coração.
Os matutos não casam por méra conveniencia. Suas uniões, ordinariamente precoces, não deixam por isso, em regra, de ter o principal fundamento na estima reciproca daquelles que as contrahem. Grandes desgraças tem procedido das juncções prematuras, mas no mato não constituem a regra geral. Ao reverso, taes juncções são principio de moralidade no lar e no povoado matuto, porque despertando cêdo no homem os affectos conjugaes e paternaes, enfreiam e moderam, antes das erupções naturaes dos primeiros annos, as paixões juvenis, que, quando de todo sôltas, tem arrojos inconvenientes e effeitos desastrosos.
A paixão que Marcellina inspirára a Francisco, si tinha serenado, como succede a cabo de certo tempo a todos os sentimentos, ainda aos mais vehementes e exaltados, não arrefecera antes se apurara com as mil retribuições do coração da cabocla, nunca brandamente estremecido ou amorosamente agitado sinão pelo matuto.
Mas a infelicidade é fatalmente na essencia humana. Ainda no meio das mais intemeratas serenidades, a idéa de poder ser de um momento para outro desgraçado punge o homem e o faz reputar as venturas por illusões, cujo principal effeito é aguar-lhe os gostos no melhor delles e entristecel-o, quando não na face—espelho da alma, na consciencia—centro de muitas suspeitas que nascem e morrem ignoradas do mundo, como os musgos interiores das cavernas inaccessiveis.
Marcellina podia ter a esse tempo de vinte e dois a vinte e cinco annos. O typo caboclo estava nella representado com opulencia e genuinidade. Tez abaçanada, cabellos corridos e pretos, olhos rasos e grandes, cara cheia e redonda, estatura abaixo da media, fórmas corretas, mãos e pés pequenos—eis o conjuncto harmonico e admiravel em que a raça a mostrava revestida.
Quando Marcellina batia sua roupa no banco que ficava debaixo da meia-agua de palha levantada por Francisco para resguardar do sol o poço algumas braças da casa de morada, os matutos, que passavam pelo caminho e a não conheciam, cravavam nela olhares cúpidos, e alguns ás vezes de lá lhe atiravam xêtas que ella fingia não ouvir, ou a que, si lhe parecia, dava em resposta um muxôxo ou um olhar de mofa e desprezo, pelos quaes ficavam sabendo que a matuta não era do panno que eles suppunham.
Muitos delles só retiravam os olhos de sobre ella quando tinham de dar a volta da estrada ou entrar na mata. A razão era porque a saia, que Marcellina por essas occasiões trazia a tiracollo pela enfiadura, lhe punha á mostra o principio da perna—monumento de estatuaria que deixava adivinhar, mas não descobria os vendados thesouros da perfeição de que a dotára, por especial capricho a natureza, mãi tão prodiga para ella como mesquinha para tantas outras.