Coelho foi ao encontro de Cosme Bezerra, e com irritante altivez que as circumstancias actuaes até certo ponto justificavam, rompeu o silencio que se seguira á intimação:

— Da parte d'el-rei, que quereis em minha casa ao lusco-fusco e com este apparato de força, senhor juiz?

— Usais de um direito que pertence á justiça—o de interrogar—respondeu Cosme Bezerra com affectada serenidade que lhe era muito custosa de manter. Mandais distribuir armas e dinheiro pelo povo a fim de derribar as autoridades legaes, e vos admirais de ter a justiça em vossa porta.

— O que se diz é o contrario, retorquiu Coelho sem diminuir sua arrogancia. Diz-se que nós os portuguezes, e os que nos acompanham, nós os fieis subditos d'el-rei nosso senhor não temos nem dinheiro nem armas com que rebater a rebellião da nobreza.

— Pouco importa ás justiças saberem si tendes dinheiro. Fallei-vos em dinheiro, porque em dinheiro se fala pelas ruas da villa, sr. negociante.

— Chamai-me mascate, já que não quereis chamar-me sargento-mór, titulo que não podeis tirar-me.

— Titulo que a nós deveis.

— Devo-o a el-rei, não a vós.

— Não vim a praticar convosco. Vim a saber si de feito tendes armas defesas que destinais aos populares por vós comprados para executores ostensivos de vossos tenebrosos designios.

— Si tenho armas! exclamou Coelho. Si eu armas tivesse não as deixaria passar sinão depois de morto, das minhas para as vossas mãos. De armas precisamos nós para defender a verdadeira autoridade, villãmente ultrajada por uma nobreza, que na rebeldia suppõe consistir a sua maior força e o seu primeiro brazão.

— Em nome da lei, mascate! gritou Cosme em tom de quem impunha silencio. Sois apontado como perturbador da ordem, protector de rebeldes, e um delles. Á frente de todos os motins que ha dois mezes perturbam o socego desta villa, todos vos vêem comprando os venaes, desencabeçando os ignorantes, encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os desordeiros por habito e condição. Os homens bons estão já cansados de aturar as vossas provocações, a autoridade de ser desrespeitada, as familias fracas de receber insultos e violencias dos malfeitores a que estendeis a mão cheia de ouro. É tempo de espezinhar a cascavel que tanta peçonha mortal tem vasado de sua boca immunda; e como o melhor meio de aniquilar a cobra é atacal-a em seu proprio covil, pareceu á autoridade competente que a vossa casa seja corrida, e de vosso crime se tire a devassa, si chegar á certeza de que sois criminoso.

— O direito, que vos arrogaes, de violar o meu asylo domestico, nem o achais na lei, nem eu o reconheço sinão como filho do vosso violento natural, de todos conhecido. O testemunho de que não sou criminoso está em sujeitar-me ao vosso desatino. Outro fôra eu, que já me terieis pago a vossa ousadia. Correi, correi a minha casa. Este procedimento condiz com a fidalguia de que rezam os vossos encardidos pergaminhos. Quanto a dizerdes que sou rebelde e amotinador, cégo seja para sempre aquelle que ousar affirmar que primeiro se insurgiram contra a legalidade os mascates que os nobres.

Cosme voltou as costas ao negociante como quem não levava em conta suas acerbas ironias e rudes exprobrações.

A verdade, porém, é que ellas o feriam, como pontas de punhaes acerados no coração. Os beleguins cumpriram o seu dever, e o proprio juiz, não podendo vencer o seu despeito hostil e apaixonado, encaminhou-se ao interior da habitação.

A esse tempo Bartholomeu que ainda não podera descer, chegou-se a Coelho e lhe disse á puridade:

— Quer sahir, patrão? Atiro-me daqui ao soldado, que alli está de guarda na porta, e quando elle menos esperar estará suffocado entre as minhas mãos. Então vosmecê poderá descer com seus caixeiros, ganhar a rua e desapparecer por traz dessas moitas de jerobebas que cobrem os fundos da igreja. Eu lhe guardarei as costas. Póde ir descansado.

— Pensas que eu poderia realizar o que estás indicando? Olha. A rua está cheia de gente. A casa está cercada. Ali em baixo varios soldados espreitam quem entra e quem sai. Mas porque me ausentaria eu? Que crimes commetti para fugir?

— É que as armas que estão lá embaixo... tornou o barcaceiro a meia voz.

— Duvido que as encontres tu mesmo que comigo as viste, quanto mais elle. E si queres ter a prova do que te digo, vae á escada por onde ha pouco descemos ao subterraneo.

Sem dizer palavra, o barcaceiro encaminhou-se ao gabinete, atravessou-o e chegou ao ponto indicado.

Descia o juiz, beleguins e soldados. Verificou então por seus proprios olhos o que lhe dissera o negociante. A escada fazia uma volta para a direita e ia dar na loja, não no escondrijo. Bartholomeu ficou um instante confuso. Lembrava-se que por alli descera para o subterraneo, por uma volta que a escada fazia á esquerda: mas, essa tinha desapparecido como por encanto, sem deixar o menor vestigio por onde se pudesse descobrir o segredo.

Quando Cosme volveu á sala, Coelho foi a seu encontro, e com expressão de mal disfarçado odio, lhe disse:

— Não achastes nem uma adaga, nem um arcabuz no meu armazem. Voltastes em branco. Pois bem. Eu vos asseguro, senhor Cosme Cavalcanti, que dentro em pouco tempo a nobreza de Goyanna ha de saber para quanto prestam as armas dos mascates, que as teem e de fina tempera.

— Ah! Elles as tem?

— Elles as tem, e tenho-as eu proprio a meu alcance.

— Melhor, melhor. Servirão para atravessar ou degollar os mesmos que as guardam em seus escondrijos.

— Veremos qual de nós se engana, respondeu Coelho.

— Veremos, veremos, mascate—disse Cosme descendo com seu sequito.

Os olhos de Coelho despediam insolito brilho. Na face que a ira fazia subitamente contrahir-se e dilatar-se, havia certos tons de ferocidade felina.

— Misereveis! exclamou elle quando ainda o juiz não tinha descido de todo a escada. São ineptos na propria hostilidade com que pretendem impor seu ridículo poderio.

Então, voltando-se para um dos caixeiros:

— Vai já, já em procura de Jeronymo Paes —disse. É preciso que elle me falle sem perda de tempo.

— O patrão precisa de mim? perguntou-lhe Bartholomeu.

— Hoje não, amanhã, talvez. Podes sahir. Espera. Quando passares pela porta do Laurianno, dize-lhe que venha fallar-me agora mesmo.

Coelho deu alguns passos pela sala, penetrou no gabinete, voltou e logo após tornou a tomar para o interior. Antes de transpor a porta que dava para o quarto secreto, parou e perguntou ao segundo dos seus caixeiros si havia ainda soldados pela rua. Quando o rapaz tomava para a sacada, entrava na sala Luiz de Gouveia, mulatinho musico, de violento e desvairado patriotismo. Vinha acompanhado por differentes homens do povo, trazia as feições demudadas, os cabellos revoltos.

— Que novos ultrajes e attentados nos vens annunciar, Luiz? inquirio o negociante, antes que o musico fallasse.

— Um attentado nefando. Seu Jeronymo Paes acaba de ser ferido de um tiro de pistola, que lhe dispararam da rua, quando estava fallando.

— Eu esperava por isso, tornou o negociante. É natural que ao ultrage se seguisse o assassinato. Mas enganam-se. Suppondo aniquilar-nos, não fazem mais do que apressar a sua propria queda.

— Mas que mais esperamos, sr. Coelho? Interrogou Luiz. Não será ainda tempo de armar o povo e atiral-o contra os fidalgotes? Havemos de morrer ás mãos deles, e só então nos metterão nas mãos as armas? Vamos com isso, senhor, vamos com isso. O povo não pede senão armas, não quer sinão ir contra os nobres.

— E ha muito povo pelas ruas?

— A villa inteira está nas ruas. O tiro desfechado irritou todos os animos. Homens e mulheres correram á botica a saber o que tinha succedido. Si apanham o assassino, fazem-no em postas. Dizem que é um escravo de João da Cunha.

— Ha de ser, ha de ser. Não tem elle mandado fazer tantas mortes? Não é useiro e vezeiro nesse officio? Não é elle o gran senhor desta herdade, e não somos nós seus servos? Mas que a façam bem feita, porque si assim a não fizerem, com seu sangue serão lavados os insultos e aggravos com que todo o dia nos batem ás faces.

Coelho foi interrompido neste ponto por uma voz rouca e tremula, que partia do meio da rua.

— É a voz de Jeronymo—disse elle.

Todos correram á sacada.

— Ali vem elle—disse o musico.

— Querem a perturbação, o sangue, a morte? Dizia o marchante. Pois hão de ter todas estas calamidades. Sou o procurador do povo de Goyanna. Ainda ha pouco vos dizia eu que da nobreza só tinhamos que esperar desdens e despotismos. Agora já posso acrescentar que temos tambem que esperar o assassinato ás escurinhas e traiçoeiramente. Não me mataram; apenas feriram-me no hombro; mas a morte dos que defendem os direitos do povo e a autoridade real, essa elles a tem decretado como meio de consolidarem o seu poder, filho da violencia e do artificio. São réos de crime de primeira cabeça. Ah! o que nos fazem—tenham certeza—não o botam em sacco rôto.

Antes de ser ferido pelo tiro que lhe foi disparado por mão até hoje desconhecida, Jeronymo Paes tinha já encaminhado parte do povo para o movimento insurrecional.

Quando chegou á botica, ainda estava ahi o Ricardo pérorando em favor da nobreza. Ricardo era um rapaz de condição obscura, que á protecção de um nobre devia certo emprego de que vivia. Não tendo podido completar a carreira sacerdotal, que encetára em vida do pae, viu-se obrigado, por morte deste, a voltar á Goyanna onde esperava por elle a familia acéphala.

Jeronymo não teve para elle a menor cortezia na linguagem, e muito menos no gesto.

— Tuas palavras são suspeitas, rufião—disse elle ao rapaz rudemente, mostrando-lhe um punho cerrado. Cada uma dellas representa uma das migalhas com que teu protector te matou a fome, dando-te o emprego que tens. Disseste ha pouco que não temos nem armas nem dinheiro. Enganas-te, villão. Em nossos armazens temos armas para levantar a villa inteira contra a nobreza sem freio que jurou aniquilar-nos. Quanto a dinheiro, olha d'ahi, e dize lá si já viste rosas tão bonitas como estas, que me cahiram das alturas.

Assim fallando, Jeronymo Paes fez saltar as dobras ao ar e as aparou com o açafate.

Ao sonido das moedas, um sem-numero de mãos se estendem para sua banda, e differentes vozes dizem á porfia:

— Dê-me uma rosa.

— Uma ao menos dessas rosinhas amarellas, seu Jeronymo Paes.

Cosme Cavalcanti, a quem foram logo levar a declaração, imprudentemente feita por Jeronymo, de que havia armamento nos armazens dos mascates, corre a cercar a casa de Coelho que vareja, segundo vimos.

Entretanto Jeronymo, no ardor da exaltação e calculando o effeito da sua generosidade distribue, pelos que lhe parecem mais dignos do presente, uma por uma, as dobras tentadoras.

E ao mesmo tempo que com a mão as distribue, segreda com os labios quasi á puridade, ao que as recebe:

— Quando sahir daqui vá a casa de Coelho, José. Não deixes de ir, Antonio. Vê lá o que fazes, Martinho. Elle tem que fallar a vocês á cerca de uma diligencia importante e rendosa. Não faltes, Justino; nem tu, Jacintho; nem tu, Sebastião.

Todos estes sujeitos respondiam affirmativamente e embolsavam a moeda.

O ouro dá calor e eloquencia; dos timidos faz audazes, dos prudentes temerarios. A corrupção é feia, mas efficaz no momento; que tem que depois semelhe chaga podre, nojenta mortal? Quando o tiro feriu o marchante, todos aquelles que tinham na algibeira uma rosa, tomaram immediatamente parte pelo offendido e em altas vozes pediram armas para o desagravarem. Era mais o cheiro da flor do que o impulso da indignação natural o que lhes dava esta animação.

— Armas, armas, meu amigo, eis as primeiras palavras de Jeronymo quando entrou em casa de Antonio Coelho. Armas ao povo! Elle as pede; elle as quer. A villa é por nós.

Em menos de meia hora Goyanna estava nos braços da anarchia. As paixões populares, exacerbadas e açuladas por Jeronymo Paes, por seus filhos, que correram em seu favor tanto que souberam do acontecido, por Belchior—o rabula, Manoel Gaudencio—o alfaiate, Romão da Silva—o meirinho, Manoel Rodrigues—o taverneiro, e por outros conhecidos e desconhecidos parciaes, desaffogavam em gritos, ameaças, insultos.

O sinos e os tambores deram logo signal de rebate.

Dos moradores, uns, manifestado o motim, correram a tomar parte nelle; outros, já escarmentados das violencias praticadas por occasião dos motins anteriores, fugiam, como podiam, com suas familias, para fóra da villa; outros, não tendo para onde ir, ou receiando pôr pé na rua com tanto povo revolto, se deixavam ficar em suas casas, resolutos a defender-se ou a resistir si acaso fossem atacados pelas turbas. Dos que se atiravam na vertigem muitos não o faziam tendo a mira em outro alvo que o de ser sua casa respeitada pelo saque—epilogo negro de quasi todos os motins populares.

Gritos contrarios começaram a ressoar de pontos differentes.

D'aqui se ouvia este:

— Vivam os mascates! Morram os nobres!

D'acolá já era est'outro:

— Viva a nobreza de Goyanna! Viva a nobreza de Pernambuco! Morra pé-de-chumbo.

Os adjuntos donde partiam estes ultimos gritos, eram menos numerosos e menos densos. Dir-se-hia que estavam ainda em formação ou que tinham medo de formar-se. Resoavam á porta de fidalgos conhecidos e d'ahi não se alongavam muito.

Quando algum forte bando se aproximava delles, as manifestações diminuiam ainda mais. Era medo, desdem, ou prudencia?

— Silencio, escravos! respondiam de cá os mais exaltados.

Os de lá não retorquiam.

E o dragão popular passava revôlto, espumante, vertiginoso, cuspindo injurias e obscenidades contra os que considerava seus adversarios, e pensando no desforço pessoal e no roubo publico.