Antes de chegar à Goiana, praticou em Pedras-de-fogo o bando que viera da Paraíba, capitaneado por Luiz Soares, uma infame tragédia.

Essa povoação, da qual, por efeito de nossa viciosa divisão territorial, uma parte pertence à província da Paraíba, e a outra parte a Pernambuco, já naquele tempo representava certo espírito de resistência ao elemento estrangeiro, que depois da referida tragédia se acentuou e manteve até bem pouco tempo, segundo direi.

A principal família de Pedras-de-fogo em 1711 não se caracterizava por clara linhagem nem por haveres, mas pelo numero de seus membros, pelo espirito de trabalho de cada um, pela harmonia que os trazia unidos uns aos outros, e pela valentia que de qualquer deles fazia um leão.

Manoel do O’, sujeito tirante a pardo, natural de Nossa-Senhora-do-ó fora ainda muito novo estabelecer-se com sua tenda de alfaiate em Pedras-de-fogo.

Esse lugar, que ainda hoje não é notável senão por sua grande feira de gados, a qual aí se faz semanalmente, por então começava apenas a povoar-se. poder-se-ia compor de quinze a vinte casinhas, em sua maior parte cobertas de palha.

O alfaiate casou-se com a filha de um mulato por nome José da Luz, que tinha na Rua-da-feira a casa de morada e defronte desta a tenda de ourives. A união foi fecunda, cada ano nascia a Manoel do Ó um filho; de tal sorte foram as coisas, que em 1710 a sua descendência se compunha de dez filhos e vinte e dois netos. Alguns destes já taludos.

Não havia nenhum que não tivesse seu meio de vida. Alguns não o tinham muito decente e legitimo; não há família numerosa em que se não aponte qualquer lepra. Em sua maioria, porém, eram os descendentes varões de Manoel do Ó de regular procedimento e muito benquistos no lugar.

Posto que, como meio de levantar a gentalha a seu favor, os mascates fizeram publicar que a sua causa era a da liberdade e da igualdade do povo contra a tirania constituída e os privilégios antigos da nobreza, meio a que deveram a maior parte dos auxílios dos naturais da terra, Manoel do Ó, que não era tolo, convidado por Maia a aderir aos motins, escusou-se, dizendo que nada tinha nem com os nobres, nem com os mascates, visto que era ele, como todos os seus, mecânico, plebeu e homem de cor.

Tanto bastou para excitar o desagrado dos insurgentes, dos quais foram, dentro em pouco, tão positivas e repetidas as hostilidades e arrogancias contra Manoel do Ó, que, ofendido este, ao principio simplesmente no seu melindre de família, e por derradeiro na própria pessoa de um filho, certo dia, de um genro daí a pouco, e de um neto semanas depois, resolveu declarar-se pela causa dos nobres; e uma das tentativas de Maia para fazer junção em Goianinha com o bando do Tunda-Cumbe, a fim de se dirigirem ao Recife, foi frustrada por Manoel com sua companhia de filhos, mais ou menos ligados com ele por laços particulares. Foi tão forte e acertada a oposição, que a força mandada por Maia não pode passar sequer os limites da Paraíba.

Não foi só esta a única tentativa de junção malograda; nenhuma houve de 11 de julho para traz que surtisse efeito. Manoel do Ó achava-se diante de todas com sua gente como barreira intransponível e fatal.

Estas e outras idênticas contrariedades exacerbaram por tal forma o capitão-mór da Paraíba que este assentou de queimar o ultimo cartuxo para as fazer cessar de todo.

— Diga a esse negro Manoel do Ó, assim se exprimia ele uma vez a certo sujeito que tinha relações com o alfaiate, que muito breve lhe hei de provar que O é o mesmo que zero; e a seus filhos José da Luz e Antonio da Luz, diga igualmente que hei de mandar apagar as luzes de sebo de Pedras-de-fogo pelo meu escravo Euzebio, com tiros de bacamarte.

Dito e feito. Em 10 de julho, quando menos se esperava no povoado, rompeu o fogo para as bandas da Baixinha, lugar de Pedras-de-fogo que pertence à Paraíba. Tinham sido dados os tiros pela gente de Luiz Soares contra uns sobrinhos do alfaiate que moravam desse lado.

Manoel do Ó, que não obstante a sua avançada idade tinha ainda grandes espíritos e não perdia de vista os passos de Maia, saiu logo com sua gente; e pois na véspera de noite seu filho Anacleto do Espirito-Santo, que chegara do Limoeiro, aonde tinha ido a destrocar uns cavalos, lhe dissera ter visto aí o Tunda-Cumbe, não pensou em proteger a retaguarda, até porque, sendo muito numeroso o concurso dos agressores, toda a gente viu-se obrigada a empenhar-se em lhe fazer frente.

Este foi o seu mal, porque momentos depois teve a retaguarda atacada por forças não menos numerosas que as de Luiz Soares. Foi o caso que, tendo-se entendido Maia previamente por carta com Antonio Coelho e concertado com ele o ataque ao obstáculo comum, não se fizera esperar do lado de Goiana o reforço do Tunda-Cumbe.

Vendo-se entre dois fogos o povo de Manoel do Ó, não houve esforço que não empregasse para romper qualquer dos lados, nem atos de bravura que não praticasse, a fim de levar a melhor aos agressores. Tudo porém foi debalde. Trinta homens não podiam triunfar de oitocentos.

A cabo de uma hora de peleja que não se pode descrever, Manoel com quase todos seus parentes estavam destroçados e vencidos. Restavam unicamente da família as mulheres, dois filhos e três sobrinhos, que lograram escapar-se quando reconheceram que a sorte das armas lhes era adversa. Estes, para não perderem a vida, ganharam o mato.

Não se podem imaginar as atrocidades que, vendo-se senhores do campo, cometeram na povoação, desamparada no mais aceso da luta, os bandoleiros desenfreados e sedentos.

Refugiaram-se no mato os homens feridos e as mulheres chorosas e consternadas que constituíam os últimos restos da parentela de Manoel do Ó. Aí o seu ódio cresceu e radicou-se profundamente no coração de cada um dos foragidos. Exagerados em seus desejos de desagravar-se, juraram na solidão da selva, testemunha da sua adversidade e depositaria dos seus prantos, que se pudessem voltar com vida a Pedras-de-fogo, como lei de sua honra, não consentiriam jamais que nenhum português se demorasse mais de vinte e quatro horas na povoação fundada pela ilustre vitima cuja memória eles deste modo queriam honrar. Julgavam, jurando preencher esta promessa solene, que cumpriam um preceito de alta justiça. Não era porém outro sentimento o deles, assim prometendo, que o sentimento da vingança pessoal, sempre cego e injusto.

Transmitindo-se de pai a filho, de filho a neto, nem foi esquecida a tradição do morticínio nem ficou sem preenchimento a promessa feita entre prantos e angustias há mais de um século.

Não há no que aí fica relatado, invenção de romancista. Até bem pouco tempo, logo que chegava qualquer filho de Portugal a Pedras-de-fogo, era intimado de ordinário por moradores pertencentes às primeiras famílias, para que dentro de poucas horas se retirasse.

Este exagero passou de todo. A civilização, polindo o brasileiro do interior, deixou-lhe inteiramente livres os movimentos de natural generosidade e brandura, que constituem a parte essencial de seu gênio.

Enquanto estas cenas e outras semelhantes se passavam em diferentes pontos do termo de Goiana, acertadas providencias eram dadas pelo governo da capital a fim de que elas não se reproduzissem.

Não sem razão inspirava aos nobres plena confiança o ajudante-de-tenente Francisco Gil Ribeiro. A galhardia e a bravura militar de Gil eram tradicionais, e constituíam um dos mais ricos e ilustres patrimônios da gloria pernambucana. Para descansar das fadigas da sua longa e trabalhosa vida, acolhera-se o ancião na sombra do lar domestico. Afetos brandos, inclinações respeitáveis, tinham-se substituído às violentas explosões da paixão guerreira. Estabelecera ele sua residência nas Salinas (hoje Santo-Amaro), à margem direita do Beberibe, entre cajueiros e sapotiseiros pitorescos. Daí o foi tirar o governo, para lhe entregar o comando da fortaleza de Itamaracá, ameaçada de cair no poder dos amotinados de Goiana. As noticias, porém, dos graves e sucessivos conflitos havidos nesta vila, determinaram o governo a ordenar que o ajudante-de-tenente, à frente de quarenta homens, e acompanhado dos alferes Carlos Teixeira e Francisco Alves, e do ajudante Felipe Bandeira de Melo, se dirigissem sem perda de tempo a pacificar aquela localidade.

Ao entrarem na estrada geral do norte, um matuto que passava do Recife, vendo a força, recuou o cavalo, para deixar livre o caminho. Parecendo suspeito a Gil este movimento de pura cortesia ou respeito, fez sinal a alguns soldados que segurassem o matuto. Este, porém, que não era outro que Francisco, adivinhando a intenção, pôs-se a respeitosa distancia, aos primeiros gestos dos soldados.

— Que idéia faz de mim, seu comandante? perguntou ele com serenidade. Pensará que sou pela mascataria? Pois se pensa, está malenganado.

Ouvindo estas palavras, Gil, com gesto imperioso e grave chamou o matuto para mais perto de si; e lhe disse:

— Quem foi que te ensinou este recado para me iludires?

— Não quero iludir ninguém.

— Cuidado com esta gente, senhor ajudante, disse Felipe Bandeira a meia voz a Gil. Parecendo simplórios, são finos e manhosos.

— Mas quem lhe disse que eu sou pela mascataria? tornou Gil a Francisco.

— Se é ou se não é, eu não posso jurar. Cá eu é que não sou nem serei por eles nem neste mundo nem no outro.

— Então, se eu tivesse necessidade de uma pessoa que me ensinasse os atalhos para chegar à vila sem ser pressentido pelos nobres, não me prestava você de boa vontade este serviço tão pequeno?

— Saberá vossa senhoria que nem de boa nem de má vontade eu lhe ensinava os caminhos da vila para este fim. Daqui mesmo destorcia para traz no meu castanho, porque para servir a tais indivíduos não há forças humanas que me obriguem, nem dinheiro que me compre.

— Grande ódio tem você a esses homens que só cuidam em viver do seu trabalho.

— Eu cá sei em que eles cuidam. Querem enriquecer à nossa custa. Vendem a fazenda pela hora da morte, agora os gêneros da terra querem comprar por pouco mais que nada. Não fazem isto só com o pobre matuto, como eu; até os senhores-de-engenho gemem entre as unhas deles. O que não tem o olho vivo, quando dá acordo de se está com as terras, as canas, os negros de sua propriedade metidinhos todos dentro da gaveta do mascate, que faz os suprimentos e adiantamentos. Muito francos em fiarem são os tais mascates, quando vêm que a pessoa a quem fazem seus oferecimentos, tem bens de seus. Agora, quando a conta está bem aumentada, tomam tudo pela justiça, e ficam donos de casas, escravos e fazendas do dia para noite. Se isto é ser bom, o inimigo leve esta bondade para si, que eu não a quero nem de graça, quanto mais à custa do meu roçado, do meu cavalo e da minha casinha.

Tendo dito estas palavras, Francisco, chegou a espora que trazia no pé direito à barriga do castanho e virou para o Recife. Não pode, porém, avançar muitos passos, porque Gil, pondo as pernas à sua cavalgadura, tomou-lhe logo o caminho.

— Para onde vai? Venha cá. Estamos de acordo, e podemos ir juntos até Goiana. Você é muito desconfiado, camarada, disse em tom de quem gracejava.

— Não me fiz por minhas mãos, respondeu Francisco. Foi assim que nasci da barriga de minha mãe.

— Mas não tem que desconfiar de mim.

— Meu senhor, a gente vê cara e não vê coração. Eu sei lá se vosmecê vem contra os mascates ou pelos mascates...

— Pois você não está vendo a tropa?

— Que tem a tropa? Não podia ser deles?

— Então, você vem da capital e não sabe que eles estão cercados?

— Eu sei muito bem que eles estão cercados. Sou capaz de dizer até por quem.

— Diga lá.

— Pois escute. Nas trincheiras levantadas junto do muro do S. Bento está a companhia do capitão Dionizio, e a dos Estudantes, comandada pelo capitão Antonio Tavares; nos presídios do Varadouro, Porto-dos-padres, Porto-das-lavadeiras, Carreira-dos-masombos e Tacaruna, estão o tenente José Tavares e o sargento-mór Domingos Freire; as forças de S.Amarinho, Campina-da-cerca, Curtume e Santo-André são comandadas pelo padre Paulo; na Conceição, Saco, Olaria e Arraial-da-boa-vista está o capitão Carlos Ferreira; na Barreta e no Arraial-dos-afogados está o comandante João de Barros.

— Bem informado anda você da distribuição das forças do governo.

— Se eu passei por todas elas, porque tive de ir a Jaboatão.

— Mas então porque é que duvida se somos pelos mascates ou pelos nobres? Inquiriu Felipe Bandeira.

— Porque duvido? Então os mascates também não tem tropas na vila? Eles não podiam mandar gente por mar do Recife para Itamaracá? Mas enfim, como vosmecês dizem que vêm por parte do governo, estou calado. Eu não duvido da palavra dos homens.

A esse tempo a tropa, que um instante estivera parada, seguia já o caminho de Goiana. Gil, Felipe Bandeira e os outros oficiais iam no couce. Francisco tinha metido o cavalo entre o de Felipe Bandeira e o de Gil.