Nos primeiros dias de julho, em lugar dos vinte malfeitores que dantes trazia mais ou menos ligados consigo, contava o Tunda-Cumbe numero superior a duzentos; e por tal forma lhes havia imposto a sua autoridade, que a seu grado os dirigia e movia tão bem como se foram puros autômatos.

Os insultos, as arrogancias, os furtos de cavalo, os roubos, as atrocidades de toda espécie começaram então a aumentar de modo assustador. Hoje, era a casa de um foreiro assaltada, amanhã, era um negro do engenho castigado cruelmente porque se tinha oposto a que tirassem a cana, a macaxeira, a galinha, a ovelha, que eles por fim sempre tiravam.

Para a família do pobre não houve mais respeito nem segurança. Mulheres honestas e recolhidas, moças solteiras que viviam honradamente sovre se ou em casa de seus pais eram raptadas sem o menor escrúpulo, e iam contra a vontade delas, os olhos arrasados de lagrimas, cevar a brutal concupiscência de assassinos e ladrões, que, confiando na impunidade prometida para eles por seus protetores, as deixavam ao desamparo, nos braços da devassidão, ou entre as unhas felinas da miséria, depois de saciadas suas paixões reprovadas e vis.

Constituiu-se assim o Tunda-Cumbe dentro em pouco tempo o terror de todo o norte de Pernambuco, porque para suas correrias ele não escolhia lugares nem conhecia limites; e publicar o seu nome montava publicar, não já o nome de vinte ou duzentos facinorosos, mas o de quinhentos, afeitos a desrespeitar os homens sérios, a roubar a honra das famílias fracas e a fazenda do proprietário pacifico, a matar o matuto que lhes resistia, a destruir e aniquilar homens e coisas.

Pelo mesmo tempo outro caudilho truculento começou a representar no sul as mesmas tradições de saque, sangue e morte que celebrizaram tão tristemente o Tunda-Cumbe. Era o índio Sebastião Camarão, de quem se dizia que recebera três mil cruzados dos mascates para ser por eles, com seu séquito na guerra que se acendera. Este séquito, composto em sua maior parte de homens que tinham dado inteiramente as costas à honra, à moral, à lei e a Deus, chegou a ser muito numeroso e a contar quase o dobro do outro bandido. Os maiores criminosos do sul faziam parte dele, razão porque nos lugares por onde passavam, nenhum principio ou interesse venerável ficava sem receber deles as mais graves violações e ofensas.

De todos os senhores-de-engenho das cercanias de Goiana, o que servia de alvo ao ódio mais apurado do Tunda-Cumbe era Matias Vidal de Negreiros. A razão é obvia.

Durante o seu almocrevar, quando sucedia passar, não por fazer negocio, mas por encurtar distancias ou evitar grandes atoleiros ou rios cheios, pelo engenho de Matias, fazia o Tunda-Cumbe, rosnando como cão irritado, esta acerba jura:

Hei de vingar-me algum dia neste vilão ruim do que me fizeram seus negros. O dia pareceu-lhe ter chegado duas semanas depois da conferencia que tivera com Antonio Coelho, e para lá se encaminhou com cerca de sessenta dos seus valentões no intuito de tomar a desforra longamente premeditada.

Quando chegou a Itambé seria meia-noite. Fazia brando luar. Tendo sido muito abundantes as chuvas aquele ano, o mato fechara consideravelmente e quase tomara os cinco ou seis caminhos que iam ter na casa. Tunda-Cumbe dividiu a gente em partidas iguais, cada uma das quais tomou a direção conveniente pelo caminho que lhe incumbiu percorrer. A casa não poderia resistir a sessenta homens, que simultaneamente a atacassem por todos os lados; mas não surtiu o plano o menor efeito, porque antes de chegados os atacantes ao ponto, diferentes tiros, partidos de dentro dos matos e canaviais lançaram susto e pavor no animo daqueles que tomavam da surpresa ou emboscada a sua principal valentia. Tunda-Cumbe, receoso de forças que não conhecia, ordenou a retirada.

Foi o caso que tendo Matias Vidal negros e moradores de sua confiança, devidamente espalhados por dentro do mato, e empregados em vigiar durante a noite os caminhos, por sinais assentados antes tinham estes vigias dado aviso da aproximação do bando aos outros negros e moradores, que correram sem demora a impedir o passo aos assaltantes. De há muito suspeitava Matias que o Tunda-Cumbe, em oferecendo-se ocasião oportuna, não deixaria para mais tarde a sua desforra. Todavia, não estaria preparado para frustrar tão facilmente este ataque inopinado, se outra razão o não determinasse a ter prontos meios de debelar qualquer agressão, por forte e súbita que fosse. É a razão que diremos. Assentado ficara entre os nobres em casa de João da Cunha, antes de dissolvido o ajuntamento aí celebrado na noite de S.João, que, não obstante dever-se esperar, para resolução definitiva, por noticias e indicações formais das autoridades e amigos da capital, prudente era que cada um dos proprietários presentes tratasse de organizar sem perda de tempo terços defensivos, com seus moradores e escravos. Dado este importante passo, era fácil dentro em pouco tempo, no caso de necessidade, mobilizar-se em Goiana uma grande massa de gente, que acudisse ao primeiro reclamo da capital, quer para engrossar o cerco, se esta fosse a idéia predominante, quer para tomar de assalto o Recife e destruir o governo constituído pelos mascates dentro nesta vila. Se não fossem reclamados socorros, nem por isso se perderia o que estivesse feito, visto que, devendo-se ter por mais que provável que a reação se generalizasse mais dia menos dia, ter cada um dos senhores-de-engenho junto de se seu contingente, era o mesmo que estar defendido em sua família e propriedade. A demonstração pratica da excelência e sabedoria deste acordo, foi Matias Vidal o primeiro que a teve, pelo que fica escrito.

Esta lição, porém, longe de encurtar, posto que fosse incruenta, os arrojos do chefe dos bandoleiros, o incitou a investida ainda mais grave.

O dia seguinte sendo Domingo, apresentou-se ele muito cedo na vila, deliberado a praticar qualquer distúrbio, que, produzindo escândalo, para logo desse lugar a que seu nome soasse como o de um diligente e fiel servidor dos mascates, tanto em Goiana, testemunha do insulto, como no Recife, aonde logo havia de chegar a noticia dele.

Estava-se em 3 de julho. Os espíritos achavam-se por extremo excitados. Os parciais da nobreza, animados por saberem que tinha ela por se o governador, já restituído a sua liberdade, não perdiam ensejo de exaltar a sua força e ostentar o poder que dá a autoridade. Os parciais dos mascates não faziam por menos, publicando que sem dinheiro comprariam os mais nobres da terra, inventando inumeráveis relações de comunidade entre os rebeldes proeminentes e o governador geral do Brasil, d. Francisco de Souza, seu filho, e outros importantes vultos da Baia e de Portugal.

Varias eram as pessoas que na botica do Rogoberto matavam o tempo enquanto o sino da matriz não vibrava a Segunda chamada para a missa conventual. Entre essas pessoas apontavam-se Jeronimo Paes e Belchior. Serviam de assunto as ultimas noticias chegadas do Recife. Eis a substancia de tais noticias. D. Manoel, logo que se achou de novo de posse da autoridade, mandou publicar na vila o edital pelo qual eram intimados os oficiais da milícia e os demais moradores que estavam em armas a retirar-se das fortalezas com as respectivas guarnições, a fim de entrarem os povos no sossego do costume, sob pena de serem havidos por traidores e inimigos da paz, e ficarem por isso sujeitos ao rigor das leis. Não tendo querido, porém, os revoltosos aceitar estes avisos, e devendo-se por isso dar começo a procidencias mais enérgicas, para as quais, por ser de paz e perdão o seu ministério, não se julgava o mais próprio, resolveu encarregar do governo militar o ouvidor geral, dr. Luiz de Valenzuela Ortiz, o mestre de campo Christovão de Mendonça Arraez e o senado da câmara de Olinda, que se compunha do coronel Domingos Bezerra Monteiro, capitão Antonio Bezerra Cavalcanti e tenente Estevão Soares de Aragão.

O procedimento do prelado era considerado como covardia no congresso da botica. Belchior, para dar mais autoridade a este juízo, recordava diferentes circunstancias passadas, a saber, a partida de d. Manoel para a Paraíba quando desfecharam o tiro no governador Caldas; o ter-se deixado prender pelos mercadores no dia 18 do mês anterior; e outras circunstancias que não são para o nosso caso. O bispo não é mais do que um vilão ruim, um desprezível instrumento dos Cavalcantis que querem ter sempre curvados a seus pés, como têm os negros dos seus engenhos, os povos de Pernambuco. Os mascates não precisam dele para castigarem a soberba e arrogância dessa nobreza de meia tigela, que o que traz limpo em seu sangue deve a esses mesmos mascates; porque o que daí não procede, é cor da noite de África ou cor do fogo das aldeias.

Palavras não eram ditas quando um filho de Jorge Cavalcant, que vinha montado em fogoso ginete, chegando-se à porta da botica assim retorquiu, montado como estava, a Belchior com o calor e a imprudência dos primeiros anos:

— Vilões ruins são aqueles brasileiros desnaturados que se vendem ao ouro ou rendem às lábias dos estrangeiros, cujo sentimento não é outro que o de revolverem a terra onde encontraram hospedagem. Esses, sim, são os mais infames vilões que pisam na terra de Camarão e de Henrique Dias. Sua baixeza não se compara nem mesmo com a dos que mordem a mão que deveriam beijar.

Replicou-lhe Belchior com quatro pedras na mão; o filho de Jorge treplicou, já com mostras de quem queria usar o chicote que trazia. Quando o gesto indicou a intenção, quase todos os que estavam na botica, tomaram o partido de Belchior, mas não tardou que varias pessoas das vizinhanças e da rua vieram em socorro do outro contendor.

Estavam justamente as coisas neste ponto, quando apareceu o chefe dos bandoleiros. Ao gibão surrado, aos calções em diferentes partes serzidos e aos sapatões grosseiros com que costumava andar, tinham-se substituído casaca e calções de veludo e sapatos de entrada baixa com fivelas. Trazia pendente um espadim que parecia novo, como o chapéu de pluma e a roupa. Naqueles tempos já o habito fazia o monge. Tanto que o Tunda-Cumbe se apresentou vestido com este apuro e galhardia, não foi preciso mais para que todos logo conjeturassem que grande transformação se operara na vida do ex-peixeiro, e já alguns lhe tirassem o chapéu, como demonstração de respeitosa cortesia. Tal houve que se afastou para que ele tivesse livre acesso ao ponto central do conflito. Muitos dos circunstantes explicaram esta atenção, atribuindo-a a vir ele acompanhado de dez a doze valentões conhecidos, pouco tempo antes seus companheiros, agora seus guarda-costas.

— Donde vem esta grandeza e este poderio a Tunda-Cumbe, que ainda não há um mês vendia bodiões e amorés pelas portas? perguntou a meia voz um parcial dos nobres.

Respondeu-lhe no mesmo diapasão o companheiro:

— Dizem que tem ordem franca dos mascates para ajuntar gente, e do Recife lhe prometem a patente de coronel em paga dos serviços, já vendidos a eles por bom dinheiro.

Entretanto o Tunda-Cumbe chegara ao ponto onde se dera o veemente bate-barbas. Achou somente aí o Belchior. O filho do Jorge Cavalcanti tinha tomado já a direção da matriz, e com pouco descavalgava e entrava.

Entendendo Tunda-Cumbe que não devia perder aquela ocasião de dar a mostra do pano, puxou do espadim e assentou-o de chapa sobre as costas de um sujeito que no canto da rua mais publica da vila exaltava a causa da nobreza e desfazia na reação dos mercadores. Não foi preciso mais para que se desse novo conflito, que dentro de alguns minutos redundou em serio motim. Houve muitas contusões, muitos ferimentos, muito sangue inutilmente derramado. Estando ainda nas mãos da nobreza a autoridade e a força publica, pode-se dominar no fim de algum tempo a assuada. O nome, porém, de Tunda-Cumbe e os dos bandoleiros mais violentos que com ele percorreram as ruas, espancando e ferindo os adversários que encontraram desprevenidos e inermes, esses nomes, especialmente o de Manoel Gonçalves, começaram desde esse momento a voar nas asas da fama, e poucos dias depois designaram celebridades que todos entraram a respeitar e temer.

Uma semana depois, Goiana foi testemunha de novas cenas, mais graves do que as primeiras, as quais chegaram a durar três dias.

Por ordem de João da Maia da Gama, capitão-mór da Paraíba, tão dedicado aos mascates que pelo senado da câmara de Olinda foi apelidado em oficio de 26 de junho de 1711 - a pedra fundamental em que os do Recife se levantaram e formaram o quimérico edifício e fabrica do industrioso levantamento - , veio Luiz Soares reunir-se com o Tunda-Cumbe a fim de irem ao Recife com sua gente passante de oitocentos homens, levantar o cerco.

Achavam-se entre os da Paraíba, não só Joaquim de Almeida, espirito por assim escrevermos, inspirador do capitão-mór João da Maia, mas também Pedro de Melo, um dos instrumentos da revolta sustentados pelo Almeida. Tendo esta por base, para tornar uniforme o movimento, dar Goiana como unida à Paraíba, veio desta Pedro de Melo eleito capitão-mór daquela. Feita a junção em Pedras-de-fogo, tomam posse com ele em Goiana os oficiais da nova câmara, distribuem-se lugares aos mais esforçados cabos da rebelião, constitui-se enfim o governo da vila independente do de Pernambuco. Pedro de Melo entra no exercício do seu lugar com toda a solenidade do estilo. Sai da igreja do Carmo para a casa da câmara debaixo do palio, acompanhado dos camaristas, tão legítimos como ele, e dos frades carmelitas, executores das ordens dos da recoleta do Recife. A vila, achando-se desguarnecida de força militar, visto que a que havia tinha ido atacar o rancho do Sipó, no pressuposto de surpreender aí o Tunda-Cumbe, viu-se obrigada a aceitar este desatino quase a portas fechadas. E o intruso e ilegítimo governo se consolidaria talvez, sustentado por Maia, se logo depois da sua posse, em 14 de julho, não tivesse chegado a guarnição incumbida da diligencia e ao mesmo tempo as forças legais mandadas de Olinda para impedir que seguissem os revoltosos e dissolver o governo intruso. Estas forças vinham comandadas pelo ajudante Bernardo de Alemão e Mendonça, o qual se unira com o capitão Bento Bezerra de Menezes, que comandava a companhia de Araripe, e com o ajudante Felipe Bandeira de Melo e os que com ele estavam na ilha de Itamaracá. Posto que não eram numerosos, tendo feito junção com a guarnição da vila, puderam por em violento e vergonhoso regresso todos os revoltosos Paraibanos.

No intuito de deixarem inteiramente serenados os espíritos dos pacíficos habitantes e restabelecida a ordem em Goiana, fixaram-se essas forças no engenho do capitão Bento Correa de Lima, que ficava à vista da vila, e onde estiveram por muitos dias.

O Tunda-Cumbe, sagaz e prevenido, tinha-se retirado com os seus ao valhacouto do Sipó, logo depois de constituído o governo que teve tão efêmera existência, o que não concorreu pouco para o aumento dos créditos da sua manha e penetração.