O Sr. Elísio de Carvalho representa por si só uma porção de pequenos movimentos literários, reflexos de pequenas escolas francesas.
A princípio, a propósito da antiga história de um soneto, resolveram jurar que o Sr. Elísio não escrevia nada — mas o Sr. Elísio tem escrito tanto e a respeito de tanta coisa pouco conhecida no Rio que forçoso foi dar-lhe atenção.
O Sr. Elísio de Carvalho conta a história do seu espírito com um prazer evidente. Lê-lo é saber o que fizeram de 1897 para cá os tremendos jovens nefelibatas, hoje socialistas:
I
editarNão sei, na verdade, como contestar vossa primeira pergunta. Não me será fácil assinalar quais os autores que mais influíram na formação da minha mentalidade, porque, no começo da minha carreira literária, li muito, mas muito, e lia tudo quanto vinha da Europa, via Paris, e sobretudo os novos. Era um desespero. Conta-nos a crônica patológica que, ao entrar na puberdade, há meninas que comem carvão e cal das paredes: eu devorava brochuras francesas. Essa leitura contínua, variada, superficialmente, sem método, junto com exercícios enfermos da vontade, atropelou de alguma forma meu sistema nervoso. E o que é interessante é que lia mais para satisfazer minha vaidade de homem lido do que para encontrar um alimento necessário para meu cérebro, destituído de idéias e de sensações estéticas. Sem embargo, essa mania, que logo passou, foi útil: convenci-me de pronto da superfluidade da literatura francesa contemporânea, e imediatamente procurei leituras mais sólidas.
Suponho que não tratais de saber todas as obras que li, senão daquelas que mais acentuadamente contribuíram para minha educação estética e filosófica, que transformaram meu modo de ser, que me abriram novos horizontes e perspectivas novas, que me revelaram novos valores das coisas. As tragédias de Ésquilo e de Sófocles agradaram-me imensamente, como me entusiasmaram muito a História dos Césares, de Suetônio, e o Satiricon, de Petrônio. Li e leio continuamente as máximas de Epiteto, Helvetius, Champfort e La Rochefoucauld. Conheço muito superficialmente a literatura clássica. Zola, escritor que eu detestava e combatia... sem nunca o ter lido, empolgou-me de emoção.
Foi ele quem despertou em mim o desejo de uma arte mais sã, mais humana, mais conforme com a natureza: daí a minha adesão ao movimento naturista que em França iniciara Bouhélier, cujas idéias procurei propagar e defender no Brasil, publicando para isto um manifesto e uma revista. Zola, interpretado pelos naturistas, foi um dos espíritos que mais influíram na minha primeira formação intelectual, mas essa influência não persiste, e creio mesmo que ele hoje não me satisfaz. Prefiro Mirbeau e Anatole France, os mestres admiráveis do romance moderno, ao chefe da escola naturista: nutro por Mirbeau, o autor de tantas obras- primas da literatura revolucionária, uma viva simpatia. Émile Zola foi ainda o meu iniciador nas idéias de reforma social. Os seus romances, principalmente Germinal e Paris, deram-me uma triste idéia da sociedade atual, revelaram-me os crimes e os vícios da burguesia, fizeram-me odiar a política e os políticos profissionais, mostraram-me o sofrimento dos pobres e os tormentos das classes proletárias, vítimas da torpe exploração do homem pelo homem.
Comecei então a ler os escritores socialistas, e principalmente os anarquistas, com quem aprendi verdades que jamais esquecerei e que procuro tornar conhecidas dos homens: que o indivíduo é a medida de todas as coisas; que o homem é ingovernável, é para si sua única realidade, seu fim e seu todo; que todo poder é um absurdo; que a propriedade é um roubo; que o Estado tem seus alicerces no crime e só é mantido pela violência; em suma, que o mundo da iniqüidade e do roubo, onde a desigualdade faz do sofrimento do maior número o poder dos plutocratas e dos dirigentes, será fatalmente substituído por um mundo novo, onde as relações sociais serão fundadas, não mais sobre a rotina e a arbitrariedade, mas de acordo com as leis do viver integral e a dignidade humana, visto como a história marcha para a anarquia — ideal que não é, como pensam os reacionários e os laboradores do obscurantismo, um sonho de loucos, mas um fenômeno que a ciência constata como inato na natureza e uma idéia orgânica no homem, ideal que será a vitoria final da vida no planeta.
Os escritos de Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Mackay, Tucker, Réclus, etc., fizeram de mim um anarquista convicto; e Buchner, Spencer, D'Holbach, Lange, Diderot, etc., converteram-me num ateu profundo. Foi por esse tempo que conheci Marie-Jean Guyau, o luminoso pensador francês, morto em plena primavera da vida, cuja influência moral sobre meu espírito foi profunda e salutar. A sua obra capital, o Esboço duma moral sem obrigação nem sanção, onde nos propõe como princípio ideal a própria vida, "a vida a mais intensiva e a mais extensiva possível sob o ponto de vista físico e mental, a vida total sem mutilação", provocou em meu organismo uma explosão de sensibilidade e suscitou um novo movimento de consciência.
De posse de idéias sociais, preocupado com os grandes problemas que se debatem na sociedade moderna, sabendo das excelências do anarquismo, a única doutrina que oferece possível solução à questão social e a única que satisfaz minha concepção da justiça e meu apetite de eqüidade, desdenhei a literatura propriamente dita, consagrando-me à crítica e ao estudo da sociologia, ciência pela qual cada vez mais me apaixono, não só porque a considero como a base de toda a cultura moderna, como também para assegurar meu futuro e dar satisfação a um pendor que desde muito nutro por este ramo do saber positivo. Senti a necessidade da ação e da luta contra a mentira, a hipocrisia e a iniqüidade reinantes, e lancei-me decidido, cheio de entusiasmo e de esperanças, no movimento revolucionário, freqüentando os centros operários, realizando conferências (as circunstâncias me fizeram orador), fundando periódicos e revistas de propaganda, minha última tentativa tendo sido a Universidade Popular, a primeira que se funda na América do Sul, para empreender a instrução superior e a educação social do proletariado.
Assim se fizeram — minha iniciação e minha educação revolucionária. Explico-vos este movimento, porque creio que influíram muito mais na minha vida do que os livros.
Também influíram na formação do meu espírito: Carlyle, com o seu Culto dos heróis; Emerson, com seus Homens representativos e seus ensaios, em que exalça a personalidade humana; Ruskin, com suas teorias estéticas; Ibsen, com seu industrialismo soberbo; Gener, com as suas sábias idéias indutivas; Gorki, com seu otimismo humano e ardente, e alguns outros. Os ensaios de Carlyle me fizeram pensar durante algum tempo. Refiro-me ao Culto dos heróis e ao Passado e presente, porque o Sartus Resartus, livro vazado no humorismo do formidável João Paulo, não pude até hoje digerir. Todos estes filósofos da vida ascendente, exaltando a individualidade, proclamando o advento de uma humanidade superior em força, em grandeza e em beleza, visto como o progresso existe e as espécies se transformam, afirmando que a vida é o prazer nobre e intenso e que o cristianismo, com seus valores decadentes, falsificou, deformou, corrompeu tudo quanto era terrestre e exaltava a vida, retardando assim por dois mil anos a marcha ascendente da planta humana para o super-homem, deixaram um sulco profundo na história da minha alma.
Foi, porém, o intelecto alemão o que influiu mais profundamente na formação da minha mentalidade. O fenomenalismo do Mundo como vontade e como representação, retificado pela filosofia nietzscheana, e a serenidade de Goethe tornaram mais luminosa a minha visão estética. Foi em Schopenhauer que aprendi que "uma existência feliz é impossível, que o que o homem pode realizar de mais belo é uma existência heróica". Max Stirner, o autor desse livro imortal, único na história do pensamento, que é O Único e sua Propriedade, o código do individualismo e o gerador do anarquismo moderno, livro que a censura achou "absurdo demais para ser perigoso" e que mãos generosas arrancaram do esquecimento para lançar no mar vivo das controvérsias contemporâneas, Max Stirner e Frederico Nietzsche, este com o seu niilismo dionisiano e com seu ideal trágico da vida, são os meus grandes, os meus maiores, os meus verdadeiros educadores, porque me ensinaram bastante a pensar, me induziram a procurar e encontrar meu eu, foram os autores da minha emancipação intelectual.
"Os teus verdadeiros educadores, diz o verbo luminoso de Nietzsche, que são também teus formadores, revelam-te o que é o sentido primitivo e a essência elementar do teu ser, qualquer coisa que não se deixa nem educar nem formar, em todo caso, alguma coisa que é de acesso difícil, que está subjugada e paralisada; teus educadores não seriam capazes de ser para ti senão libertadores."
O que Schopenhauer e Wagner foram para o jovem Nietzsche, quando este não tinha ainda 25 anos, Nietzsche e Stirner foram para mim — maravilhosos educadores. Hoje, fiel à filosofia de Zaratustra, procuro pensar por conta própria, só assimilando dos mestres o que julgo bom; procuro ser eu mesmo, com meus instintos, meus defeitos, meus ódios, minha verdades, meus erros...
Necessito observar-vos que atribuo a influência que os autores citados deixaram em meu intelecto ao meu temperamento, à constituição do meu espírito e à analogia de ideais. Sou um apaixonado, um homem de idéias extremas, um espírito combativo, um energético, um impulsivo, podendo dizer sem exagero que sou um rebelde nato. A minha infância foi uma revolta permanente: no seio da família, contra os preconceitos e a prática de uma moral caduca e despótica; no colégio, contra a disciplina do mestre-escola; no seminário, contra a imoralidade e a hipocrisia ambientes. Ao entrar na academia, sublevou-me o néscio ambiente reacionário que ali dominava, tendo, depois dalgum tempo, abandonado os estudos superiores por escrúpulo de minha consciência anárquica. Estreei na imprensa literária, fundando uma revista iconoclasta, demolidora de velhas fórmulas e de reputações ilegítimas, tentativa que me valeu inimizades e rancores, alguns dos quais ainda hoje perduram. Insubmisso na adolescência, e iconoclasta no começo da minha carreira literária, anarquista insurrecional em 1905, ainda em luta no seio do próprio partido contra o dogmatismo e a intolerância de alguns doutrinários, tenho seguido a evolução natural do meu espírito e me desenvolvido segundo minha própria natureza. Escreveu alhures o mais velho dos Bosny, refutando a alguns críticos que diziam ter Jean Boule (personagem dos Maus Pastores, de Mirbeau) se tornado revolucionário à força de miséria, esta observação que me parece justa: "nasce-se revolucionário como se nasce romanesco ou sentimental e, quaisquer que sejam as circunstâncias felizes ou desgraçadas, fica-se tal qual a natureza nos criou." Bakunin, Blanqui, Rochefort, Kropotkin, Mirbeau e outros justificam a sutil observação de Bosny. Sou, pois, de instinto, um rebelde.
Como vistes, não citei nenhum escritor brasileiro entre os que mais influíram na minha formação literária e isto muito naturalmente, crede com sinceridade, porque não sofri a influência de nenhum deles. O intelecto brasileiro está muito baixo, não tendo ultrapassado ainda as raias da mediocridade, para influir em meu espírito. Os escritores antigos são de tendências tão anticivilizadoras, tão anti-humanitárias e tão antiprogressistas, que, se algo em mim influíram, foi em sentido negativo, provocando repulsão. Os modernos, salvo raríssimas e honrosas exceções, que não passam de verdadeiros "filisteus" e cabotinos, sem cultura, sem ideais e sem sentimentos nobres, embora tenham cotação na cocheira do Senhor — Todo o Mundo — e sejam decorados por uma fábrica de... reputações ilegítimas, inspiram-me nojo, nojo e dor, dor sobretudo. Asseguro-vos que minha alma é muito pouco brasileira; propriamente falando, não sou um escritor brasileiro, não me pareço em cousa alguma com qualquer deles: diz-me Gener que eu sou supernacional e pertenço ao momento intelectual europeu.
II
editarNão sei dizer-vos qual das minhas obras literárias a que prefiro. O que sei que é a obra que representa melhor meus ideais é sempre a última que escrevo, porque procuro fazer da minha vida um evoluir permanente para a beleza e para a perfeição, um contínuo excelsior. Em nosso tempo sempre se é alguma coisa mais do que se foi ontem.
Um dia que passa é um passo vencido na escala da vida. Felizes aqueles que sobem com uma consciência perfeita da ascensão. Por mim, sinto-me avançar, e o meu estímulo e a minha alegria de ser estão na coragem de não me deter senão o tempo, os minutos necessários para tornar-me senhor das estações que vou fazendo.
Sou um eterno descontente, um insaciável, um espírito ávido de sensações novas, cheio duma curiosidade inquieta e de aspirações infinitas; sou como uma sarça de fogo, que tudo procura devorar. Sou um atormentado pelo ideal, nunca satisfeito com o que produzi, mas cheio sempre de entusiasmos e de alegrias pelas obras que sonho realizar, um atormentado por essa vontade, essa necessidade de renovamento, que leva a serpente a mudar constantemente de pele. "A serpente morre quando não pode mudar de pele: do mesmo modo os espíritos a quem se impede de mudar de opiniões deixam de ser espíritos." Viver é mudar, mudar continuamente de ritmo, renovar-se perpetuamente: renovar-se ou morrer, dizia Da Vinci. Goethe escreveu na segunda parte do Fausto: Tudo o que passa não é senão símbolo. E Nietzsche, ao recordar-lhe, disse: Todo o imutável não é mais do que símbolo, e os poetas mentem muito.
Afirma Nietzsche que o conhecimento de si mesmo e, por conseguinte, o descontentamento de si próprio, são a base de toda a cultura, palavras que lembram Pascal quando diz que a dúvida é o fundamento do humano saber. "Vejo acima de mim, escreve o mestre admirável, alguma cousa de mais elevado, de mais humano do que o que sou; auxiliai-me todos a atingir este ideal, como eu viria em auxílio daquele que pensasse comigo e sofresse comigo; isto para que um dia, enfim, nasça de novo o homem que se sente perfeito e infinito na razão como no amor, pela contemplação como pelo poder criador, o homem que, na plenitude do seu ser, viva no seio da natureza, que é o juiz e a medida de todas as coisas." Eu, que tenho a alma alterada de beleza eterna, digo sempre como Descartes: Eu sou uma coisa que aspira incessantemente a alguma coisa de melhor e de maior que não sou.
Não me é possível, portanto, dizer-vos qual, dentre os meus pobres trabalhos, o que prefiro; o mais que poderia fazer era indicar-vos quais aqueles que resumem melhor minhas idéias.
III
editarNão vacilo em afirmar, pois que é de evidência incontestável, que as letras nacionais atravessam presentemente um período estacionário. Explicá-lo não seria fácil em poucas linhas, visto como devem ser muito complexos os fatores de tal situação. Mal se me permitirá que entre esses fatores assinale de passagem, como dos mais eficientes, o estado político em que se encontra a República.
Não passa de uma pura fantasia o propósito de lobrigar no meio dos nossos labores intelectuais qualquer cousa a que se possa atribuir a característica de escola literária, nem mesmo simples intuito de agrupar espíritos, sob distintos pontos de vista. Não há, nem nunca houve, escolas literárias: em arte, há espíritos criadores e espíritos medíocres. A observação que a este respeito fez Remy de Gourmont é verdadeira e interessante. "Há, escreve ele, duas maneiras de pensar: ou aceitar tais quais estão em uso as idéias e as associações de idéias, ou se entregar, por conta própria, a novas associações e, o que é mais raro, a originais associações de idéias. A inteligência capaz de tais esforços é mais ou menos, segundo o grau a abundância e a vaidade de seus dons, uma inteligência criadora."
A arte, pelo menos a verdadeira arte, nada tem de convencional, nem se confina num círculo estreito, de produtos de ofício ou de simples amadores. A obra de arte não se naturaliza em escola alguma. Já vai longe o tempo em que se procurava encerrar em fórmulas estreitas, classificar em escolas, como se rotulam produtos de fábrica, as múltiplas manifestações de arte que, aliás, é una e indivisível. O artista que se sente forte e capaz, consciente do seu valor e da sua missão na terra, não necessita desses entraves morais, que na verdade, são os sistemas e as doutrinas. O legítimo espiritual triunfa sempre; não admite escolas; é indiferente às preocupações de cenáculo; escapa às categorias; despreza as etiquetas e os rótulos. O gênio explui, revela-se exuberante com todos os sinais do tempo, fora de todo dogma e de toda escola. É esta a verdade, que seria preciso repetir sem cessar a todos os moços: não procureis partidos nem escolas, não aceiteis os dogmas que vos impõem propagandistas extenuados de culto, extenuantes e áridos; procurai ser legítimos, porque assim vos aproximais da verdade e, sobretudo, da vida.
O que não se poderia mais negar é que o espírito social invade o nosso meio e, a tal ponto que já se considera como lançados aqui os grandes problemas que agitam o mundo europeu. O problema social, sob suas formas várias e seus múltiplos aspectos, ocupa incontestavelmente um lugar preponderante na vida atual e preocupa profundamente a todos os espíritos, pesa sobre tudo e sobre todos. Tudo nos impele a estudar o grave problema, proveniente deste vergonhoso antagonismo sobre que repousa o regime burguês, para que, constatando as causas que engendram a dor universal, que não reside somente no sofrimento, na miséria física, mas sim na ausência de liberdade, determinemos o remédio eficaz para completa extinção do mal imperante e avassalador. Assim, o mal-estar e o desespero, a fome e a miséria, de que padecem as classes trabalhadoras, fruto da opulência dos parasitas e da ignorância das massas, o espetáculo deprimente da dor e da injustiça humanas, que despertam em todos os corações bem formados o desejo de ver estabelecidos entre os homens os princípios de eqüidade e de justiça, levaram alguns dos nossos artistas a pôr os seus dotes intelectuais ao serviço deste movimento de legítima revolta que, desde muito tempo, vem minando as bases do velho mundo da iniqüidade e do roubo. A arte social, pois, que aliás nada tem que ver com essa pseudo "arte social", que se ensaiou fabricar para o povo, a arte cuja essência verdadeira deve produzir uma emoção estética, profundamente social, já conta entre nós os seus cultores, e não seria difícil indicar algumas obras de mérito indiscutível e consagradas à propaganda do ideal de emancipação humana. A obra de Fábio Luz, esse sugestivo ideólogo, e o romance Regeneração, de Manuel Curvelo, dois belíssimos espíritos de quem temos ainda muito a esperar, para só citar estes dois nomes, revelam muito nitidamente a inspiração do grande ideal libertário, para o qual se dirigem agora todos os grandes espíritos e todos os corações generosos...
Propriamente luta entre antigos e modernos não será lícito afirmar que exista. Há alguns anos, e mais recentemente, há cerca de uns seis anos, houve um certo movimento de reação dos moços contra o que se chamava literatura dos velhos. Entre as revistas que deram sinal dessa reação peço-vos permissão para citar A Meridional e a Revista Naturista, embora essas publicações não tivessem passado, como tantas outras, de meras tentativas, sem resultado algum prático. O movimento que aqui iniciou a Revista Naturista era uma tentativa sincera de uma beleza nova, mais luminosa e mais humana, e que não deixou de impressionar a muitas inteligências.
O naturismo, que era antes uma explosão de sensibilidade do que uma escola literária, não era uma tentativa que se explicava apenas pela diversidade de ponto de vista: era, por assim dizer, uma volta às leis legítimas que regulam a gênese espiritual, uma reconstrução em que se aproveitasse para o edifício novo exatamente o que restava de sólido entre os escombros do velho edifício. O naturismo, que nós proclamamos como a expressão estética do socialismo, isto é, o Estado organizado sobre bases naturais, vinha reconstituir toda a vida estética, colocar a arte moderna sobre novos fundamentos, mais sólidos e mais verídicos. Conduzir os espíritos à natureza fecunda e criadora, colocá-los, elevados e augustos, em presença da Terra, a fim de que dela continuasse a correr a grande vida dos espíritos, — eis a obra que nos propúnhamos realizar...
Não havendo luta de escolas, não se pode senão dizer que a intervenção daquele espírito social, a que acima me referi, e que, posso afirmar, surgiu aqui com o movimento naturista, há de vir a determinar a orientação de toda a nossa intelectualidade. E isto muito naturalmente, porque ninguém mais pode ficar indiferente, deixar de se interessar pelo estudo dos palpitantes problemas contemporâneos, de cuja solução depende o destino da família humana; e, portanto, a questão social vai ser o tema predileto, o leit motif obrigado, o objetivo de todas as nossas locubrações de artista e de cantor. O espírito moderno não concebe a arte, qualquer que seja sua forma, senão social, tendo uma atividade vital e uma função humana. A arte é um apostolado social, e é um apostolado social porque é um sacerdócio da beleza, sendo sua principal missão: restituir à humanidade sua heróica beleza, desembaraçando o homem de todos os prejuízos morais e religiosos, e estabelecer os laços que o unem a terra, formar a consciência universal para produzir a sinergia social — a anarquia.
IV
editarNão acredito que a obra literária que se faz nos Estados venha a criar literatura à parte. Em quase todas as capitais de ordem secundária, o trabalho intelectual é ainda mais escasso do que no Rio de Janeiro, e o que é inegável é que a qualidade de metrópole política assegurará por muito tempo ainda a hegemonia da Capital Federal na esfera literária. É verdade que muitos escritores residentes em vários Estados, onde há mais vida literária, procuram seguir os aspectos e o caráter dos respectivos Estados, dar uma cor particular aos mesmos desejos, aos mesmos ideais comuns a todo um povo, parecendo isto, sob o regime de federação, acusar veleidades de movimentos literários regionais.
Mas, nem S. Paulo, nem Pernambuco, nem Paraná, apresentam elementos capazes de delimitar-se da grande corrente central do Rio.
Não haverá talvez duas opiniões a respeito do último quesito: a imprensa diária, no Brasil, é o mais pernicioso dos fatores entre os que embaraçam presentemente o nosso progresso literário. Há males diretos e males indiretos que devem ser atribuídos ao jornal. Entre os primeiros: ele perverte o estilo, rebaixa a língua e relaxa a cultura. Entre os segundos: corrompe, divide, gera ódios na própria esfera intelectual, suscita o espírito de coterie e mata entre os mais capazes todos os estímulos."
De como se vê que só a idade e as desilusões podem fazer um homem justiceiro...