O Sr. Lima Campos forma com o poeta Mário Pederneiras e o notável artista Gonzaga Duque uma antiga trilogia da mútua admiração, como que à parte na nossa literatura, pertencendo aos novos pela ousadia das idéias e aos velhos pela idade, pois são todos três contemporâneos da geração de 1890.

O Sr. Lima Campos é um artista e vive como tal, goncourtizando as horas da existência com apuro e encanto.

Vou encontrá-lo numa brasserie, que a vontade dos três resolveu tornar um retiro de boêmia espiritual. Lima Campos recebe-me num refloreio de frases raras. Depois, como me sento, definitivamente resolvido a ouvi-lo, o autor do Confessor Supremo pergunta com um gesto melancólico:

— Então, sempre quer saber a minha opinião. Valerá a pena? Há três perguntas — as três primeiras — cujas respostas podem ser breves. Aí está a primeira, sobre a formação literária...

— Não acha que a contemplação da natureza e a observação constante de todas as suas manifestações na vida tenham sido e sejam os melhores e, talvez, os únicos formadores do indivíduo espiritual e, por conseguinte, do indivíduo literário?...

Eu creio assim, e dos primeiros autores lidos, os preferidos são, apenas, iniciadores, apenas um incentivo que vem despertar, a um dado momento, o que já existe formado, por outros processos, no indivíduo mental.

— Mas há de fazer influências mais fortes — as da mocidade...

— Que me ocorram de pronto — e isso já lá se vai pelos meus bons tempos de mau preparatoriano: Bernardo Guimarães, no romance nacional; Fagundes Varela, na poesia, e um conteur espanhol de costumes, Antonio Trueba; mais tarde, porém, empolgaram-me de todo Hugo, Goethe, Balzac com as suas deliciosas Ilusões Perdidas, esse adorável Maupassant com Pierre et Jean e com Sur l'eau, Garret, Camilo, Fialho e ah!... mestre Dante e mestre Flaubert.

Ao preferir este último nome, Lima Campos ergueu-se, ligeiramente, em pequena mesura.

— E a crítica? Nunca o preocupou a crítica?

— Ah! João! A crítica é sempre a água da análise pedantocrática vazada malevolamente na açorda saborosa da produção.

Imagina tu uma purée deliciosa de grãos de bico ou uma Juliana de caldo louro, quente e cheiroso, em que se vaze, de repente, um copo de água fria e salobra!... Em todo caso, ela tem o seu papel e tem os seus mestres...

O Dr. José Veríssimo por exemplo. Esse é o mais proeminente dos nossos críticos. Admiro-o pelo peso dos conceitos, pela circunspecção discreta do seu espírito analítico, pelo critério do seu método expositivo e pela fluência canora e flébil do seu estilo, que nos lembra o deslizar marulhoso de uma linfa.

É profundo, é, incontestavelmente, profundo! Não fosse a existência de um outro crítico eminente, o Sr. Medeiros e Albuquerque, e, sem dúvida, o Sr. José Verissimo seria sem rival. Chamo a tua atenção para o artigo em que o Sr. Veríssimo, em um dos últimos números da revista Kosmos, escacha, com clava de mestre, Camilo Castelo Branco. Se o autor do Eusébio Macário já não estivesse morto, seria caso para ir direitinho adubar as terras municipais do cemitério de San Miguel de Seide.

Mudo o curso à conversa.

— E os seus trabalhos? Qual deles prefere?

— Só tenho um livro publicado, o Confessor Supremo, e um em preparo — romance de época, de costumes e de tipos. O mais consta de trabalhos avulsos em jornais e revistas. Gosto de todos e, se assim não fosse, não os teria dado à publicidade; a preferência, por conseguinte, se não é impossível, é pelo menos, para mim, difícil. Amo-os; agora, os que foram vítimas em lê-los é lá outra coisa: devem tê-los achado detestáveis...

— Andam a dizer que atravessamos um período estacionário para a arte.

— Não; não me parece que a prosa nem a poesia contemporâneas estejam estacionárias aqui. Quando uma literatura conta prosadores como Gonzaga Duque, Virgílio Várzea, Coelho Neto, e poetas como mestre Luís Delfino, Alberto de Oliveira, Mário Pederneiras, Emílio de Menezes, Olavo Bilac, B. Lopes, Anibal Teófilo, Raimundo Correia, Machado de Assis, Luís Murat, João Ribeiro, Daltro Santos, ela vive, ela progride, evolui, ganha, dia a dia, feições novas. Quanto a escolas, felizmente, não existem; mas existem, infelizmente, algumas assimilações, feitas com talento, de outros autores, já nacionais, já estrangeiros, desvirtuando o cunho original de autoria que a obra deve ter; e, mais infelizmente ainda, existem grupos e a luta, a repulsa desses grupos, que ocultamente se guerreiam e, por vezes, de modo mesquinho, sob o disfarce da desintimidade. É doloroso, é lastimável, é uma porcaria em que só aproveitam os medíocres, os moendas-secas e os attachés de uns e de outros lados.

— Entre os prosadores não citou Machado de Assis...

— Propositalmente. Admiro-o, leio-o com prazer, com imenso prazer mesmo, mas julgo-o na prosa, além de demasiadamente pessoal, um estacionário; não podia, portanto, incluí-lo entre os prosadores que citei, como permiti-me não incluir também Rui Barbosa e Euclides da Cunha, porquanto a prosa de ambos não pode, a meu ver, ser considerada prosa artística. Serão, antes, escritores notáveis que, a rigor e propriamente literatos, considerando esta última classificação em relação a coisas de arte, que é do que se está tratando.

— Não podia precisar quais sejam os grupos de que há pouco falou?

— Eles existem; todos os conhecem. Para que citar nomes?

— Pertence a alguns?

— Nunca. Ligo-me, apenas, de um modo acentuadamente íntimo a dois dos nossos mais admiráveis artistas, um da prosa e outro do verso: Gonzaga Duque e Mário Pederneiras; amo-os, tenho-os como dois irmãos; mas, nas íntimas relações pessoais que nos ligam, as nossas individualidades de arte, embora se admirem e sejam afins na orientação, se independem; não formamos, por conseguinte, um grupo, uma coterie literária, mas um trio de velha afetividade duradoura e carinhosa.

Compreendo, e passo aos Estados. À minha pergunta Lima, Campos sorri...

— Todos os legítimos méritos literários que se revelam nos Estados convergem sempre para aqui. O Rio no Brasil, como Paris na França, e como todas as capitais de todos os países, com exceção da Alemanha, cujo verdadeiro centro intelectual artístico é Munique — é e será sempre a grande atração das intelectualidades provincianas; daí a superioridade do meio literário do Rio sobre os dos Estados; ele é o núcleo dos méritos mais apurados de todo o Brasil. Pondo de parte, pois, o caso de uma excepcionalidade intelectual tão intensa e tão apuradora de si própria, que em qualquer parte se revele e se mantenha a mesma, todos os demais méritos literários, por mais legítimos que sejam, se persistirem em se conservar nas províncias, ou nunca se libertarão de uma certa feição incipiente que caracteriza a literatura provinciana, ou, se já estiveram e brilharam em centros superiores, se estiolarão gradualmente até o atrofiamento, o estacionamento completo. É que lhes falta o incentivo, de que resulta o apuramento, o entrain, a contínua evolução, e que só nos grandes centros intelectuais podem encontrar; somente os grandes excepcionais, os supertalentos, os possuem inatamente. A esses é até indiferente Paris, o Saara ou o Pajeú das Flores, Munique ou o Quebra-Cangalhas. Olha, João, eu se fosse um gênio, preferiria até a solidão; arranjaria, a jeito, uma febaidazinha a meu modo, e enquanto abrissem avenidas cá por baixo, pirava-me por esses subúrbios acima e só reapareceria com cinco tomos em 8º, já prontos, para meter figas à Literatura Brasileira do Sr. Sílvio Romero.

Aquilo é que havia de ser obra de fôlego, João, de fôlego e de volume!...

Apesar da maldade, esse desejo de silêncio, entre árvores, na solidão, faz-me compreender que, mesmo não sendo gênio, Lima Campos começa a preferir que o não importunem. Faço com açodamento a última pergunta sobre o jornalismo, e o escritor responde, devagar, fumando:

— O jornalismo, como se acha constituído atualmente, não me parece dos melhores, mas já houve tempo em que foi excelente, não direi como fator, porém como elemento animador — isso no tempo dourado, em que os espíritos cintilantes, robustos, limpos, sem invejas, sem receio de sombra e, sobretudo, sem esnobismo, eternamente moços e eternamente boêmios, de Patrocínio e de Ferreira de Araújo, eram as duas vidas, as duas almas simples e claras, as duas forças sadias da imprensa. Hoje, contudo, ele produz ainda, embora com menos freqüência, belas organizações literárias, e nós aí temos para provar o quanto o jornalismo pode, não criar, mas evidenciar o literato.

E voltando para mim, calmo, perfeitamente sério, o Sr. Lima Campos começa a elogiar-me. Quero impedir as frases, mudar a conversa. Dos lábios sobe, como uma estranha harmonia, esse saboroso som do elogio. Entonteço, quase convencido. Vou mesmo dizer:

— Mas, qual! não é tanto... — quando lembro o seu desejo de ficar só... Então recuo, afasto-me, fujo.

Saio cheio de felicidade e venho por aí a pensar que não há outro homem com tanta penetração e um tão lindo estilo...

A literatura! O momento literário! Sim, tudo isso, sem o elogio mútuo, que seria, Deus de Bondade?