Que razão teve Francisco para, apenas chegado da capital, ir em demanda do filho? Seria acaso para evitar que o rapaz se deixasse envolver em algum disturbio como aconteceu? Seria para fazêl-o sahir da desordem, segundo fez, no caso de já o achar colhido nas malhas della?

A razão foi outra. Não temia Francisco os perigos do samba. Desde pequeno sentia paixão por este divertimento, de que fôra ardente cultôr na mocidade. Grande parte dos versos com que Lourenço deliciára os festeiros da casa de Victorino, elle os aprendera de Francisco, insigne cantador e repentista. A fama deste ultimo era tal, que muitos dos matutos daquellas vizinhanças andavam espreitando a occasião de ir Francisco ao Recife para fazerem com elle as suas viagens. É fácil a explicação deste procedimento.

Em sua companhia, as longas noites que tinham de curtir na travessa de muitas leguas de solidões quasi inteiramente inhabitadas, eram suavisadas pelos formosos cantares do matuto. Que suberbos serões não tiveram elles, ao luar, as redes armadas debaixo das arvores, os cavallos pastando peiados em frente da pousada, a viola quebrando com seus sons deleitosos a mudez da noite, e Francisco enchendo o deserto com as inspirações de sua musa soberana e as harmonias de sua voz rica de ternura e de saudade!

Razão muito differente teve o almocreve para procurar Lourenço.

As noticias da guerra, trazidas por elle da capital eram de summa gravidade. Elle proprio tinha ouvido em Olinda contar-se muito caso triste. Ahi soube o que projectavam os mascates e os nobres. Com seus proprios olhos testemunhou os aprestos para a guerra. Vio de perto a chamma immensa que começara a incendiar a provincia. João da Cunha, lidas as cartas, fez-lhe varias indagações, e com elle os amigos presentes, sobre o que tinha visto e sabia. Combinadas as informações pessoaes do morador com as noticias enviadas por Amador da Cunha, por André, e por outros, forçado lhe foi reconhecer que, atirado o facho da revolução aos quatro ventos, dentro em pouco prenderia fogo a vila de Goyanna, para onde emissarios particulares dos portuguezes tinham sido adrede mandados, e na qual contavam elles parciaes poderosos de meios e valorosos de animo.

Entre estes apontavam-se Antonio Coelho, sujeito de grandes espiritos; Jeronymo Paes dinheiroso marchante, não menos ardente do que o primeiro; Belchior Ferreira, rábula que, posto fosse filho da terra, bem como o meirinho Romão da Silva, que delle recebia diariamente lições incendiarias, destinadas a decidir a gentalha do lugar a tomar o partido dos mercadores, fazia grandes entradas nos espiritos por fallar em nome da liberdade do povo; Manoel Gaudencio, alfaiate pernóstico, patranheiro e ambicioso, que aspirava a melhorar de officio com a descida dos nobres e a subida dos negociantes.

O principio, ou antes os interesses contrarios aos que estes sujeitos, e outros de identicos sentimentos e intuitos, sustentavam eram representados pelos cavalheiros que já apontamos, isto é pelos senhores-de-engenho e pelas primeiras autoridades, assim civis, como militares da localidade.

Só uma vista curta não verá na guerra-dos-mascates, antes uma luta travada por dois grandes principios, do que uma revolta filha de preconceitos ridiculos e costumes atrazados. Certo concorreram não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexiveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundario do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramatica da acção, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades modernas, como das antigas—ao comércio e á agricultura, principios que, quando accordes em seu desenvolvimento, trazem a prosperidade e riqueza dos povos, e quando divergentes, o seu atrazo sinão o seu aniquilamento.

As cartas, de que Francisco foi portador, em substancia rezavam:

Que a guerra, declarada pelos forasteiros contra os pernambucanos e o governo legal, e já em principio de execução, promettia ser de vida e morte, attentos os meios de que dispunham aquelles, e o empenho em que se mostravam de aniquilar estes;

Que esses meios eram immensos e consistiam não só em viveres acumulados durante os seis mezes ultimos nos armazens do Recife, mas tambem em grossas quantias com que elles habilitavam os seus confidentes nas localidades mais importantes a propagar e alentar a premeditada hostilidade;

Que esta hostilidade era tanto mais digna de temer-se quanto a patrocinavam, dando toda a força que podiam aos negociantes do Recife, o governador Caldas, da Bahia, onde estava, e até alguns fidalgos portuguezes, por exemplo d. Francisco de Souza e seu filho d. João de Souza, que se achavam então no sul da provincia.

Á influencia destes dois fidalgos já deviam os mascates a forte cooperação do coronel dos indios do Cabo, d. Sebastião Pinheiro Camarão, parente do grande Camarão, que tanto brilhara na guerra hollandeza. D. Sebastião Pinheiro deixára seduzir-se por elles, bem como outros importantes moradores da freguezia do Cabo;

Que tinha Amador da Cunha (irmão de João da Cunha) recebido ordem do capitão-mór de Jaboatão para ir com sua gente pôr cêrco ao Recife, segundo o accordo havido com os capitãesmóres de Maranguape, Iguarassú, Varzea, Santo-Antão, São-Lourenço, Nossa-senhora-da-luz, Ipojuca, Tracunhaem, Serinhaem e outras freguezias, afim de ver si conseguia que se rendessem os revoltosos;

Que a elle Amador se lhe afigurava, pelos obstaculos conhecidos ou calculados, terem os pernambucanos guerra para muitos annos, si Deus não conjurasse o medonho cataclysmo que ameaçava devorar honras, fortunas e vidas.

Emfim, tanto as cartas de Amador, como as de André e outros, accordes em quasi todos os pontos e noticias, respiravam sobresaltos, inquietações e até desanimo. Havia porém no meio das trevas, que traziam, um ponto luminoso, que em todos os corações projectou um raio de esperança. Era a noticia de que o bispo se tinha libertado, por uma pia fraude, do poder dos mercadores.

O odio, a ira, o receio, a impaciencia e outros differentes sentimentos tiveram por minutos perplexo e mudo o senhor-de-engenho.

Quando estava para tomar parte nas reflexões que os outros, durante o seu silencio, iam fazendo sobre o objecto da correspondencia lida, umas das senhoras que se achavam na sala immediata, appareceu á porta do aposento. Era a mulher de Mathias Vidal.

— É então certo que os mascates se mostram fortes e insolentes? Perguntou ella ao sargento-mór.

— Quem vos disse tal, senhora d. Izabel? retorquio elle.

— As cartas que acabastes de lêr, respondeu d. Damiana, aparecendo tambem. Daqui ouvimos toda a leitura.

— Infelizmente parece que vamos ter guerra para muito tempo.

— Que vos dizia eu ainda hontem, Mathias? Disse d. Izabel, dirigindo-se ao marido.

— As guerras, observou Manoel de Lacerda, si trazem males, tambem trazem bens. Demos tempo ao tempo.

E levantando-se, encaminhou-se para a sala, aonde d. Damiana e d. Izabel retrocederam logo. Já ahi estavam Cosme Bezerra e Filippe Cavalcanti, que a elle tinham precedido e conversavam com outras senhoras presentes.

— Esses mascates não estão em si, dizia d. Maria Bezerra a seu marido. Não querem ver que não podem levar a melhor á nobreza da terra. Até os de Goyanna, que não são muitos, hão de apresentar-se contra os nobres, disse o alcaide-mor.

— Tambem os de Goyanna? Inquiriu com incredulidade a mulher de João da Cunha.

— A senhora d. Damiana duvida que o façam? É porque ignora que os do Recife mandaram grossas quantias para cá comprar a gentalha que nos odeia. Antonio Coelho, do balcão de sua loja, que considera um throno, só tem para os nobres injurias e desprezos. Belchior Ferreira, de certo tempo a esta parte, monta guarda a horas certas todos os dias, em companhia de Romão, na botica do Rogoberto, e leva horas a dizer maldades e aleives contra os senhores de engenho.

— Não admira. Traz sempre a imaginação excitada pelo vinho que lhe dá a beber Antonio Coelho, os olhos encandeiados pelo ouro que lhe mostra, mas não lhe dá, Jeronymo Paes, disse Cosme Bezerra.

— Tenha a senhora d. Izabel certeza de que dentro em pouco ha de soar em Goyanna o grito da rebellião. Quem sabe si a este momento não estão tramando nos escondrijos dos seus armazens, Antonio Coelho com seus sequazes a destruição de todos nós?

— Façam o que fizerem—observou a mulher do sargento-mór, Goyanna não ha de render-se a elles.

— Porque não ha de render-se?

— Não sabemos todos que Goyanna é invencível porque todas suas igrejas tem as frentes voltadas para dentro della?

— É verdade—disse uma senhora, que até esse ponto assistira á conversação sem tomar parte nella.

E d. Maria Bezerra accudiu em apoio da velha, confirmando o que della ouvira.

— Abusões do povo, contestou Cosme.

— Os antigos já o diziam, replicou d. Maria e os antigos não diziam sinão a verdade. Minha avó contava-me muitos casos de guerras, em que os que vinham a tomar Goyanna ficavam destruidos ou presos nella, e nunca a puderam dominar. Os santos das igrejas olham pelos moradores.

— Vão lá contar destas historias a Antonio Coelho e a Jeronymo Paes, que hão de vel-os responder á crença do povo com risos mofadores.

— É porque elles são dois refinados hereges —disse a velhota. E como hereges hão de acabar. Quem fôr vivo ha de vêr. Talvez que nesta guerra mesma que elles preparam, venha o seu fim encoberto.

O crepitar das labaredas com que as fogueiras illuminavam todo o largo pateo do engenho; as detonações das armas de fogo que de todos os lados estavam indicando quanto o S. João é estimado pelo povo, fizeram emfim inclinar para a festa as attenções até então absorvidas nas tristes aprehensões que o grave acontecimento suscitava.

Como si comprehendessem a conveniencia de auxiliar esta nova disposição dos espiritos as escravas copeiras entraram nesse momento na sala, conduzindo bandejas com bolos e doces de que começaram a servir-se os hospedes.

Dentro em pouco a conversação, ainda presa por uma ponta á guerra, espalhava-se pela outra em varios assumptos mais proximos e positivos. Praticou-se da abundancia das chuvas, e do mal que tinham feito ás cannas e á roça; da escassez da farinha; da carestia da fazenda.

— A razão porque a farinha não apparece no mercado, observou Manoel de Lacerda, é porque os mascates se atravessam e compram por atacado a que encontram. A razão do alto preço da fazenda é porque são elles os que a vendem.

— Vai por estes dias á praça o engenho de Martins por execução que lhe move o Porto, disse Felippe Cavalcanti. Por um anno que Porto levou a supprir o engenho de Martins, fez-se credor deste em avultada quantia. Absorveu-lhe tres ou quatro safras, e por fim, não contente com este resultado ainda, propoz-lhe acção em juizo e o obriga agora a dar o engenho a pagamento.

— Entretanto, observou Cosme Bezerra, Porto está rico. O assucar, que recebia do Martins, em pagamento, a 400 reis a arroba, remettia a seus correspondentes na Europa a razão de 1$400.

— Só por este modo poderia elle abrir os dois importantes armazens que estabeleceu no Beco-do-pavão, observou Jorge Cavalcanti.

— E que é feito de Martins? Perguntou um.

— Está pobre, e é hoje meu lavrador, respondeu Mathias Vidal.

— E não havemos de pegar em armas contra os mascates! Exclamou Cosme Bezerra.

Foi neste ponto interrompida a conversação pela entrada de Francisco e de Lourenço. Vendo-os, o sargento-mór chamou-os ao gabinete onde minutos antes se celebrára em familia a grave conferencia a que assistimos.

— Aqui está o rapaz, seu sargento-mór, disse Francisco, entrando no gabinete.

— Estava impaciente pela tua volta. Dize-me cá. O rapaz poderá partir para a capital, ao nascer da lua?

— Quem? Eu? perguntou Lourenço.

— Tu mesmo, Lourenço.

— Posso partir já, assim o ordene vosmecê.

— Estás prompto de tudo?

— De tudo estou, porque nada tenho que apromptar.

— Si Francisco não tivesse chegado ha pouco, elle é que havia de ir. A incumbencia é de gravidade.

— E que tem que eu tivesse chegado ha pouco? Perguntou o matuto.

— Estás cansado. Já não és menino para resistires a duas jornadas forçadas uma atrás da outra.

— Perdôe-me vosmecê, seu sargento-mór. Muito me agrada fazer pessoa em meu filho. Mas se é somente por me suppor cansado da viagem que o escolheu, de preferencia a mim, para ir á cidade, eu devo dizer a vosmecê que estou mais prompto do que elle para fazer a viagem. Faço de conta que tomei o rancho em Goyanna, e que a minha parada é na Parahyba. Lourenço é digno de toda a confiança dos homens de bem. Mas é ainda muito moço, tem viajado pouco por esses caminhos, e sem elle o querer, pode sahir o seu serviço mal feito. Vosmecê entregue-me o que tinha para elle, que em menos de uma hora já estou no caminho de Olinda. Só peço licença para ir ao Cajueiro dar um adeus á minha velha.

— Pois vai. Quando voltares, receberás as minhas ordens.

— Senhor, sim.

Dentro de poucos minutos pai e filho estavam no Cajueiro; e quando a luz apontava por cima da mata, já aquelle se achava uma legua distante da vila, em direitura para a capital.