Mandam-me entrar para uma pequena sala cheia de pequenas estantes, de guéridons, de fotografias e de jarras com rosas. Há junto à mesa uma vasta poltrona; encostado à parede, sob um retrato de Eça de Queirós, um largo divã coberto de pano da Índia.
Sento-me no divã e olho em derredor. À esquerda, uma porta quase apagada pelo reposteiro; à direita, outra porta dando para uma pequena área donde se divisa a beleza da paisagem da montanha. É noite. O candeeiro tem uma luz tênue e carinhosa, dessas luzes que deixam sombras agradáveis pelos cantos. Lá fora, a lua espalha pelo monte a poeira de prata do luar alvíssimo. Tenho a impressão de estar em cena, num cenário arranjado cuidadosamente para o final triste das peças passionais francesas. Devem ter lugar ali as despedidas soluçantes, os últimos adeuses dos olhos pisados e dos peitos arfantes, e eu vejo nitidamente o dono da casa de pijama de veludo despedindo os velhos amores, com o gesto calmo dos super-homens:
— Adeus, cruel! — Boa noite, minha querida senhora...
Neste momento, abriu-se a porta e apareceu o conhecido cronista, alto, corcovado, com o pescoço muito comprido e todo ele envolto num pijama lilás.
— Ia trabalhar?
— Ia; resolvera até não sair à noite.
— Há trabalhar e trabalhar.
— Era trabalhar no bom sentido. Sabe bem que eu deixo definitivamente essas criançadas da boêmia de jornal. O meu ideal é a paz do lar. Sinto que depois trabalharei muito mais. Ah! meu amigo, o que nos perturba, a nós outros, é a inconstância da vida sentimental!
Gravemente, João Luso sentou-se na poltrona.
— Tenho então que responder a um inquérito?
— É mais fácil que uma carta de amor.
— Conforme...
Pegou da carta que eu lhe enviara.
— Quais os autores que mais influíram na minha formação literária? Zola, Flaubert, Maupassant, Eça de Queirós e muitos outros.
Tomei do lápis, fui anotando os nomes, posto que tivesse a certeza de que o escritor para a sua formação tivesse antes sido Garrett, Júlio Diniz e Castelo Branco. Mas era uma certeza pessoal. Continuei.
— Qual dos seus livros prefere?
— A escolha não é difícil. Tenho apenas dois livros publicados; prefiro o segundo, Prosa, porque me parece um pouco mais bem escrito. Mas dos trabalhos nele contidos não prefiro nenhum porque todos estão muito longe daquilo que eu quisera escrever.
Tomei do lápis, fui anotando essas palavras, posto que tivesse a opinião de que o primeiro livro desse admirável temperamento de escritor era, pela sua espontaneidade, muito melhor que o segundo, do qual o mesmo temperamento fazia um alto juízo. Mas era uma opinião pessoal. Volvi-me ao inquérito, indagando as suas opiniões sobre escolas literárias.
— Romance social, vejo apenas o de Curvelo de Mendonça, diz João Luso esquecendo Fábio Luz e o Canaã de Graça Aranha, que o sr. Félix Pacheco tanto admira; poesia de ação, não creio que haja, felizmente. Depois, o período das escolas passou com as revistas de título grego. Hoje, cada um faz o que pode, livremente, por si — o que me parece muito melhor.
— Não há lutas?
— A literatura atual é essencialmente pacífica.
— E talvez passiva...
João Luso sorriu vagamente, aconchegando a gola do pijama ao seu pescoço cor de araçá. Irradiava simpatia. As suas mãos admiráveis de príncipe do Renascimento, mãos magras e esguias, mãos que Van Dick pintaria nos palácios de Espanha, eram como uma carícia por onde pousavam.
— E a literatura dos Estados?
— A meu ver só Curitiba deu-se ares até agora de centro literário independente e forte. Mas esses brilhantes rapazes fizeram-se isoteristas, simbolistas, cabalistas, impossibilistas, e — horresco referens! — um belo dia surpreendi o nome do mais vigoroso e mais entusiasta, o maioral da banda, no cabeçalho de um jornal maçônico. Ai dos filhos da Viúva!
Ai dos rapazes de Curitiba!
— Ai! ai! fiz para acompanhá-lo, percebendo que João esquecera a Mina do Pará, a Padaria do Ceará, e outros estabelecimentos literários à parte do vasto litoral brasileiro.
— Quanto à sua última pergunta, a minha resposta é esquisita.
— Deveras?
— Acho que o jornalismo não favorece no Brasil a literatura; mas é igualmente verdade que a literatura não favorece o jornalismo.
— É na sua essência a maior verdade que eu tenho ouvido.
— Porque praticamente o jornalismo serve aos literatos.
— Exatamente.
— Pois ainda outro dia ouvi de um diretor de jornal o seguinte: se eu dispensar todos os meus colaboradores, a saída da minha folha não diminuirá um exemplar. Engoli em seco em nome da classe, e calei-me. Parece que é assim mesmo!
— Mas, diga-me: tem muita coisa em preparo?
— Foi-se o tempo do livro único; eu imagino por conseqüência, muita coisa mas para quem vive preso ao jornal — e só têm grande ração os que assim vivem — as obras dependem dos jornais. Não se dá uma penada sem a certeza de ver a coisa publicada no dia seguinte. Eu tenho um romance que ainda não passou do primeiro capítulo. Ficará pronto se um jornal tiver a idéia de encomendar-me um romance. Daí o achar que para anunciar obras minhas falta aqui o colaborador eventual, o que coleciona os trabalhos — o jornal...
João Luso ergueu-se, diminuiu a luz do candeeiro. Lá fora a lua espalhava pelo monte a poeira de prata do luar alvíssimo. Em derredor tudo era como se estivéssemos em cena, no quarto ato de uma peça em que entrasse a Rejane com os diálogos feitos pelo Donnay. Deviam ter lugar ali as despedidas soluçantes, e eu ouvia nitidamente, na alucinação calma dos imaginativos, uma voz arfante murmurar — adeus, cruel!...
— Pois muito boa noite.
— Até outra vez! concluiu o escritor. E, cuidadosamente, deu volta à chave por dentro.
Ia trabalhar.