Seriam dez para onze horas quando deram principio ao trabalho.
Com o calor e as cacetadas os caroços entraram a separar-se dos longos estojos. Duas horas depois um montão de pó cobria grossa camada de sementes alvas e luzidias. Então os batedores suspenderam os cacetes e entraram para descansar. Victorino foi direitinho a uma botija que estava sobre a mesa, e derramando aguardente dentro de uma chicara, offereceu o refrigerante licor ao compadre. Este não se fez rogar; de um trago enxugou a vazilha. A Lourenço, que não bebera do espirito, offereceu nesse momento Marianninha uma tijellinha com cajuada. A menina tinha preparado com suas proprias mãozinhas este refresco. Já então se achava ahi o Saturnino, que não podendo ver com bons olhos o agrado, quiz, com o pretexto de gracejar, tomal-o das mãos de Lourenço. Este porém entregou-o, sem a menor opposição, ao sobrinho de Victorino, dizendo-lhe estas palavras:
— Tome para você. Não gosto de ponche de cajú.
Marianninha, córando de contrariedade e confusão, voltou a trocar os bilros em sua almofada. Ella não queria mal ao primo, mas desde esse momento começou a tratal-o com manifesta frieza.
Entrava a esse tempo na sala a Bernardina trazendo um pedaço de canna. Lourenço foi-se a ella, no momento mesmo em que a menina o offerecia a Saturnino, e o arrancou da sua mão com sorpreza. Esta violencia irritou a moçoila que sem hesitar se atirou ao rapaz a fim de retomar a propriedade. Elle resiste. A resistencia leva a rapariga a insistir cada vez mais na sua resolução. Agarram-se os dous corpo a corpo. Agarrarem-se assim foi o mesmo que se abraçarem naturalmente. Os cachos dos negros cabellos da matutinha roçam pelas faces do travesso rapaz. Com ou sem intenção, conchega este aos seus seios os seios boleados da rapariguinha gentil e offegante. Era já tempo de Saturnino interpor-se e elle, comprehendendo a gravidade da luta, não se fez esperar.
Separam-se logo os discordes, um deles—Lourenço—com o pedaço do doce fructo disputado, o outro—Bernardina—com as mãos vasias.
— A canna não é para você, Lourenço—disse ella, resmungando com raiva. Eu a guardei para Saturnino.
— Ora deixe-se disso—respondeu o endiabrado rapaz. Saturnino ainda achou pouca a cajuada que lhe dei? Si quizer canna, vá cortal-a na baixada. Esta é minha. Está doce que sabe já a assucar.
Travou-se então um dize tu, direi eu que só teve fim quando os rapazes foram chamados pelos velhos para continuar o serviço interrompido. Ao sahir para o pateo, Lourenço, pondo os olhos casualmente em Marianninha, achou-a pallida e séria como nunca a vira. A menina tinha a vista pregada na renda, como estava esta pregada na almofada pelos espinhos de cardeiro que nella serviam de alfinetes, segundo era de costume por esses tempos entre os pobres. Marianninha não teve mais para o seu noivo in petto olhares nem sorrisos nem attenções durante o restante do dia. Quando á tardinha, levantado o papelão, que Joaquina lhe dera por tarefa, ella foi com sua mãi e irmã sessar o feijão na urupema para o expurgar da areia e do barro original, a menina tinha no rosto a grave expressão que é própria não da filha mas da mãe de familia. O despeito e o ciume mordiam pela primeira vez seu coração, antes merecedor do contentamento ineffavel a que ella aspirava, do que do pezar profundo que ahi tinham deixado os dentes envenenados destas duas serpentes interiores. Assim se passou esse dia, que projectou sombria nuvem, em forma de espectro ou de ave agoureira, na imaginação da pequena.
Tempos depois Francisco, levando em sua companhia Lourenço, fez nova digressão á casa do compadre.
Eram todos no roçado quebrando milho, que devia ser batido como fôra o feijão.
— Sempre chego em occasião de trabalho, compadre Victorino, disse Francisco.
— É verdade.
— A razão é porque meu compadre Francisco é muito trabalhador, observou Joaquina.
— Adeus, meninas.
— Sua benção, padrinho, disse Marianninha.
— Boa tarde, seu Francisco, acrescentou Bernardina.
Lourenço deu o andar para onde estava esta ultima, e baixinho lhe perguntou:
— Lembra-se ainda do pedaço de canna? Está zangada comigo?
— Eu não, respondeu ella.
— Eu fiz aquilo sómente para metter raiva a Saturnino.
— E você para que é máo, Lourenço?
— E você para que faz tantos agrados a elle?
— E você que tem com isso?
— Bernardina! Bernardina!
— É melhor que vá se importar com Marianninha, que é sua noiva e mais dia menos dia virá a ser sua mulher.
O semblante de Lourenço fechou-se subitamente. Mais depressa nuvem escura não cobre a face risonha de estrella gentil e namorada.
— Está bom, disse elle com visivel contrariedade. Eu não quero destas graças comigo.
E pois estavam conversando em vozes tão moderadas que ninguem podia ouvir o que diziam, Francisco, a quem não pareceu muito agradavel este colloquio, dirigiu-se nos seguintes termos ao filho:
— Ó Lourenço, vai ajudar alli a comadre, que mal póde com aquele braçado de espigas.
Em vez de levar a mal, o rapaz acceitou com as duas mãos o recurso, que se lhe offerecia, e foi prestar os seus serviços á Joaquina, não só tomando sobre si parte da carga que ella trazia, mas quebrando o milho maduro que encontrou em suas proximidades.
O aspecto do roçado era o mesmo que offerece qualquer destas plantações em occasiões identicas.
Em um ponto central via-se um montão de espigas seccas. Junto dellas estava Bernardina sentada sobre umas palhas. Sua obrigação consistia em as ir descascando e prendendo depois, de duas em duas, pelo filete de palha, de proposito deixado em cada uma para facilitar não só o trabalho da contagem sinão tambem o da conducção. Depois de assim atadas atirava-as para outro ponto, do qual tinham de ser levadas para casa.
O milharal, posto que na mór parte ainda de pé, estava quasi todo secco. As espigas volviam-se para a terra que alguns pés, dobrados pelos ventos fortes, beijavam com os pendões em sua maior parte despidos das flôres de que se compunham.
Quebrando aqui, alli os fructos, foi-se Francisco mettendo pelo roçado a dentro até chegar ao lugar onde estava a filha mais nova de Victorino.
— Venho ajudar-te, Marianninha, disse elle.
A menina tinha sobre os hombros alguns atilhos, de sorte que parte das espigas lhe cahiam por cima dos seios e parte se derramava pelas costas.
— Para que tem esse trabalho, meu padrinho? Estamos já acabando.
— Como me acho aqui, quero perguntar-te uma coisa. Tu estás mal com Lourenço?
— Porque vosmecê pergunta isso?
— Porque ainda ha pouco vi todos fallarem com elle, menos tu. Que é que houve entre vocês? Eu não gosto de malquerenças.
A menina parou involuntariamente. Seu braço direito que nesse momento ella tinha alçado para uma espiga, descahiu com si força occulta e desconhecida o fizera gravitar para a terra. Os olhos, vencidos pela mesma influencia, tendo relanceado primeiro para o matuto, cravou-os ella irresistivelmente no chão.
Conhecendo que tocára em uma ferida encoberta, Francisco adiantou-se a diminuir-lhe o vexame.
— Eu sei que tu gostavas de Lourenço até bem pouco tempo. Como é que apparece agora esta rixa?
Passado um instante, a rapariguinha respondeu, accêso o rosto em suave rubor:
— Mas elle não gostava de mim.
— Quem foi que te metteu isso na cabeça?
— Era preciso que alguem me dissesse o que eu estava vendo com os olhos?
— Engano teu.
— Não estou enganada, não senhor. Lourenço não se importa comigo.
— E tu não queres mais bem a elle? Anda, falla. Eu bem sei que tu gostas do pequeno. Si és capaz, nega.
Tomada da maior confusão, Marianninha não soube o que responder.
— Dize o que te pergunto—insistiu o matuto. Eu guardo segredo. Não tenhas vergonha de mim.
— Eu não sei disso—retorquio a menina, entre satisfeita e triste.
— Não sabes? Então quem é que ha de saber?
A filha de Victorino cahio novamente na mudez de ha pouco.
— Deixa estar, Marianinha, tornou Francisco. Lourenço hade casar comtigo. Si não fôr por gosto, ha de ser contra a vontade.
— Contra a vontade? Não, assim não—disse ella.
— E porque não ha de ser por gosto?
— Eu sei.. Elle não me quer bem, não. Si elle quizesse, me tratava de outra moda.
— Como é então que elle te trata?
— Eu não sei dizer como é, não, meu padrinho. Eu só sei que Lourenço é máo e ingrato.
Triste e cabisbaixa, a menina poz-se a chorar. Era muito intensa a dôr que feria seu coração.
— Não chores, pequena, disse Francisco abalado. Hei de fazer que elle venha a casar contigo. Pede bem a Nossa-senhora-da-conceição que eu não morra. Tanto farei que elle mesmo é que me ha de pedir licença para dar este passo.
Secreto pressentimento porém, dizia á menina, não obstante este formal compromisso do matuto, que nem o coração de Lourenço nem sua mão lhe pertenceriam jámais.
Entretanto a esperança que taes palavras infundiram em seu espirito, entrou ahi como luz serena e divina.
Momentos depois, voltaram todos para casa, conduzindo as mãos-de-milho. A uns derramavam-se espigas pelas costas, a outros cahiam os atilhos dos braços, ou das mãos. Marianninha, emquanto os demais tinham a attenção concentrada na colheita, volvendo em torno de se seus bellos olhos, ha pouco cheios de lagrimas, agora repletos dos fulgores do contentamento intimo, que se revelava, não por palavra mas pela luz do olhar meigo, pelo rapido sorriso, pela irradiação suavissima do semblante, tinha bem diversos pensamentos. Nas sombras crepusculares que começavam a cobrir a solidão ella descobria encantos e primores naturaes, que momentos antes, de caminho para o roçado, debalde buscara na verdura da natureza, formosamente illuminada pelo clarão immenso do sol.
Nem com entrar em seu espirito acompanhada das sombras e dos mysterios do deserto tinha para ella menos brilho e formosura a esperança.