O autor das Caricias e da Botânica Amorosa é dos que primeiro respondem à minha carta. Em S. Paulo, redigindo a Folha Nova, professor, cheio de afazeres, Garcia Redondo manda-me esta curiosa resposta em 8 de março:
— Para sua formação literária quais os autores que mais contribuíram?
RESPOSTA — Esta pergunta oferece-me pretexto e oportunidade para uma confissão que eu há muito desejava fazer. A minha formação literária tem o seu alfa na leitura do Almanaque de Lembranças, isto em 1867. Nesse tempo cultivavam-se com entusiasmo a charada, o logogrifo e o enigma, e esse gênero de diversão, que o Almanaque vulgarizou e pôs em moda em Portugal e no Brasil, atraiu-me e instruiu-me. Para obter decifrações com relativa facilidade, foi-me preciso estudar a história, a geografia, a fábula, as ciências naturais e a língua vernácula. Conquistei com esse estudo uma grande cópia de conhecimentos que outros, na minha idade, não tinham. Era, nesse tempo, estudante em Coimbra e companheiro de casa de Gonçalves Crespo e de João Penha. A nossa "república", instalada na casa das velhas Seixas, à Rua da Couraça de Lisboa, era freqüentada pela élite intelectual de Coimbra. Entre outros, iam ali diariamente Guerra Junqueiro, ainda imberbe e aspirante a homem de letras; Cândido de Figueiredo, poeta então e hoje filólogo; Frederico Laranjo, prosador de pulso; Simões Dias, poeta lírico dos melhores que Portugal tem tido; Caetano Filgueiras, brasileiro e poeta; João e Manuel de Campos Carvalho, mineiros e excelentes prosadores; Macedo Papança (hoje conde de Monsaraz), já poeta e muito democrata então; Silva Ramos, autor dos Adejos; Sérgio de Castro, prosador e poeta; e outros que prestavam culto a João Penha. Eu era menino de 13 anos e assistia cheio de curiosidade às discussões que se travavam no quarto de Penha ou de Crespo, por entre a fumarada dos cigarros, sobre escolas literárias ou sobre livros recém-publicados. De outiva, ia aprendendo muita coisa e ganhava gosto pelas letras. A Folha, a famosa Folha de João Penha, surgiu por essa época, e a leitura desse hebdomadário literário despertou-me o desejo de compor e de escrever. Fiz os meus primeiros versos que João Penha e Crespo corrigiram e, logo depois, tive a coragem de fundar com Silva Ramos, Bitencourt Rodrigues, Macedo Papança e Sérgio de Castro um periódico literário — O Peregrino — que saía quinzenalmente. Esse peregrino audaz saía pela mesma porta que atirava à grande circulação a apetecida Folha de João Penha! Para fazer o periódico, para ter idéias e dar-lhes forma amena, senti a necessidade de ler poetas e prosadores. Comecei pelos portugueses e passei logo depois aos franceses, lendo-os em versões e no original. Ramalho e Eça acabavam de publicar no Diário de Notícias, com grande sucesso, o celebre Mistério da Estrada de Sintra e encetavam a publicação das Farpas em pequenos fascículos. Urbano Loureiro mantinha no Porto uma revista satírica e humorística — Os gafanhotos, cuja feição me agradava. A prosa tersa destes homens e a poesia de João Penha, Crespo e Simões Dias faziam as minhas delícias. Gonçalves Crespo ainda não tinha publicado as Miniaturas, mas exibia-se na Folha, onde os seus versos eram lidos com aplausos gerais. Era, nesse tempo, nosso cônsul em Lisboa o barão de Santo Ângelo (Manuel de Araújo Porto Alegre) que, ao receber O Peregrino, me enviou as primeiras palavras de animação que tive na minha vida literária e que me aconselhou a que lesse poetas e prosadores brasileiros, citando os que eu devia ler de preferência.
Li os que consegui obter: Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e os sermões de Monte Alverne.
Paralelamente, ia lendo os clássicos portugueses e franceses. A leitura desses livros despertou-me o desejo de ler outros a que eles se referiam. Antônio de Castilho, o autor dos Ciúmes do Bardo, iniciava a publicação das suas traduções de Molière, e a leitura dessas versões levou-me a ler Molière no original para o cotejar com a traduções. Li assim a obra inteira do grande autor-ator e em seguida conheci a do bonhomme La Fontaine, a de Boileau e a de Scarron. No meu espírito já se manifestavam predileções, e o gosto pela forma apurada pronunciava-se. Percebi que precisava metodizar a leitura e estabeleci um plano. Comecei pelos poetas e prosadores espanhóis e notei que os que mais funda impressão deixavam no meu espírito eram Cervantes, Bartrina, Castelar e Campoamor. Passei depois aos italianos e a minha predileção manifestou-se por Dante e De Amicis. Dos ingleses foram Shakespeare, Dickens, Byron, Shelley, Carlota Brontë e George Elliot; dos alemães, Heine e Goethe; dos norte americanos, Longfellow e Edgard Poe. O autor do Corvo encantou-me e assombrou-me. Lendo-o, senti o desejo irresistível de escrever no gênero das suas Histórias extraordinárias. Fiz o que meu primeiro conto nesse gênero quando tinha 15 anos e ainda conservo esse trabalho medíocre, que nunca publiquei. Foi nessa idade que li com avidez e já preparado para sentir e julgar os então modernos escritores franceses. Li Vitor Hugo, Lamartine, os Dumas, pai e filho, Alfred de Musset, Verlaine, Baudelaire, Théophile Gautier, Guy de Maupassant e outros. Daudet aparecia. Li-o, mas não me impressionou como Hugo, Gautier e Maupassant. Hugo era para mim assombroso, extraordinário, e magnetizava-me pela grandeza das suas concepções e o imprevisto dos seus conceitos. Amava-o mais na prosa do que no verso. Théophile Gautier, o divino Théo, empolgava-me principalmente pelo estilo; Maupassant seduzia-me pela escola, que era nova, e pelo talento descritivo, em que já se aproxima de Gautier e de Hugo.
Não contando os clássicos portugueses que li, eis a minha bagagem literária daquele tempo.
Só mais tarde, quando regressei ao Brasil em 1871, foi que conheci a obra literária de Macedo, Alencar, Castro Alves, Varela e Machado de Assis, que ainda não era o mestre consagrado que hoje é.
O meu espírito, já então disciplinado, começava a produzir metodicamente.
Não quero fazer uma autobiografia, mas posso agora, resumindo, dizer que os escritores que mais influência exerceram na minha formação literária foram: Gonçalves Crespo, João Penha, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Alencar, Edgar Poe, Henri Heine, Théophile Gautier, Guy de Maupassant, Vítor Hugo, Bartrina, Byron, Shelley e De Amicis.
Destes, o que tiveram uma influência decisiva foram Crespo, Penha, Ramalho e Eça, Heine, Dickens, Gautier, Edgard Poe e Maupassant.
De todos, o que mais influência exerceu foi Gonçalves Crespo.
Eis aí porque o quis para patrono da minha cadeira na Academia Brasileira.
A confissão está feita.
Das suas obras, qual a que prefere?
RESPOSTA — Carícias.
—Especificando mais ainda; quais dentre os seus trabalhos, as cenas ou capítulos, quais os contos, quais as poesias que prefere?
RESPOSTA — "Viagens pelo país da ternura" (das Caricias); o conto "O Caso do abade e os Poemas da juventude"(da Choupana das Rosas).
— Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento atual, no Brasil, atravessamos um período estacionário, há novas escolas (romance social, poesia de ação, etc.), ou há a luta entre antigas e modernas? Neste último caso, quais são elas? Quais os escritores contemporâneos que as representam? Qual a que julga destinada a predominar?
RESPOSTA — Não, o Brasil não atravessa atualmente um período estacionário. Também não há luta entre as antigas e modernas escolas. Há, sim, certa tendência ainda vaga para a formação de novas escolas que no romance se revela em Canaã e na poesia dos versos de Francisca Júlia e Emílio de Menezes. Penso, porém, que essa tendência não passará jamais de uma aspiração.
— O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a criar literaturas à parte?
RESPOSTA — Não me parece. O velho Portugal ainda sobre nós exerce tal influência literária que não conseguimos criar uma literatura essencialmente nossa, a despeito de quase um século de emancipação política. A Capital Federal está para os Estados como Portugal para o Brasil. Dela é que há de irradiar sempre a influência literária para os Estados, por mais autônomos que estes sejam, politicamente falando. Quando muito, poderemos vir a ter uma literatura do norte e outra do sul, algo distintas, mas com eternos laços de afinidade.
— O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?
RESPOSTA — É um fator excelente. É ele que estimula o cultivo das letras, dando azo a que os novos surjam e exercitem as suas primeiras armas. Sem o jornal, que é um fanal, a arte estaria às escuras. É geralmente pelo jornal que o homem de letras começa; é ainda o jornal que lhe dá, máxime entre nós, as primeiras animações; é, finalmente, o jornal que consagra o escritor quando o neófito se transforma num triunfador."