Silva Ramos é modesto e delicado, quase tão modesto quanto delicado. Conversa como se estivesse no salão de Mme. Geoffrin, em pleno século XVIII; usa um bigode branco que lembra o de Edmond Goncourt e a sua voz guarda um sonoro sotaque alfacinha. Como é possível que esse homem, sendo professor, tendo concorrido para a pletora de bacharéis, conserve a inalterável distinção e a aristocrática afabilidade? Não há no mundo coisa que mais enerve do que ensinar meninos, e estou em acreditar Silva Ramos capaz de resistir a tão exaustiva existência pelo seu rico temperamento lírico.

Silva Ramos é talvez entre nós o último dos românticos, com todo o seu encanto, o seu imprevisto e o filagranado sutil de ironia e amor que fez Théophile e fez Musset. A sua arte pode defini-la um período de Jules Laforgue:

— Faire partir l'esthétique de l'amour.

A sua modéstia como a sua delicadeza são indefiníveis.

É dele esta encantadora carta de tão fino sabor literário, que acaba a gente até por admirar a Academia de Letras:

"Não lhe parece, meu amigo, que um poeta lírico, como eu, poderia bem escusar-se de responder a um interrogatório da natureza do seu, muito interessante, embora?

Embaraço-me logo na primeira pergunta: "Para sua formação literária, quais os autores que mais contribuíram?"

Na formação de um poeta lírico, que eu saiba, influi exclusivamente um único autor: o Autor da criação, que fez o céu, o mar, os bosques, os rios, semeou no éter as estrelas, pôs o perfume nas flores, deu às aves o canto, coloriu de tons a aurora, derramou a plenas mãos o oiro fulvo dos poentes, tudo isto iluminado pelo olhar da mulher, ente singular em quem se resumem todos os encantos, em cujo seio se engendra o amor, com todos os refinamentos imaginados pelas filhas de Eva, desde Maria Madalena até Santa Teresa de Jesus.

Quando ainda não tinha vinte anos, adotei por epígrafe de um livro de versos aquilo de Musset:

Je n'ai jamais chanté ni la paix ni la guerre.
Si mon siècle se trompe, il ne m'importe guère.

L'amour est tout;
Aimer est le grand point.

Caíram-me os críticos em cima, vaticinando-me que nunca seria nada, porque não possuía a compreensão dos grandes problemas em cuja solução a humanidade se debate. De fato, nunca fui nada, mas, como não acabo de me convencer que a minha insignificância tenha sido motivada por aquela falha que os críticos me assoalharam, já agora não hei de largar o estribilho:

L'amour est tout;
Aimer est le grand point.

A segunda interrogação já ficou implicitamente respondida: do Autor da criação a melhor obra é a mulher.

À terceira apenas me permito afirmar que no quartel-general das letras, mais conhecido pelo nome de Academia Brasileira, nada consta oficialmente sobre refregas ou simples escaramuças travadas entre escolas literárias, de modo a perturbarem o doce sono a que se julgam com direito em toda a parte do mundo as instituições desta natureza. Demais, brigas de literatos poderá havê-las, lutas de escolas é que não; por muitíssimas razões, das quais apontarei apenas a primeira; é que no Brasil não há escolas.

Se polêmicas houvesse, é claro que a razão estaria com certeza da parte dos que pensam como eu, e que seriam eles os vencedores; porque muito há que eu estou convencido desta verdade profundíssima, que constitui o princípio fundamental da crítica entre nós: os nossos amigos são uns gênios, os outros são todos uns alarves.

Para satisfazer ao quarto quesito, direi que, não existindo, de modo nenhum, no Brasil, pelas condições inerentes à sua natureza, o que se chama uma literatura, o perigo de literaturas provinciais, com tendências emancipadoras e absorventes, só se pode desenhar no horizonte como visão de cérebros doentes.

Por último: "O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?"

Distingo: para a arte literária é mau, para o literato é bom. Para a literatura é um fator mau, porque a feição essencialmente mercantil das folhas diárias, revelada nas pequeninas preocupações de furos, curiosidades de senhoras vizinhas, folhetins de sensação, ao paladar das criadas de servir, é absolutamente incompatível com a idealização da arte pura, no sublime desinteresse com que se ala aos mundos superiores, toda ela desprendida das misérias terrenas. Para o literato é um ótimo fator, porque, facultando-lhe um emprego de repórter ou de noticiarista, quando mais não seja, coloca-o ao abrigo das primeiras necessidades, tornando, para sempre, impossível a reprodução do quadro lendário: o poeta morrendo de fome..."

Já é uma utilidade descoberta com tão fino humour por Silva Ramos, principalmente quando os jornalistas mesmo não sendo poetas esperam a todo o instante fazer o quadro vivo: — o jornalista morrendo de fome aos pésdo público...