Jeronimo Paes mostrava Ter quarenta anos. As soalheiras que apanhava em suas freqüentes jornadas para Pedras-de-fogo a comprar gado e para o Recife a recendê-lo, tinham-lhe dado ao moreno do rosto e das mãos o trigueiro carregado que o fazia parecer homem de cor. Trazia o cabelo cortado rente e a barba inteira.

Esta era negra, espessa e algum tanto hirsuta. Em seu rosto liam-se a energia, a firmeza e a tenacidade do tribuno. A fronte, estreita no alto, alargava-se para os olhos, que eram pequenos, mas vivos e avermelhados. O nariz tinha o quer que era do bico da arara.

Jeronimo enviuvara meia dúzia de anos depois de casado. Ficaram-lhe três filhos, a saber Justino, Miguel e Victor, os quais ao tempo desta historia viviam com certa folga de meios, que eqüivalia à abastança, ou melhor à independência. Além destes, já senhores de si, tinha Jeronimo em sua companhia a caçula, por nome Josefa. Em casa chamavam-lhe Zefinha.

Não era ela nem fei nem bonita, nem alta nam baixa, nem muito morena nem muito clara. Era um todo correto, proporcionado e como feito de propósito para existir justamente na burguesia. Tinha os cabelos corridos e acastanhados, os olhos pretos e algum tanto caídos, o sorriso engraçado, mas sem o colorido, sem o reflexo indefinível que acusa louras esperanças, sonhos purpurinos, anelos vagos mas não de todos cegos, férvido sentimento em quem o sorri.

Sua instrução era vulgar, e a falta dos conhecimentos morais, necessários à mulher por honra sua e segurança do lar que possa ser chamada pelo destino a formar mais tarde, ela a supria com o admirável bom senso e imensa brandura de coração, que a tornavam a primeira prenda da família.

A preocupação principal de Jeronimo Paes, depois de ver seus três filhos casados, vivendo cada um do seu negocio, era achar um homem limpo que quisesse casar com Zefinha.

Um Domingo, em que à porta do sitio que tinha nas proximidades do Poço-do-rei, Jeronimo esperava pela filha para ir à missa na Soledade, passou pela frente da casa Antonio Coelho. Como já se conheciam e eram até afreguesados, o marchante tirou conversa com o negociante e o teve preso ao pé de se até que Zefinha apareceu. Seguiram então os três para a vila, e juntos ouviram a sua missa, que teve para o jovem português e a cachopa goianista, particular, posto que vaga delicia.

Zefinha voltou apaixonada. Sentiu durante todo o dia e ainda no seguinte certo bem estar, certa inquietação, certa harmonia, que lhe tiraram a vontade de comer e o sono.

Com o jovem português não se deu o mesmo. De noite já não lhe lembravam outras feições, outros feitiços, que os de d. Damiana, cuja imagem ele trazia permanentemente em seu olhos.

Desse dia por diante começou Jeronimo a aproximar-se mais vezes de Coelho. Primeiro vieram os presentes, depois as visitas, e por fim os convites para almoços ou jantares em sua casa. Dentro em pouco estavam amigos.

Mas ao passo que o marchante não poupava finezas nem esforços para prender definitivamente o negociante, lançava-lhe este outras contas muito diferentes. Gostava de Jeronimo, não desgostava de Zefinha, mas seu ser moral revoava em torno da imagem da jovem senhora de engenho, como em torno de rosa gentil e delicada, revoa, absorvendo-lhe o saudável cheiro, namorado beija-flor. Quando Jeronimo dizia consigo estas palavras: ‘Como não havia de ser feliz Zefinha se casasse com Antonio Coelho!’ monologava este de se para se do seguinte modo: ‘Damiana, Damiana, meu amor, meu bem, minha vida, minha alma, que será de mim dentro em pouco tempo, se sorte propicia não vier arrasar a muralha que nos separa? Ah! eu não posso viver sem ti, delicia cruel de minha existência, doce fatalidade que fizeste de mim escravo e desgraçado!’

Não foi preciso muito para que Zefinha compreendesse que os sonhos de Coelho, seus pensamentos, suas ambições afetivas tinham por objeto outra mulher. Mas, por infelicidade, já sentia ela por ele todos os estremecimentos que revelam a existência da paixão. Herpe, corrosivo, o amor infeliz alastrava suas vesículas peçonhentas pelo coração virgem da rapariga, envolvendo-o em camada de fogo que o abrasava. Ela sentia o rapaz nos olhos, na fantasia, na luz, na sombra, entre a costura e a agulha, entre o sorriso e as lagrimas, entre a esperança vã e o desengano previsto ou adivinhado. ‘Ele não quer saber de mim’ dizia Zefinha em seu entendimento. E chorava tristemente. Mas se Coelho aparecia, já ela sorria de novo, não porque volvesse a acreditar, como nos primeiros tempos que o português retribuía o seu afeto, mas porque sua doce imagem lhe trazia o prazer que fugia quando ele se ausentava. A poder do esforço, Zefinha mostrou-se aparentemente senhora de sua paixão. Sem indiferenças despeitosas, sem contentamentos exagerados, ela conseguiu levar ao espirito de seu pai e ao do próprio Coelho a convicção de que, se não era feliz, também não era desgraçada; que sobre o lago azul dos seus afetos pairava a calma da inocência; que por ai não sopravam os vulcões que revolvem o céu de anil da mocidade, e são antes lavas abrasadas do que sopros de tormenta.

Para chegar a tamanho resultado a moça pôs em contribuição toda sua energia, que nunca fora tão grande nem tão bem sucedida. Aquela natureza, a modo de morna e indolente, acendeu-se para a luta, e com suas próprias forças pode triunfar de se mesma. O espirito dominou tiranamente o coração. O bom senso impôs silencio ao desprezado afeto. Poucas lutas interiores já foram maiores em uma mulher ignorante e de vulgar condição do que a sustentá-la nesse asfixiar de um amor imenso que morria às mãos de quem o devia ameigar e chegar bem ao seio, como fazia às rolinhas gentis de casa. Pelo proceder da filha veio Jeronimo a conhecer que seus desejos e esperanças estavam longe de ser preenchidos. O descontentamento, o pesar trouxe a frieza, não a quebra das relações de amizade que o prendiam ao negociante. Esta frieza durou pouco, porque de certo dia em diante Coelho, fazendo-se mais assíduo em casa do marchante, reanimou, por seu modo de tratar Zefinha, no espirito do pai dela a quase de todo extinta esperança. Se para Ter explicação desta rápida e inesperada mudança o marchante houvesse podido penetrar no espirito de Coelho, teria achado aí a seguinte ordem de idéias: Despeitado com João da Cunha, voltava-se para Jeronimo, fazia-o entrever a possibilidade de vir ele Coelho a casar com Zefinha, e por este meio chamava para seu lado o primeiro elemento de hostilidade aos nobres de Goiana, o dito Jeronimo, que por seus sentimentos francamente populares, era o homem mais próprio para levantar as massas e encaminhá-las ao fim que lhe aprouvesse.

Fosse que, desconhecendo a política tortuosa e dissimulada que certos homens, práticos em explorar as paixões alheias, usam no seu próprio interesse, se prestava de boa fé ao calculo do jovem europeu; fosse que obedecia simplesmente a impulsos do seu coração, votado ao povo por quem era capaz de derramar a ultima gota do seu sangue; fosse que só tinha em mente, concorrendo com todos os auxílios possíveis a Coelho, penhorá-lo pela gratidão, a fim de tornar fácil a retribuição dos seus serviços com o desejado consorcio, o certo é que Jeronimo se identificou com a causa dos mascates fervorosamente, arrastando após de se seus filhos, amigos, afeiçoados, o próprio povo, segundo se vê pela história.

O que se pode considerar fora de duvida é que Antonio Coelho não tinha grande empenho no aniquilamento da nobreza, mas no de um nobre, João da Cunha, nem pensava verdadeiramente em outra mulher que não fosse d. Damiana. Completemos com algumas palavras mais o esboço desse caracter, que vem na historia da guerra a par com o de Jeronimo Paes.

Tendo chegado ao Brasil de pequena idade, cedo revelou Coelho particulares propensões para a vida comercial, pelos progressos que fez. Quando João da Cunha o conheceu, era ele caixeiro em um dos armazéns do Recife. Ou por suas feições e maneiras atrativas, ou por seu talento que talvez fosse ainda mais atrativo do que as feições, o certo que o senhor-de-engenho, simpatizando vivamente com ele, convidou-o para recebedor de seus açucares em Goiana, convite que o jovem Antonio aceitou, atentas as vantagens prometidas pelo sargento-mór. Ali os seus serviços cedo atraíram-lhe tantos créditos que em poucos anos Coelho foi geralmente estimado na vila, e conhecido no Recife; teve entrada nas principais casas comerciais destes dois centros; enfim tratou de estabelecer-se por sua conta. Revelando suas intenções a João da Cunha, em vez de se opor a elas, o senhor-de-engenho fez que ele as realizasse logo, e a este efeito lhe prestou os necessários auxílios.

Coelho teria por então seus vinte anos. Era elegante e bem parecido. Tinha sedução no olhar, e graça especial na conversação. Sabia de cor paginas de Palmeirim-da Inglaterra e as repetia tão possuído das gentilezas namoradas que enchem a obra de Francisco de Moraes, que mais valia ouvi-las ao moço português do que as ler no próprio autor. Sentindo particular predileção pelos nobres em cujas relações se ufanava de aparecer ligado, foi pouco a pouco ascendendo da esfera opaca onde principiara a vida, às alturas douradas em que calculava colocar-se definitivamente como um dos astros que formavam a constelação. Seus dotes pessoais granjearam-lhe as inclinações das jovens damas e a benevolência dos cavalheiros de seu conhecimento. Por então d.Damiana, solteira ainda, passava temporadas, como já se referiu, em casa de João da Cunha. Era muito nova mas trazia já em torno de se um circulo de adoradores em cujo numero Coelho soube aparecer tão conspicuamente que, passados alguns meses, os outros bateram em retirada, deixando-o senhor exclusivo do campo. É porém de notar que nem a idade de d. Damiana nem os costumes da época deram lugar a que ela tivesse conhecimento ou sequer suspeita dessa luta travada entre os primeiros jovens assim agricultores como comerciantes da vila. Contavam-se por sua raridade as reuniões familiares que se efetuavam na roda do ano ainda nas casas ricas; e mesmo nessas reuniões era tão respeitoso e cortês o trato entre os cavalheiros e as damas que, para assim escrevermos, o amor, ao contrário do que hoje acontece em nossos salões, mais se fazia adivinhar do que declarava. Todavia, por ocasião de uma festa do orago da freguesia, em que houve cavalhadas e fandango, na qual se achou d. Damiana, pode Coelho fazer-lhe protestos de amor, que, em sua mente, foram por ela bem aceitos. Mas veio logo o desengano com a recusa que o leitor sabe. Sendo até ai um dos primeiros amigos da nobreza e seu comensal, converteu-se Coelho em seu acérrimo inimigo. O ódio que começou a votar a João da Cunha, foi tanto mais intenso e profundo quanto tinha ele para se que nenhum outro, a não ser o senhor-de-engenho, poderia triunfar de seu triunfo. O golpe que a desgraça vibrara em seu afeto, o fez ainda mais injusto para com aquele que lhe dera a mão no principio da carreira. Coelho assegurava que d. Damiana fora constrangida a renunciar à afeição que consagrava a ele, e casara com o sargento-mór, não mais livremente do que fizera a dita renuncia. Minúcias são estas em que escrupuliso entrar. O coração da mulher assemelha-se à gruta profunda e inacessível: quem empreende descer-lhe ao fundo, corre vários riscos, sendo o primeiro deles o de dar com estranhos reptis não classificados ainda pela fisiologia. A verdade é que o mercador nunca mais pode apagar do coração a imagem suavíssima de d. Damiana. Fora aquele o seu primeiro amor. O objeto dele insculpira-se-lhe por tal modo na alma, que fazia parte integrante do seu ser o olhar, o sorriso, o gesto, a voz da gentil dama. Há paixões fatais que acompanham toda a vida aqueles a que se apegaram como a Nesso a túnica fatídica. O negociante era vitima de uma paixão semelhante. Às vezes a chama incessante abrandava; a vida agitada costuma trazer este efeito aos sentimentos; mas bastava encontrar suas vistas com as da senhora-de-engenho, para que logo sentisse reacender-se-lhe mais intensamente o fogo, um momento diminuído ou serenado. Enfim a idéia de a possuir — não importava quando — nunca mais o deixou, e essa ilusão, esse desconhecido que vagamente lhe prometia a felicidade, alentava a labareda que ele trazia como deliciosa chaga no coração, iluminava-lhe a fantasia como estrela que fulge em canto de céu prenhe de tempestades. O barcaceiro deu o andar para descer após o marchante, mas foi atalhado pelo mercador que lhe disse:

— Fica, Bartolomeu. Quero perguntar-te uma coisa: Em caso de aperto, amanhã ou depois, terás animo para te fazeres à vela novamente em direitura ao Recife?

— Agora mesmo abro as asas à Borboleta e largo-me por estes mares afora; assim o patrão ordene. Eu sou pau para toda obra. Conjeturo que amanhã a esta hora não exista mais um nobre em Goiana a não ser amarrado com boas cordas. Mas, como é preciso contar também com o mal, e não unicamente com o bem, ordena a prudência que tenhamos prontos os meios de escapar-nos aos inimigos se a eles pertencer a vitoria. Ora, nenhum outro se me afigura mais pronto nem mais eficaz do que a viagem pelo rio.

— Vosmecê tem razão. Montado na Borboleta, só por um oculo poderão ver-me os pés-rapados. E as olarias de Jorge Cavalcanti?

— Que tem elas?

— Tem bocas de fogo sobre o rio.

— Taparemos essas bocas de fogo com as balas dos nossos bacamartes. Tens então animo para passar em frente às trincheiras, Bartolomeu?

— Porque não, seu Coelho? Vosmecê não conhece ainda este cabra com quem está falfando. Ora escute: Nesta mesma viagem, de que acabo de chegar, mandaram-me, quando eu ia, da fortaleza de Itamaracá um chuveiro de balas, que a outro que não fora o Bartolomeu teria feito perder a tramontana. Mas eu peguei na cana-do-leme da Borboleta e fiz com ela tais cortes e recortes por cima das ondas que nem uma tainha seria capaz de a ganhar. Eram balas de uma banda e da outra, pela popa e pela proa; mas dentro só o que caia eram as escumas dos mares que ela atravessava como jangadinha do alto.

Pois bem, Bartolomeu, disse Coelho a cabo de alguns minutos de silencio em que, ao parecer, estivera meditando sobre grave assunto. Fica assentado que dormirás hoje a bordo da Borboleta, e de lá não virás à terra senão por ordem minha. Vai ver tua mulher e teus filhos, que deves estar impaciente por abraçá-los. Às nove horas recolhe-te à embarcação. acharás já ai todas as provisões e munições necessárias para a viagem.

— Mal tinha o negociante terminado estas palavras quando se fez ouvir do lado de fora descomunal ruído de povo, retinir de armas, rumor de passos de cavalo. Quase no mesmo instante as portas da loja se fecharam com estrondo, e logo após os caixeiros de Coelho corriam pelas escadas acima amedrontados e confusos. Que é isto? Que quer dizer isto? Inquiriu o negociante, vencendo sua surpresa, ao que primeiro penetrou na sala.

— A casa está cercada, e ai vem o juiz ordinário com ordenanças e oficiais do seu juízo.

No mesmo instante uma voz que soou aos ouvidos de Coelho como eco das gemonias infernais, fez ouvir a seguinte intimação:

— Da parte d’el-rei, componde a casa, que vimos fazer uma diligencia.

A esse tempo Cosme Bezerra assomava na porta da sala.

Trajava calções e casaca preta, meias de seda amarela, sapatos com fivelas douro. Trazia chapéu com pluma branca, e espada pendente do talim.