O engenho, que ainda defendido por Victorino, teria de render-se ás armas numerosas e práticas dos aggressores, não podia, na ausencia delle sustentar-se a não ser por poucos momentos.
De feito não era ainda de todo claro o dia, quando as portas da casa grande abalada em seus fundamentos, cahiam a poder de machados e por cima dellas entravam em borbotões os malfeitores impacientes pelo saque.
Este foi feito com desabrimento incrivel. Aquella malta de homens perdidos que no rancho do Sipó, explorados pelo chefe, se haviam acostumado a odiar os nobres e a cobiçar os seus haveres, deparava emfim, depois de esforços e tentativas mallogradas, occasião opportuna para matar a sêde de vingança e ouro que os abrazava. Para quasi todos havia sabor especial nesta negra victoria. A casa, que destruiam, saqueavam e humiliavam, era propriedade de João da Cunha, dentre os nobres o mais odiado por ser talvez o mais poderoso e vingativo deles. Por isso destroem e aniquilam o que não lhes excita a ambição ou não podem conduzir em seus saccos. Moveis preciosos são jogados das janellas ao pateo, onde se despedaçam. Cada queda, cada destruição serve de objecto a indecentes motejos e dá lugar a indignos commentarios. Emfim, longe iríamos se quizessemos descrever as scenas aviltantes e lastimaveis que dentro de horas se representaram na aristocratica vivenda do sargento-mór.
Tinham elles dado com o deposito dos vinhos—a rica adega do fidalgo—e já se entregavam aos deliciosos espiritos quando, tremulos e aterrados, entraram correndo alguns dos espias {SIC|qne|que}}, por ordem do Tunda-Cumbe, estavam vigiando nos cantos mais importantes do cercado.
— Fujamos, fujamos, que ahi vem uma grande força.
— Bem se dizia que ella havia de vir—disse Pedro de Lima.
— Vamos a seu encontro—gritou Gonçalo Ferreira.
— Não, não—replicou Pedro de Lima. Ganhemos o mato sem demora. Quando tiver passado, iremos atraz della, que ficará entre dois fogos—o nosso, pela retaguarda, e o de Luiz Soares pela vanguarda. Luiz Soares a esta hora, si entrou pelo Tanquinho, já deve de estar senhor da villa. Faremos a juncção e queimaremos os pés-rapados um por um.
— Está dito.
«Sahir» foi o grito que irrompeu de todos os peitos.
Ao grito seguiu-se o exemplo.
A força, como o leitor já deve ter comprehendido, era a que Gil Ribeiro commandava.
Vendo da estrada abertas as portas e janellas do sobrado, espalhados pelo pateo os moveis, alguns dos quaes, formando pequenos adjuntos eram nesse momento presa das chammas, não pode Francisco acabar comsigo que não fosse de perto verificar este lastimoso espectaculo.
Quando esbarrou na frente da casa e reconheceu a terrivel verdade, uma idéia lhe atravessou o cérebro, illuminando-o como relampago. Esta idéa lhe dizia que a sua casa tinha sido abandonada por Lourenço e Marcellina, como o engenho lhe pareceu que o fôra por João da Cunha.
— Eles não morreram. Estão todos no sobrado. Oh meu Deus! Permitti que assim seja.
Estas palavras consoladoras, que lhe sahiram irresistivelmente dos labios foram como as primeiras manifestações de nova alma que lhe entrara no cerebro. Voltou immediatamente á estrada e se incorporou outra vez na tropa que já corria a marche-marche para a villa, por ordem de Gil.
Pedro de Lima não se enganava. Desde o amanhecer achava-se Luiz Soares com suas forças em Goyanna e dava ahi que fazer á nobreza.
Nesta villa lavrava a anarchia, ora mais ora menos extensamente desde 3 de julho, data do primeiro motim. Não menos de oito foram elles, numero que se elevará a muito mais, si aos movimentos das ruas, em certo modo organizados, juntarmos as disputas particulares, os desforços pessoaes, as affrontas e os desaggravos feitos em publico, emfim todos os conflictos naturaes de duas forças politicas que se hostilizam a todo o transe no presupposto de aniquilar-se mutuamente.
Além destas circumstancias communs a todas as guerras civis, uma circumstancia especial tornava mais perigosas e frequentes as aggressões e as représalias em Goyanna—a de serem os goianistas ardentes assim nas lutas da razão, como nas do sentimento.
De data imemorial é a terra de Nunes Machado, de Arruda Camara e de tantos outros vultos eminentes foco de faculdades viris facil de acender-se, diffcil de apagar-se. Filha legitima do Recife—vasto laboratório, em que fermentam as paixões populares sem intermittencia, ainda que fria serenidade pareça algumas vezes indicar enfraquecimento ou somno da grande alma pernambucana que tem ahi a sua séde, Goyanna sempre representou conspicuo papel nas agitações da provincia.
Conhecedores da influencia, não só commercial, mas tambem politica da villa, puzeram os mascates particular empenho em tel-a de seu lado; e neste presupposto fizeram della sua segunda praça forte, ou o principal ponto dos seus recursos e forças, depois da capital.
Logo que no Recife se fez sentir a falta de viveres, foi de Goyanna que trataram de os enviar para os sitiados. Um obice porém apresentou-se immediatamente, o qual muito deu que pensar aos insurgentes—a rixa em que estavam com os habitantes de Goyanna, os da Ilha, rixa, que tem sua natural explicação, que é a seguinte:
De Itamaracá séde de uma capitania independente de Pernambuco, por doação que a Pero Lopes de Souza fizera por carta de 1º de setembro de 1534 d. João III, fôra mudada a camara para Goyanna em 1685. Despeitados, começaram desde então os moradores de Itamaracá a ter para os de Goyanna o sobr'olho carregado, e não perdiam occasião de lhes dar mostras do seu desagrado. Altos empenhos a favor da ilha, si não foram falsas informações movidas secretamente contra a villa, deram lugar a expedir-se em data de 20 de novembro de 1709 ordem regia determinando voltasse para aquella a camara que de lá sahira. Este acto veiu converter em novos odios ressentimentos antigos. Por isso não foi preciso, para que os da ilha tomassem o lado do governo, isto é o da nobreza, mais do que saberem que Goyanna se amotinára contra elle. Não podendo porém a primeira competir com a segunda, e havendo até suspeitas de que, para impedirem que fossem tomadas pelas autoridades da ilha os generos remettidos pelos mascates para o Recife, tentavam estes apossar-se della, encarregaram os governadores militares o ajudante-de-tenente Gil Ribeiro de occupar o Forte-de-Orange. O ajudante ahi esteve até que partiu, por nova ordem, para Goyanna, segundo vimos.
A pacificação desta villa era na realidade empreza que exigia animo e espiritos fortissimos. Nunca estivera tão accesa alli a fogueira das paixões partidarias, como nos ultimos dias que precederam ao da chegada de Gil Ribeiro. A nobreza, em consequencia da voz, que corrêra dias antes, de que o bando da Parahyba, de passagem para o Recife tomaria em Goyanna larga desforra das anteriores represalias, entendeu em fortificar-se, posto que sem ostentação, visto como os seus recursos não eram grandes, nas mais importantes embocaduras.
Nesse tempo a vasta campina que hoje se interpõe entre a ponte de Goyanna, na Rua-do-rio, e o ancoradouro das barcaças, denominado Porto-da-conceição, era um sitio occupado por Jorge Cavalcanti, no qual tinha elle grandes olarias. A casa de morada ficava no centro das terras. Do mirante punha-se debaixo das vistas toda a volta do rio Goyanna que vinha do Porto-da-conceição; passava pela frente da campina e ia morrer como ainda hoje no lugar onde se vê o trapiche, que ha poucos annos serviu de casa de theatro.
Não estava então obstruido o rio. Barcos e sumacas chegavam até ao pé das casas da rua e ahi recebiam ou deixavam os seus carregamentos.
Com o pretexto de fortalecer as barreiras para o embarque de tijolos e louça, mandou Jorge Cavalcanti levantar em varios pontos estacadas de páo-a-pique. Por traz das estacadas vastas tulhas de barro, e pela frente, no espaço da margem que ficava descoberto, largos e traiçoeiros fojos, eriçados de mortiferos espeques, davam a esta posição as vantagens da primeira fortificação da nobreza, visto que cortava quaesquer inimigas communicações da Parahyba com a villa pelo rio.
Do lado do norte eis em que condições se achava a defeza.
Nas terras que ainda se denominam—Tanquinho—tinha o ex-alcaide-mór Manoel Cavalcanti de Lacerda sua casa de morada, a qual ficava na beira da estrada que vinha da Parahyba.
O ex-alcaide-mór sem hesitar um só momento aproveitou-se dessa importante posição. Não sómente concentrou ahi seus recursos, mas tambem mandou levantar ao longo da estrada e por dentro dos matos, trincheiras singulares, que grandes damnos deveram causar aos assaltantes, si elles por ahi tivessem feito a sua entrada. Mas não foi isto o que aconteceu, e assim destas amplas defezas, como das de Jorge Cavalcanti, que não o eram menos sinão mais, como vimos, não se disparou um só tiro contra os da Parahyba, visto que, de tudo informados, não obstante serem grandes as cautelas tomadas e o segredo mantido sobre taes fortificações, cortando por differentes caminhos, entraram na villa por onde não eram esperados como adiante veremos.
Cosme Cavalcante ocupava o sobrado que ainda existe do lado direito no fim do Bêco-do-pavão e que dá para a Rua-do-meio.
Chamou para junto de si e lhe entregou o commando de varias ordenanças, que estavam de promptidão no pavimento terreo do sobrado, o alferes Diogo de Carvalho Maciel, o qual tão brilhante nome deixou por seus feitos nessa guerra. Felippe Cavalcanti, que morava na Rua-da-Soledade, e José de Barros na Rua-das-porteiras tinham tambem comsigo gente armada, e só esperavam qualquer indicio de rompimento para caírem sobre os inimigos.
Guarnecia a cadeia o illustre capitão Antonio Rabello, que por occasião dos primeiros motins, fôra destacado pelo governo para auxiliar na villa a defensão das autoridades e dos moradores pacificos; e a todos inspirava a maior confiança.
João da Cunha trazia a sua gente no vasto armazem que ficava por baixo do sobrado por elle occupado. Varias caixas de assucar, que a esse tempo ainda ahi se viam, porque tanto que se trocaram as primeiras hostilidades, cessaram as transações entre os agricultores e os commerciantes, haviam sido collocadas por traz das portas da frente de modo que pudessem servir de trincheiras com avançada para o Pateo-do Carmo.
Estava sujeito a especiaes perigos o ponto occupado por João da Cunha, em consequencia de se achar fronteiro ao convento, que era, para assim escrevermos, o quartel-general dos mascates, sendo por estes os frades, graças á influeucia dos da recolêta. No convento achavam-se recolhidas armas e munições mandadas do Recife para serem distribuidas pelos amotinados.
Eram estas as condições da defeza dos nobres em Goyanna. Volvamos agora rapida vista-d'olhos sobre as dos seus adversarios.
O plano destes era realmente tenebroso, e não ficava a dever ao da nobreza.
João da Maia não obstante se mostrar mais moderado em sua ardencia contra os senhores-de-engenho, do que ao principio, escrevera na vespera a Antonio Coelho:
«Amanhã ha de estar logo muito cedinho ahi Luiz Soares com seu terço, passante de quinhentos homens.» O proprio Luiz Soares mandara dizer a Jeronymo Paes por seu parente Joaquim Silverio: «Espere por mim com minha gente para almoçarmos. Queremos panellada gôrda e bom vinho.» O Tunda-Cumbe a quem Antonio Coelho escrevera aconselhando-lhe a que entrasse ao mesmo tempo que Luiz Soares a fim de ser decisivo o golpe que se desfechasse sobre a nobreza, respondera dizendo que não faltaria.
Por volta das cinco horas da tarde do dia anterior ao da entrada de Gil, justamente quando em sua casa fazia Antonio Coelho com Jeronymo Paes o computo das forças, que deviam no dia seguinte tomar Goyanna, entrou na sala um pardo, escuro, corpulento, mal encarado, por nome Bartholomeu. Era o mestre de uma barcaça de Antonio Coelho, circumstancia a que talvez devia a particular confiança que nelle tinham os principais negociantes da villa.
Ao parecer, sua chegada não era esperada, visto que deu lugar a revelarem sorpreza, posto que agradavel, os dois amigos.
— Já de volta, Bartholomeu! exclamou Antonio Coelho. Prosperos te foram os ventos.
— Cheguei ha poucas horas, respondeu o barcaceiro.
— Então? inquiriu Jeronymo Paes. Foste feliz na viagem? Chegaram ao Recife sem novidade os viveres que mandamos?
— Por força, respondeu Bartholomeu com segurança.
— É um heróe, disse Coelho.
— Não foi sem perigo que cheguei ao meu destino. Da ilha tentaram cortar-me a marcha da embarcação. Mas eu fiz-me ao largo em tão bôa hora, que ainda me procuram suppondo-me fóra da barra, quando eu já fui e já aqui estou. — E que novas nos trazes? Boas ou más? interrogou Coelho.
— As novas mais importantes devem vir nestas cartas—disse o barcaceiro, entregando ao negociante um alentado masso de papel.
Coelho rasgou com violencia o envoltorio que reunia em um só volume a sua correspondencia, e poz-se a devoral-a.
Entretanto Jeronymo Paes não cessava as indagações sobre o estado do Recife e dos seus habitantes sitiados.
— O que eu sei dizer é que a fome dentro da villa é de metter horror, —disse o barcaceiro. Dá-se um vintem por uma espiga de milho e não se encontra. Não ha carne de especie nenhuma. De farinha não havia nem um caroço antes de eu lá chegar. Um papagaio já serviu de gallinha para caldo de um doente. O forte da população é o marisco-pedra, tirado nas coroas quando a vasante as descobre. Mas vosmecê não sabe que perigo corre o que lá os vai apanhar. Mais de cincoenta negras mariscadeiras tem cahido no poder dos pés-rapados que fazem o cêrco da villa. Muito pescador de marisco tem morrido de tiro.
— E porque não rompem o cêrco? Para que servem os que estão dentro? Onde está o animo dessa gente? Que faz Motta? Oh que gente! que gente!
— A coisa não é tão facil como parece. Seu governador João da Motta tem mettido a cabeça muitas vezes para romper o cêrco; mas os pés-rapados são muitos; teem toda a villa rodeada de corpos de guarda. Dormem ainda menos do que tetéu. Estão sempre álerta.
— E que tem feito d. Francisco e o Camarão? Acham cêdo ainda para avançar contra os sitiantes?
— Ainda não poderam ser bons em nada. Os pés-rapados cada dia fazem uma das suas pelos caminhos e engenhos onde vão topando gente contraria. Si o cêrco durar mais um mez, a villa entrega-se; porque á fome ninguem resiste. Fome tem cara de herege, patrão.
— Não hade ser assim—disse Coelho, atirando sobre a meza junto á qual estava sentado, as cartas que acabava de ler—não ha de ser assim. Em poucos dias nós os de Goyanna havemos de romper o assedio e levantar nas ruas do Recife, livres de qualquer embaraço a autoridade real, agora vilmente abatida pelos rebeldes, já que os de lá não dão accordo de si. Ahi tendes, sr. Paes o que me escrevem Motta, Correia Gomes e Simão Ribeiro, acrescentou dirigindo-se a Jeronymo Paes. Lêde. Quando acabardes, mandai levar ao provincial esta carta do padre João da Costa.
E voltando-se para o barcaceiro, perguntou-lhe como por encher o tempo:
— Que mais, Bartholomeu?
— Na botica do Rogoberto estava muito povo reunido agora mesmo. Dizia um que seu João da Cunha tem a fabrica e os moradores na villa para em caso de necessidade saírem armados contra os mascates. Dizia outro que Antonio Coelho e seu Jeronymo Paes não tem armas nem dinheiro para dar ao povo que os quizer acompanhar ao Recife.
— Qual foi o infame pé-rapado que aventurou semelhante aleivosia?
— Quem estava dizendo isto era o Ricardo.
— Ajustaremos já estas contas, disse Paes. Irei á botica para o desmentir, falarei ao povo. Isso não se atura. Hão de ver para quanto presto.
— Sim, sim, meu amigo. É da maior conveniencia oppôr á mentira o desmentido. Ireis á botica sem falta, não é assim, sr. Paes?
— Irei. Porque não? Irei já, agora mesmo—disse o marchante, levantando-se para sahir.
— Antes de irdes, quero lembrar-vos uma providencia. Bem sabeis, sr. Paes, que sem dinheiro não se fundam reinos. Vinde comigo até cá dentro. Acompanha-nos, Bartholomeu. Quero que vejas com teus proprios olhos as coisas quaes são, a fim que possas com segurança saber quanto são infames os que nos irrogam faltas e fraquezas que não temos.
— O pavimento inferior era repartido em duas ametades. Para a da frente, na qual estava a loja com todas as suas dependencias, entrava-se pelo lado da rua; para a outra descia-se por uma escada que communicava com o primeiro andar por dentro de um gabinete secreto. Coelho, Paz e Bartholomeu atravessaram esse gabinete, desceram a escada e chegaram ao pavimento, que se esclareceu á luz de um candieirinho de prata de que se munira Coelho quando teve de descer. O vão occupava uma quinta parte do predio. Não tinha portas nem janellas, nem siquer frestas. Era um como tumulo, sem nenhuma outra communicação com o ar e o mundo, a não ser a que se prendia á escada. Espalhados pelo chão viam-se alguns caixões de pinho, e encostados a um canto objectos que reluziam. Coelho levantou a tampa de um desses caixões para que o barcaceiro visse o seu conteúdo.
— Que é que estás vendo, Bartholomeu? perguntou elle a modo de desvairado.
— Armas de fogo, patrão.
— É verdade; são armas. Foste tu mesmo que as trouxeste suppondo que trazias ferragens para o engenho que estou construindo. São tresentas espingardas e duzentos bacamartes. Aquillo que reluz d'alli do canto são espadas, catanas e parnahybas. Já vês que Ricardo não passa de um mentiroso, um desprezivel villão. Agora subamos.
Subiram.
Ao penetrarem no gabinete, onde se escondia a escada, Coelho indicou ao barcaceiro um animal de tamanho descommunal, deitado aos pés da cama de seu uso.
— Que te parece isto, Bartholomeu? perguntou Coelho.
— Um grande cachorro. Oh que monstro!
— É o meu defensor. Elle agora está dormindo. Aproxima-te. Tens medo? É um cão que só tem dentes para os ladrões.
— O barcaceiro, em vez de se aproximar, afastou-se. Coelho e Jeronymo sorriram.
— Não fujas. O animal é benévolo e inoffensivo. Pega neste candieiro e encosta-te bem a mim para o poderes ver de perto. Ficarás sabendo o que elle vale.
Não sem receio, Bartholomeu fez o que mandara o mascate. Este metteu então no canto de um dos olhos do animal adormecido um pequeno objecto que tirára do bolço. Houve um como movimento na féra, o que fez o barcaceiro recuar amedrontado.
— Não fujas, Bartholomeu. Estou aqui. Aproxima-te.
— Aos olhos de Bartholomeu mostrou-se então um sonho, uma visão deslumbrante e incrivel. O animal tinha-se aberto pelo ventre de banda á banda; e naquella sobre a qual estava deitado, o que o barcaceiro descobriu foram dobras em pequenas tulhas, formando carreiras pelo longo vão.
— Ó xentes! exclamou Bartholomeu maravilhado. Quanta moeda, quanto ouro! Meu Deus! Pois é esta a burra de seu Coelho?!
— Todo este dinheiro, disse o negociante, ganhei-o eu pela minha industria nesta terra. Devo-o acaso á terra ou ao meu trabalho, ás minhas economias? Devo-o ao meu trabalho; a terra não dá dinheiro. Os preguiçosos não serão capazes de o ajuntar, ainda que morram de velhos no paiz mais fecundo e rico do globo. Dizem que esta terra é delles. Não ha tal. O mundo é da humanidade. Povos que vivem hoje em um ponto, podem viver amanhã em outro com o mesmo direito. Assim os homens que trabalham. Pois bem, todo este cabedal, adquirido com o suor do meu rosto será applicado em defeza da autoridade real e do interesse do povo, a que os nobres tencionam antepôr o seu bem estar, a sua rebeldia. Mas não percamos tempo, sr. Paes, disse ao marchante, pegando de um açafate e atirando dentro nelle algumas das tulhasinhas de dobrões, que se viam enfileiradas no ventre do cão de bronze. Eis a minha idéa. É preciso desfazer immediatamente, com dinheiro, as invenções de Ricardo. Correi á botica do Rogoberto, meu amigo e sr. Paes. Fallai do despotismo da nobreza, da covardia do bispo, da estupidez do bispo e dos nobres. Discorrei com o fervor que vos é natural, sobre igualdade, fraternidade e liberdade. O povo é perdido por estes sentimentos. Espraiai-vos em demonstrardes a conveniencia de acabar-se com o cêrco do Recife, o qual impede de sahirem os nossos productos, que tem bom preço nas praças estrangeiras, e de entrarem os productos estrangeiros de que precisamos. Acrescentai que a fome e a nudez hão de chegar dentro de pouco tempo aos campos e aos sertões. Talvez que estimulados ou advertidos por vossas palavras, muitos dos que vos escutarem queiram pegar em armas contra o juiz ordinario, o sargento-mór, emfim contra as autoridades actuaes que tiveram quasi todas por origem monstruosa rebeldia. Si o povo se mostrar deliberado a pegar em armas...
— E porque não se ha de mostrar? interrogou Jeronymo Paes.
— Tendes razão, tendes razão. Emfim deixo o resto por vossa conta, sr. Paes. Bem sabeis que o povo de Goyanna deve pegar em armas de hoje até amanhã contra os que se dizem nobres. É indispensavel que isto aconteça. É absolutamente necessario que a excitação publica, em vez de se moderar, vá por diante cade vez mais. Ajudados por ella, os amigos, que esperamos, poderão penetrar facilmente na villa e assenhorear-se della. Acharão os animos preparados para a grande empreza.
Estas palavras levaram, como electricamente, a exaltação, a vertigem ao animo do marchante já de si ardente.
— Dou-vos minha palavra que em menos de uma hora havemos de ter o povo solto pelas ruas em procura de nobres para amarrar como se foram carangueijos.
A modo de alucinado, Jeronymo correu immediatamente de escadas abaixo, fazendo tinir as moedas dentro do açafate, e dizendo em altas vozes:
— São rosas que me caíram do céo. [1] Cheguem-se a mim, que hão de ver como são bonitas e cheirosas estas flôres consoladoras.
Notas do autor
editar- ↑ Historico.