Numeroso foi o concurso de pessoas de alta e distinta jerarquia durante a noite da véspera e o dia de S. João de 1711 no engenho do sargento-mór João da Cunha.

Esta respeitável campanha compôs-se dos cavaleiros que diremos: os irmãos André Cavalcanti, Luiz Vidal e Cosme Bezerra; Filipe Cavalcanti, capitão de ordenanças; Jorge Cavalcanti, sargento-mór honorário, e filho natural de André Vidal de Negreiros, o restaurador da Paraíba; Martinho de Bulhões, que veio do engenho Itambé, onde morava com seu sogro Matias Vidal, a quem o dito engenho pertencia, bem como todas as terras da povoação fundada por aquele restaurador. Além destes apontavam-se outros muitos proprietários e autoridades de Goiana, mais ou menos ligados, por laços de parentesco, amizade ou dependência particular com o senhor do engenho.

Foi uma festa que muito deu que falar, não tanto pelo brilho, como principalmente pela concorrência. Dos principais nobres da vila não faltou nenhum. A posição social e política de João de Cunha; sua procedência ilustre; seus haveres geralmente tidos por avultados asseguravam-lhe grande respeito da parte dos seus vizinhos.

Houve quem viu no importante ajuntamento, logo que ele se anunciou pela voz da fama, um pretexto para tratarem em família e em secreto os nobres de Goiana dos seus interesses ameaçados pelos mascates do Recife. Nem era mister grande penetração para fazer esta conjectura, depois do rompimento destes contra aqueles, rompimento que se realizou em 18 de junho do ano apontado, de uma para duas horas da tarde.

Para que fique inteirado do necessário o leitor que não for muito versado no conhecimento das lutas políticas de nossa terra nos tempos coloniais, indispensável nos parece examinarmos aqui, posto que de relance, a causa da agitação dos espíritos na época em que se passou esta historia.

De que procedeu o sobredito rompimento? De quererem os negociantes do Recife que esta povoação passasse a vila, e de o não quererem os nobres da cidade de Olinda. Qual a razão de quererem os negociantes do Recife e de não quererem os nobres de Olinda que passasse a vila aquela provação, que aliás já tinha sido cidade no domínio holandês, por suas vantagens naturais, posição física, e principalmente por ser porto de mar e oferecer fácil ancoradouro? A razão era porque, sendo o Recife quase em sua totalidade habitado por negociantes portugueses, passariam estes a ter, com a elevação da povoação a vila, preponderância no senado da câmara, e por seus votos poderiam reduzir a nada, visto que o seu numero era grande, os nobres da cidade na taxação dos gêneros, na arrematação dos contractos, enfim na governança que até então tinha sempre andados nas mãos da nobreza da terra. Um cronista, contemporâneo da guerra dos mascates, escreveu sobre este ponto as palavras que trasladaremos para melhor compreensão do leitor. São as seguintes:

“A dar-se ao Recife o termo que o governador queria, perdia a nobreza do país; porquanto, igualando-se os nobres aos mascates, e sendo estes muito mais numerosos, vinham aqueles a ser excluídos nos pelouros dos lugares da republica; perdiam as rendas publicas na arrematação dos contractos, porquanto, sendo os arrematantes os mascates, e compondo estes o senado, perante quem se arrematavam, vinham eles a ser juizes e partes, e a seu salvo podiam arredar da arrematação os nobres que quisessem lançar; perdia finalmente toda a população produtora, porquanto, competindo aos almotacés taxarem os preços dos viveres, e sendo o almotacé do Recife mascate, seguia-se, como se seguiu, que os gêneros conduzidos a mercado pelos matutos se taxassem em preço mui baixo, e os que vendiam os mascates taberneiros se estimassem em subido preço”.

Por onde se vê que nem era de todo sem fundamento o ódio que nobres e mercadores se votavam mutuamente, nem a guerra a que esse ódio deu lugar podia faltar em rebentar com a veemência e crueza que a caracterizaram. Enfim, a luta era menos de fidalgos e peões do que da agricultura ameaçada de ruína, e do comercio que aparecia como tirano. Não há luta mais fatal e terrível em seus resultados do que a em que se empenham dois princípios que devem constituir, nas épocas normais, um só elemento de prosperidade publica, servindo cada qual de complemento natural do outro. Estamos por isso muito distantes dos que nesse memorável movimento querem ver, antes um testemunho de ridículos preconceitos, costumes e educação dominantes no século próximo passado, do que a séria colisão de interesses que ainda em nossos dias podem trazer, achando-se em desacordo como então se acharam, resultados ainda mais tristes e lastimosos.

Enquanto as pretensões dos mercadores não passaram de tentativas malogradas, mantiveram-se as coisas em saudável equilíbrio. As pretensões, porém, de que é alma o interesse pecuniário ou a ambição de riquezas dificilmente se resignam a completa renuncia. Quando menos se espera, elas fazem explosão, e só então se reconhece que o silencio em que por algum tempo estiveram a modo de sepultados, não foi o silencio da morte, mas da concentração espiritual e o do estudo dos meios de dar vitoria à dita ambição.

O governador a que alude o cronista na passagem sobremencionada, era Sebastião de Castro Caldas. Não foi o primeiro que chegando a Pernambuco e deixando-se quase dirigir por seus conterrâneos mais exaltados na sua pretensão capital, representara a el-rei a favor da criação da vila. Antes dele já o tinham feito alguns outros, inclinados sempre a proteger os interesses dos seus patrícios. Nenhum, porém, o fizera com tão fortes razões como o novo governador, homem de grandes espíritos, de animo ousado e tão dado à pratica de ator de despotismo que o próprio rei lhe estranhará asperrissimamente, em data de 7 de outubro de 1709 o “Ter invadido a jurisdição dos ministros, soltado presos, mandado tirar devassas, suspendido no procedimento dele despoticamente, abusado das regias leis e provisões e cometido outros absurdos e excessos de grande prejuízo à boa igualdade da razão e em grande dano da justiça dos povos de Pernambuco.”

É fama que pouco tempo depois de haver entrado no exercício do seu cargo, um negociante lhe foi dizer (não se sabe se havia verdade ou enredo na historia do oficioso senhor) que alguns pernambucanos tinham jurado repetir com ele, se metesse a tomar o partido dos do Recife na criação da vila, o mesmo que seus antepassados tinham praticado com o governador Jeronimo de Mendonça Furtado no século anterior.

A isso respondeu Caldas: - Se são nobres e têm, segundo dizem, por se o popular da capitania, repitam o procedimento dos seus maiores. O que eu lhes asseguro é que não hei de imitar Mendonça Furtado, e que, desembainhada a minha espada, não a meterei novamente na bainha antes de embebida no coração do primeiro conjurado.

Não aconteceu, assim porém. Levado do capricho pessoal, ou do interesse, ou do ódio, ou da vaidade de dar mostras de ser capaz de arrostar com a oposição da nobreza de Pernambuco em peso, fez reiteradas instancias ao ministério e ao rei para que se realizasse a elevação do Recife a vila. Esta elevação foi afinal ordenada pela carta regia de 19 de novembro de 1709; mas, como se verificaram logo no ato da divisão de novo termo grandes vexames e violências, irritaram-se mais os ânimos de parte a parte. Caldas respondeu à reação dos pernambucanos notáveis mandando-os prender. Foram do numero dos presos Leonardo Bezerra Cavalcanti, seu irmão Manoel Cavalcanti Bezerra, Luiz Barbalho, Afonso de Albuquerque e outros. O triste exemplo, produzindo impressão de terror em vários agricultores, obrigou-os a deixar suas propriedades e ocultar-se foragidos nos bosques. Enquanto porém alguns se retiravam aterrados, a reação concertava na sombra a sua desforra. Assim que pelas 4 horas da tarde de 17 de outubro de 1710, por ocasião de passar o governador pela frente de uma casa desocupada da Rua-das-aguas-verdes, um tiro lhe foi dai desfechado, não tendo sido parte para que o não fizessem os dois mandatários obscuros o ir Caldas acompanhado e guardado por uma escolta de 25 homens.

Longe de o chamar à razão, o tiro, que mais parece Ter sido aviso de prudência do que meio de dar cabo do poderoso inimigo, visto que, se esta fora a intenção, não teriam posto na arma tão pequena carga que, não obstante ser muito curta a distancia, a bala produziu unicamente no governador ligeira escoriação, serviu antes para o arrojar de uma vez no caminho do atentado. Bastava Ter contra se suspeita de cumplicidade no nefando delito da Rua-das-aguas-verdes para qualquer ser atirado a horrorosa prisão. O capitão André Dias de Figueiredo foi talvez preso como cúmplice, unicamente por Ter por nome o mesmo que o do juiz ordinário que em 1666 intimou ao governador Mendonça Furtado a ordem de prisão em nome do rei. Enfim, foram tantos os excessos do governador Caldas, agora mandando abrir devassas, agora ordenando prisões indevidas; ora estabelecendo presídios, como fez em S.Lourenço-da-mata e em Santo_Antão, ora determinando que o povo fosse desarmado sem ter em atenção sequer estar iminente a invasão francesa, segundo acertadamente pondera o nosso cronista, que, antes do dia 5 de novembro, em que devia romper a revolução, rebentou esta por ocasião de pretender o capitão João da Mota prender o capitão-mór de Santo-Antão Pedro Ribeiro da Silva. Foi em 2 do dito mês que, em lugar de Mota prender Ribeiro quando este ia ouvir missa na matriz, o sitiou ele em seu próprio presidio e o obrigou a capitular com a condição de não voltar ao Recife enquanto o povo, que tratava de reunir-se, não descesse a atacar a vila novamente criada. Enfim, no Domingo (10 de novembro) uma multidão passante de 2.000 matutos tomou o Recife, e como não encontraram ai o governador, foram aquartelar-se em Olinda, senhores da situação. Caldas tinha fugido de véspera para a Baia sem Ter cumprido a sua promessa de embeber, antes de partir, a sua espada em corações pernambucanos.

Foi logo chamado a tomar as rédeas do governo, visto vir apontado na carta regia que prevenia as vacâncias, o bispo d. Manoel Alvarez da Costa que se havia retirado, em visita pastoral, para a Paraíba com o ouvidor dr. José Ignácio de Arouche pouco simpático aos do Recife por não Ter querido convir na ampliação do termo. D. Manoel volta a Olinda e assume o exercício do novo cargo em 15 de novembro. O primeiro ato do seu governo foi perdoar aos povos a sublevação e o tiro dado em Sebastião de Castro Caldas.

Como era natural, o perdão irritou os parciais do governador Caldas, os quais, não só pelos ódios próprios, mas também pelas reiteradas sugestões que lhes chegavam do mesmo governador para que, por sua vez, rompessem contra os do outro partido, assegurando-lhes que o rei não deixaria de levar a bem semelhante serviço, não pensaram senão em tomar estrondoso desforço. Ou porque acreditassem piamente no que escrevia Caldas, ou porque o seu ódio não tinha outro objetivo que o de aniquilar a nobreza, a quem deviam tão grande revez, que os havia prejudicado em seus interesses e em sua política, os europeus, que esposavam a causa da reação, alimentavam em silencio os seus projetos de vingança e aparelhavam-se com sagacidade e tino para o rompimento formal. Neste intuito levaram muitos meses a prover-se de mantimentos. A farinha, o feijão, o milho, o arroz, o açúcar, a carne, o peixe entravam todos os dias para os seus armazéns, onde ficavam em bom recato. Finalmente, no dia 18 de junho, aos gritos de “Viva el-rei d. João V, morram os traidores” puseram eles nas ruas a revolta, tomaram conta das fortalezas do Brum, Buraco, e Cincopontas, e no pressuposto de restaurarem a perdida autoridade de Caldas, consideraram o bispo suspenso de suas atribuições e o recolheram no colégio dos jesuítas. Nomeando um governo monstruoso, composto de João da Mota e de um preto mestre de campo do Terço-dos-Henriques, obrigaram o bispo a assinar ordens que importaram em os assegurar na posse da situação, assim violentamente roubada à legalidade.

Fosse porém qual fosse o verdadeiro motivo da reunião no engenho Bujari, o certo é que nunca em sua casa reuniu João da Cunha tão numeroso concurso de pessoas escolhidas, com ser costume de longa data ajuntarem-se ai por S.João moradores de conta do lugar.

Não só por ser poderoso, senão também por ser homem de resolução e de gênio arrebatado, era João da Cunha muito temido em todo aquele termo.

Uma tradição de sangue dava a seu nome e família triste celebridade. Contava-se que varias pessoas, das quais algumas por faltas muito leves, tinham sido mandadas matar por sua ordem e enterrar depois na bagaceira. Mais de um negro tinha morrido nos açoites, e de um até se dizia que fora atirado vivo, não sabemos por que motivo, na fornalha do engenho, onde morreu queimado.

Naqueles tempos tradições semelhantes, em vez de diminuírem o tamanho moral do herói dessas repugnantes ilíadas, recomendavam aos povos os sanguinários Achiles, que por este modo se faziam conhecer e celebrizar.

Por isso todos tinham pelo senhor do engenho Bujari profundo respeito; e se seu nome não vem apontado nas incompletas chronicas do tempo, como muitos outros, que não obstante pertencerem a notáveis sujeitos, ficaram inteiramente esquecidos, a tradição ainda o não deixou desaparecer de todo no pó onde jazem sepultados os que por circunstancias inexplicáveis não puderam sobreviver aos acontecimentos.

Recebendo a influencia do tempo, da educação, dos preconceitos inveterados e dos exemplos de todo o dia, a mulher de João da Cunha, d. Damiana, que procedia, como seu marido, de troncos limpos, não lhe cedia a palma em altivez, posto que de seu natural era branda e benévola.

Até a idade de 12 anos, D. Damiana morou, para assim escrevermos, em casa dos pais de João da Cunha. Sua mãe era parenta muito chegada do casal fidalgo, e costumava passar tempos no engenho onde moravam.

Quando ela morreu, d. Damiana não contava mais do que 15 anos. O pai desta tinha falecido dez anos atrás. Circunstancias especiais influíram diretamente para que, sendo ele um dos mais abastados agricultores do termo de Goiana, só deixasse por morte à mulher um nome honrado e ilustre, herança que esta transmitiu mais aumentada, porém ainda muito menos brilhante do que a recebera, à sua filha.

Dos cinco anos até casar-se pode dizer que a jovem senhora viveu à sombra do rico fidalgo, pai do João e de Amador, de quem oportunamente se tratará. Por esse tempo João da Cunha já tinha contraído o seu primeiro casamento. Enviuvando anos depois, contraiu o segundo com d. Damiana, que, já se achando presa à família pela gratidão que lhe devia, entrava agora em suas relações intimas e começava a fazer parte dela por laços mais perduráveis.

O senhor de engenho achou em d. Damiana afeições duplas — as de esposa e as de filha. Sua mulher, que já tinha para ele respeito, votava-lhe agora estima conjugal, que trouxe ao senhor de engenho uma reprodução da felicidade que gozara na constância do primeiro matrimonio.

Quando d. Damiana punha sobre ele seus grandes olhos negros e ternos, João da Cunha sentia no intrínseco de sua alma uma impressão de brandura, que era talvez o reflexo da benevolência da esposa penetrando na dureza natural do coração do marido, como raio de luar em profunda e escura caverna.

Então o porco selvagem fazia-se escravo da juruti meiga e naturalmente elegante. Voltava-se todo para ele e ficava como em contemplação ascética. Os cabelos abundantes e pretos, a rosto emoldurado em oval corretíssima, a cútis morena, fina e rosada, o nariz levemente erguido na ponta, a boca representante de altivez e bondade ao mesmo tempo, faziam de d. Damiana um como centro luminoso diante do qual o orgulhoso e duro João da Cunha sentia deslumbramentos.

A influencia, porém, que a mulher exercitava sobre o senhor de engenho, não era absoluta.

Quando João da Cunha tomava uma resolução sobre objeto grave; quando seu orgulho exigia dela o preenchimento de um dos seus caprichos, leis do seu caracter, nem o olhar, nem o sorriso, nem a meiguice, nem as lagrimas dela venciam a dureza marmórea do espirito, que de outras vezes parecia de cera.