Lauriano tinha sua tenda na rua do Rosário, perto da loja de Antonio Coelho. Era, como quase todos os sapateiros, paroleiro, indagador da vida alheia, e por isso sabedor de muita particularidade e segredo intimo. Seus freqüentadores não tinham nem podiam ter para ele reservas.

Na dita tenda ajuntava-se o povo baixo da vila, que o vinho e o cobre do famoso mercador, por interesseira generosidade dele, faziam simpatizar com a causa dos mascates. Para esta gente estava ela nas mesmas condições que a botica do Rogoberto para o rábula, o meirinho e outros sujeitos de igual estofa. Era o club permanente da plebe. Aí se discutiam com veemência e largueza os negócios da amiga e da inimiga parcialidade. Não raras vezes, no estreito recinto desse singular parlamento, resolveram-se ofensas e defesas da máxima importância. O oficial de pedreiro, o servente de obras, o aprendiz e o oficial de outros ofícios, vinham deixar na tenda as noticias que colhiam nas ruas, e daí levavam as que os outros, seus iguais, tinham trazido para o ignóbil comercio em que eram práticos.

O Tunda-Cumbe fazia parte deste congresso ilícito. Então as repugnância reciprocas entre os portugueses e os homens de cor do país não estavam tão afirmadas como depois vieram a ficar. Eram adina de fresca data os grandes exemplos da fraternidade que em conjunturas gravíssimas ligara raças estrangeiras com raças e castas nacionais; aquelas representadas por João Fernandes Vieira e outros, estas por Filipe Camarão, Henrique Dias e tantos índios, mulatos e pretos que deixaram ilustres nomes esculpidos nas paginas da historia e glorificados pela tradição. Não é pois de admirar que, vendido o seu peixe na vila, fosse o Tunda-Cumbe, não por obrigação mas por devoção, tirar a ferrugem da língua na tenda do Lauriano, onde se reuniam outros mascates da sua laia.

Na antevéspera de S. João o Tunda-Cumbe tinha estado com o sapateiro e lhe havia dito que iria divertir-se à noite seguinte em casa do Victorino. Em conversa familiar já revelara tempos antes as suas inclinações por Bernardina.

— Em toda esta redondeza por onde ando, dissera o vendedor de peixes ao de sapatos, não conheço rapariga que tanto tenha bolido com o meu sentimento como a filha do Victorino.

O tendeiro, que com os defeitos próprios da sua condição, trazia aliado o de instigador das ruins paixões, tantas coisas lhe meteu na cabeça que o mascate saiu dali cheio da falsa idéia de que ninguém melhor do que ele tinha direito à posse da rapariga. Àquela manhã, Antonio Coelho, passando pela porta de Lauriano, perguntara pelo Tunda-Cumbe. Respondera-lhe o tendeiro que lhe seria fácil encontrar-se com o peixeiro à noite em um ponto, que sabia; e, como farejou negocio importante, ofereceu-se para transmitir-lhe o recado que o mercador quisesse dar. Este contentou-se com lhe pedir que dissesse, de sua parte, ao Tunda-Cumbe, que viesse falar com ele impreterivelmente em sua casa àquela noite. Tunda-Cumbe, não obstante Ter grandes desejos de não deixar o samba senão depois de ausentes todos os convivas, correu sem demora à vila, calculando que de semelhante chamado só lhe poderiam provir vantagens, atento o estado das coisas na capital, do qual já tinham chegado as graves noticias à Goiana.

Os inimigos da nobreza, divertindo-se, como esta, ao menos aparentemente, e festejando com fogos enterrados à frente de suas casas, com reuniões, danças, comes e bebes a noite do precursor do Messias, projetavam também tenebrosas vinganças, seguindo, sem o saberem, os nobres, posto que o conjeturassem.

A morada de Coelho ficava por cima da própria loja. No vasto sobrado para isto destinado não faltava o luxo que caracteriza a vida de larguezas e deleites que o comercio dá e tira com a facilidade natural do jogo das operações mercantis. As extensas relações que tinha entre os agricultores, e a circunstancia de ser o negociante de mais nota do lugar pelos meios pecuniários de que dispunha, obriga-lo-iam a essa vida fastosa, quando certa ambição de figurar e o propósito de competir no lustre e grandeza com os primeiros fidalgos de Goiana não exigissem dele o tratamento luxuoso que sustentava. Até certo tempo atrás, fora visto com bons olhos por esses fidalgos. Mais de um deles lhe dera demonstrações de respeito e estima. Chegou-se a dizer que à influencia de alguns devia Coelho a nomeação de sargento-mór com que o distinguira el-rei. Fosse porque fazia de se grande conta; fosse porque lhe parecera tempo de firmar a sua posição ainda não de todo segura; fosse porque não pudera resistir às imposições do sentimento, deu Coelho um passo que, produzindo completa e radical mudança em sua vida, converteu em hostilidade e ódios contra se próprio as afeições e benevolências que tinham antes disso manifestado por ele os nobres da vila. Sabendo anos antes, que d. Damiana, pela qual sentia grande afeto, estava para ser dada em casamento a João da Cunha, antecipou-se ele e pediu-a para si. Foi-lhe peremptoriamente recusada; e não teve outra origem o eclipse da sua estrela, nem o ódio que cavou entre ele e o sargento-mór o abismo insondável que os separava. Ao principio sentiu-se Coelho como curvado debaixo do peso deste grande desastre; mas, por derradeiro, reacendendo-se-lhe a chama do forte animo, um momento apagada pelo sopro da tormenta, o negociante ergueu a cabeça, fixou vistas altivas em seu altivo inimigo, e assentou de lutar com ele e seus parentes e iguais, até que os vencesse ou caísse de todo exangue e morto. A esse tempo já se iam manifestando as rivalidades que trouxeram como resultado a guerra. Coelho, em vez de procurar dissipá-las, foi o primeiro que em Goiana as ateou e lhes deu vulto e desenvolvimento; de modo que, quando, pela criação da vila do Recife, elas definitivamente fizeram explosão, à frente dos mascates apareceu ele, sedento de vingança, tomando para se toda a responsabilidade e direção dos ódios insurgentes e tornando-se o alvo dos rancores da nobreza. Quando o Tunda-Cumbe apareceu na sala, achavam-se aí com o dono da casa Jeronimo Paes, o português Manoel Rodrigues (taberneiro), Belchior, Romão e outros. O assunto da conversação era a guerra, nem podia ser outro o que os reunisse então. Mas aqui não se manifestavam apreensões e temores, como no engenho, entre os nobres. Aqui se tinha por segura a vitoria, não obstante já se saber que o bispo se evadira e se achava exercitando o governo contra os mascates. - Que importa isso? Inquiria Jeronimo Paes. As fortalezas, os arsenais, a milícia de terra e a milícia naval, os homens bons do Recife e o povo são todos nossos. Em nossos armazéns temos gêneros acumulados para seis meses. Falava-se em que os mazombos tencionavam sitiar a vila. Estúpido plano é este. Que mal nos pode trazer semelhante sitio, quando temos livre o porto, por onde podemos comunicar-nos, não só com as outras capitanias, mas até com importantes localidades do litoral de Pernambuco?

— Hão de cansar-se eles primeiro de nos guardarem, que nós de estarmos guardados por semelhante modo — acrescentou um dos circunstantes. Dando com os olhos em Tunda-Cumbe, Antonio Coelho levantou-se e acenou-lhe com a mão que o acompanhasse ao aposento contíguo. Aí chegados, Coelho ofereceu ao peixeiro uma cadeira, e dando exemplo, disse-lhe:

— Senta-te, Manoel Gonçalves.

— Este, a modo de admirado da intimidade que eqüivalia a uma honra, que ele estava longe de esperar, respondeu:

— Pode vosmecê dizer o que ordena. Ouvirei tão bem estando de pé, como se sentado estivera. Senta-te. O negocio exige pratica longa.

Tunda-Cumbe sentou-se.

Por todos os de Goiana era o Tunda-Cumbe havido por meio mercador e meio bandido. Ninguém ignorava suas relações com certos sujeitos de ruim fama, alguns dos quais se dizia serem associados ao peixeiro em criminosas negociações. Havia quem soubesse que no lugar denominado Sipó tinham eles um como rancho, onde celebravam seus conciliábulos.

— Mandei chamar-te, Manoel Gonçalves...

— Aqui interrompeu Antonio Coelho, e um momento depois continuou:

Mas, antes de entrarmos no assunto, não será mau que desmanches um pedaço de bolo fresco e laves a guela com um copo de vinho puro e velho, que há dias me chegou do Porto.

Assim falando, Coelho apontava para a cômoda de cedro, onde se viam, em salvas de prata, bolos de S.João de diferentes tamanhos e formas, e em garrafas de cristal o vinho generoso a que aludira. Tenha paciência, seu Antonio Coelho, - respondeu o peixeiro. Acabo de chegar agora mesmo do divertimento em que estava, quando o Lauriano me deu o recado. Queira ter vosmecê a bondade de vir direitinho ao negocio, que eu fiquei de voltar ainda hoje ao dito divertimento, onde tenho uma grande empresa que executar, se para isso não me faltar o tempo.

— Que empresa é essa?

— Quebrar os dentes a um pé-rapado, por não terem mordido a língua dele na ocasião de me dizer meia dúzia de liberdades que lhe hão de custar bem caro.

— Folgo em encontrar-te nestas boas disposições. Mas, para não dares passo em falso, trata primeiro de organizar as tuas forças. Não tens tu vários amigos com quem te podes ajuntar a qualquer hora que seja necessário?

Tunda-Cumbe, não sem dar mostras de confusão e hesitação, inclinou a cabeça como quem respondia afirmativamente.

— Pois bem, tornou o negociante. É da máxima conveniência que de hoje para amanhã reunas todos eles e à sua frente trates de hostilizar por todos os meios imagináveis, não só o pé-rapado a quem queres quebrar os dentes, mas tantos pés-rapados e mazombos quantos puderem cair em tuas mãos. Já deves saber o que resolveram os nossos patrícios e amigos do Recife...

— Tudo sei.

— É de nossa honra e de nosso interesse que o grito que eles soltaram na vila, acha eco em todos os pontos importantes da província, especialmente em Goiana.

— E o governo está de nossa parte?

— O governo! O governador, o legitimo, o verdadeiro governador de Pernambuco, Sebastião de Castro Caldas, este está conosco. D. Manoel é simplesmente o governador da rebeldia. Deu força aos insurgentes, e está exercendo atribuições que lhe não competem. Os que o sustentam e por eles são sustentados, tão criminosos são como ele. opuseram-se à criação da vila, o que quer dizer que se opuseram à vontade e à ordem de el-rei; tentaram contra a vida do legitimo governador, e o obrigaram a refugiar-se na Baia para escapar à morte; na ausência dele, tomaram conta do poder tumultuaria e revolucionariamente; o bispo por infame covardia ou por indigna conivência, assumiu as rédeas do governo e expediu perdão aos rebeldes e assassinos. Devíamos nós, leais vassalos de el-rei, ter por justo e legal o infame perdão, quando as justiças do céu e da terra exigiam antes as cabeças dos rebeldes? Não, mil vezes não. Acumulamos viveres, ajuntamos dinheiro para que nos não faltasse nada na ocasião do desforço. Julgando os nossos amigos do Recife chegada esta ocasião, acabam de soltar o brado em favor da restauração da autoridade legal, vil e traiçoeiramente conspurcada pelos que se apelidam nobres, quando outra coisa não são senão rebeldes e sicários. Assim, todo leal português tem o dever de lançar mão das armas para derrubar o governo de d. Manoel e levantar novamente o de Castro Caldas. Em favor desta empresa patriótica e gloriosa é que te proponho reunas todos os amigos que puderes. O programa da luta é largo, mas resume-se nisto — destruir, seja por que meio for, qualquer força, qualquer bem, até a própria vida de todos os fidalgos de Pernambuco.

— Tudo de que precisares, a saber, dinheiro, viveres, apoio, proteção ilimitada para ti e para os teus, a fim de se preencher este plano salvador das nossas fortunas, das nossas vidas e do nome português, ser-te-há prontamente dado ou feito, contanto que a represália não fique nem por um instante retardada. Posso confiar em ti e nos teus, Manoel Gonçalves? Concluiu Antonio Coelho com gestos e expressão de quem estava de corpo e alma entregue a este pensamento e por levá-lo a efeito subiria a todas as eminências e desceria a todos os abismos.

Antonio Coelho era de boa estatura. Tinha os cabelos pretos e corridos, os olhos rasgados e úmidos. Espadaúdo e anafado, dir-se-ia que esse homem, uma vez sentado, não poderia levantar-se senão com auxilio de outrem. Nada entretanto encontraria mais a verdade. posto que maciço de formas, era pronto nos movimentos. Sua agilidade tinha o quer que fosse da eletricidade. Em seu semblante estavam esparzidos os toques de uma expressão particular que o tornavam atrativo. Usava a palavra com veemência e mobilidade que interpretavam brilhantemente os caprichosos raptos e oscilações de seu espirito, umas vezes lento e tardo nas operações, outras franco e arrebatado até a inconveniência e a temeridade.

— Há então viveres e dinheiro bastante para serem distribuídos pela gente que eu ajuntar? Inquiriu o peixeiro, como quem não queria ainda acreditar na formal promessa que acabava de fazer-lhe o negociante.

— Há tudo de que precisares para as mais arriscadas e custosas arremetidas contra a nobreza, disse a com segurança Antonio Coelho, qual se fizesse um juramento solene. Além disso, acrescentou como por demais, o saque entrará por muito na ordem dos meios de suprir qualquer falta que se não tenha podido prever.

— Eu quero ser franco a vosmecê. Tenho já comigo, não de hoje, mas de há muito, vinte camaradas valentes e decididos. Se me autoriza a aumentar o número, dentro de pouco tempo terei uma companhia organizada. Autorizo-te a organizares um batalhão. Pagarei a todos o soldo, e a ti aquele que costumam vencer os coronéis.

— Muito bem, respondeu o Tunda-Cumbe. Pode contar comigo. De hoje a oito dias teremos gente para tomar Goiana.

Trata-se, não de tomar Goiana, que nossa é, mas de ir em socorro dos nossos amigos do Recife, que estão ameaçados de um rigoroso sitio, posto pelos rebeldes de Olinda e das vilas mais próximas. Pois sim; é para o que quiser. Sou pau para toda obra.

— Fica pois assentado que de hoje em diante andaremos de acordo nesta grande obra. Sim, senhor. Está decidido.

— Em cado de necessidade, por quem poderia mandar chamar-te?

— Por Lauriano.

— Podemos confiar nele?

— É um negro interesseiro, que odeia muito os nobres, porque de um deles foi escravo e provou muito bacalhão. Ele sabe onde há de procurar-me, nos dias em que não costumo vir à vila.

Antonio Coelho deu algumas ordens ao peixeiro, assaz agradáveis para este, por serem acompanhados de algumas moedas de prata.

Metido o dinheiro na algibeira do gibão velho que trazia, o Tunda-Cumbe retirou-se, levando consigo a convicção de que desde o momento em que fora autorizado a acrescentear o seu séquito, era ele tão poderoso chefe senão mais do que o próprio que a isso o autorizara.