O Sr. Rodrigo Otávio, da Academia de Letras, escreve-me a seguinte carta:

"Meu caro João do Rio. — Minha formação literária...

Mas, eu não sei mesmo se tive uma.

Em nossa terra, salvo exceções que se contam, as letras ficam no domínio do diletantismo. Muitos de nós, os chamados homens de letras brasileiros, mas realmente, na generalidade, professores, empregados públicos, advogados, jornalistas, muitos de nós, eu mesmo talvez, poderíamos ser, na França, por exemplo, homens de letras no sentido preciso, restrito da expressão.

Aqui, ainda o não somos e não será possível sê-lo enquanto a literatura não for uma profissão, um meio de vida remunerador e confessável.

Por enquanto é uma ocupação segunda, trabalho para as horas vagas, para o tempo que nos deixam as lides de nossa ocupação normal e principal.

Assim, entre nós a produção literária, em sua máxima parte, é antes o fruto da satisfação subjetiva, de uma necessidade de espírito do escritor, do que do acentuado desejo, da intenção decidida de fazer um livro, de compor um trabalho que se destine à leitura dos outros e vise o pagamento do editor.

E em tal conjuntura não é possível a gente que se ocupa de letras no Brasil orientar a produção literária por um caminho seguro, por uma feição definitiva.

Vive-se aqui a ensaiar, a experimentar, tentando-se todos os feitios, amoldando-se a todas as escolas.

Pela minha parte esta é a sensação que tenho da vida literária brasileira.

Animado, desde bem louros anos, de um decidido amor pelas letras, tive por sonho dourado de minha meninice o desejo de "fazer um livro", de ter o meu nome impresso em pequenas letras de ouro nas lombadas de marroquim, enfileiradas nas estantes ao lado de outros e outros. E tal sonho, antes que o meu espírito juvenil pudesse discernir a significação das cousas, me fez passar horas perplexas, deliciosas horas, na leitura inconsciente dos frontispícios dos livros da biblioteca de meu pai, à escolha do assunto de que me havia de ocupar um dia, do título do — "meu livro" —, vacilando entre Oração da Coroa, Apostilas de Praxe, Noites na Taverna, conforme as palavras cantavam-me ao ouvido, ou a disposição dos tipos me falava aos olhos, e essa ingênua pesquisa embaladora me desvendava, sugestiva e mecanicamente, os mal definidos horizontes de tantos mundos desconhecidos, mas, por isso mesmo, fascinadores, irresistíveis.

Os anos passaram sobre esse sonho pueril; os — meus livros vieram, que jamais se me apagou do espírito o fogo sagrado; o meu nome foi impresso nas ambicionadas pequenas letras douradas nos lombos de marroquim, mas esses livros não satisfizeram o sonho ardente dos meus primeiros anos. Outros títulos, outros horizontes, outros mundos continuam a passar dentro de mim nas minhas horas de contemplação interior, e surgem e se acentuam e se desdobram, mas passam e fogem e se apagam, sem que o título seja aproveitado, sem que o mundo seja explorado, sem que o livro seja feito, enfim.

Bem eu sinto que se eu pudesse ser um homem de letras, se a minha preocupação principal, se não exclusiva, fosse a difícil arte da palavra, bem eu sinto que essa muda revoada de ideais não me deixaria apenas o amargo ressaibo de uma ilusão perdida, de uma visão desfeita, de um sonho apagado num acordar doloroso...

Mas as contingências da vida que me tem sido dado viver desfazem a proficuidade desse labor, no qual, sinceramente o digo, veria com prazer chegar o cansaço e a velhice, porque os veria chegarem com a consciência de haver vivido a intensa e fecunda vida do meu sonho irrealizado.

Mas, tudo é vão e inútil: pois, em meio do torvelinho e das preocupações de atividade profissional, que nos requer todos os dias e todas as noites, é inútil qualquer tentame, qualquer esforço é vão.

Os livros que tenho conseguido escrever são o resultado de uma favorável série de circunstâncias oportunas. Muito maior, porém, é o número daqueles que não consegui escrever; e aí certamente é que está, ou que estaria, ou que devia estar minha obra.

É possível que eu ainda a venha escrever um dia; receio, entretanto, que quando possam chegar esses dias de despreocupação material da existência, o fogo esteja extinto e a impotência venha conturbar os derradeiros lampejos de uma vida estéril.

Por hoje sou, e o tenho sido desde que a minha razão se formou, magistrado e advogado.

Nos meus primeiros anos, da academia ao casamento, que me trouxe a consciência das minhas responsabilidades, nos meus primeiros anos, fiz versos, nem creio mesmo que houvesse feito alguma outra coisa com seriedade.

Fiz versos e escrevi o Aristo, uma novela que ninguém leu nem conhece, mas que é o meu livro mais significativo e mais meu. De então para cá a minha obra, quer na fatura, quer no sentimento, quer na respiga do assunto, ressente-se das circunstâncias atropeladas em que tem sido feita.

Aqui, onde a gente começa tão cedo as graves funções da vida pública, a literatura passa desde logo a ser uma ocupação de segundo plano.

Assim foi comigo, se bem que a princípio não fosse assim. Como disse, não tinha pensamentos que não para as rimas de meus sonetos, para os hemistíquios de meus alexandrinos. Vivia com eles, com eles ouvia as lições dos mestres no velho mosteiro da Paulicéia, com eles ia aos meus passeios de notívago impenitente, a que não fazia mossa a fria garoa clássica de S. Paulo.

Poetas foram os primeiros companheiros do meu espírito. Na já referida biblioteca de meu pai, minha segunda fase, depois que passou a preocupação pueril da escolha dos títulos para "minha obra", — minha segunda fase foi de leitura apaixonada de versos. Ali eu encontrei toda a opulenta flora do espírito brasileiro, desde o Gonzaga, da Marilia, até Castro Alves, da Cachoeira de Paulo Afonso. De tantos, porém, Álvares de Azevedo, no verso como na prosa, foi o que mais fecunda impressão me causou.

Minha primeira feição, inteiramente inédita e infantil, foi byroneana.

Por esse tempo meu pai me deu, prêmio de um exame distinto, os três volumes do teatro de Schiller. Depois, no ano seguinte, a esse volumes vieram juntar-se quatro tomos expurgados de uma tradução portuguesa dAs Mil e uma noites. E essas leituras abriram no meu espírito uma perspectiva extraordinariamente brilhante de fantasia e de sonho. Jamais deixei de ler essa obra estupenda, posteriormente, em edições outras que obtive, e ainda hoje a releio, já agora na primorosa tradução direta do árabe e cruamente literal do Dr. Mardrus.

Escrevi então meia dúzia de dramas e romances, cheios de agitação, pavorosos, extraordinários...

Mas, tudo isso passou, e essa feição primeira do meu espírito ficou ignorada para os homens, que nada perderam com isto; tudo passou, e a fisionomia com que me apresentei ao mundo foi o calmo e composto aspecto de um parnasiano.

Se eu pudesse ter continuado a evolução natural de minha tendência literária, teria ficado no terreno da ficção, fundamente romântico na essência, cuidadosamente parnasiano na fatura.

O impulso que eu trazia teve, porém, de se deter ante barreiras cada vez mais temerosas, e que, ai de mim! começaram a surgir desde os meus claros vinte e um anos de idade.

A absorção não foi, entretanto, pacífica: houve tremenda luta entre as correntes opostas. Aos 24 anos, eu já havia escrito um artigo de fundo para o Jornal do Comércio, e em sexta-feira da Paixão, e havia assinado uma sentença de morte, como juiz de direito interino da comarca da Paraíba do Sul.

A luta estava, pois, no mais intenso, quando, por esse tempo, o casamento, satisfazendo-me os impulsos do coração, normalizando-me a vida, criando-me as alegrias tranqüilas do lar, o indefinível gozo da paternidade, completou a obra da conquista.

A lira calou. Le bonheur tue le poète, disse algures Balzac, esse grande conhecedor da comédia do mundo, e em mim o poeta morreu.

Quanto fiz de então para cá é obra do paciente amador de alinhar palavras, e essa mesma feita quando outra cousa de obrigação lhe não disputa os momentos de melhor disposição para o trabalho.

E mais não tenho que lhe dizer, meu caro senhor."