Tem-se dito da independência do Brasil que foi um desquite amigável entre os reinos unidos. Não há, porém, desquite perfeitamente amigável: precedem-no sempre incompatibilidades, rusgas, desavenças. Pode não ocorrer propriamente violência. Foi o que se deu nesse caso: a separação só teve que arcar com a resistência do general Madeira na Bahia, depressa vencida. O mais consistiu em amuos, ameaças e ajustes de interesses. Sobreviveu, entretanto, um como que ressentimento entre as duas partes que, querendo simular indiferença, de fato caíram num alheiamento, o qual, após durar bastante tempo, se foi progressivamente desvanecendo, já nos nossos dias, para dar lugar a uma cordialidade necessária e possivelmente fecunda.

A independência, tal como se operou, teve aliás o caráter de uma transação entre o elemento nacional mais avançado, que preferiria substituir a velha supremacia portuguesa por um regime republicano segundo o adotado nas outras antigas colônias americanas, por esse tempo emancipadas, e o elemento reacionário, que era o lusitano, contrário a um desfecho equivalente, no seu entender, a uma felonia da primitiva possessão e a um desastre financeiro e econômico da outrora metrópole. A referida transação estabeleceu-se sobre a base da permanência da dinastia de Bragança, personificada no seu rebento capital, a frente de um império constitucional e democrático, cujo soberano se dizia proclamado "pela graça de Deus e pela unânime aclamação dos povos", a um tempo ungido do Senhor e escolhido pela vontade popular.

Impossível seria, chegadas as coisas a certo ponto, continuarem por mais tempo como estavam: disto se achavam plenamente convencidos os que sobre elas meditavam e mais persuadido do que ninguém o próprio Dom João VI. No dédalo das suas hesitações buscava ele a solução mais consentânea com os interesses da monarquia dos seus maiores, que debaixo do seu cetro se ia cindir, o menos positivamente, o mais nominalmente que na sua vontade pudesse ser, afim de que se não perdessem as eventuais recíprocas simpatias e fosse até praticável algum dia a reunião das duas coroas, com a qual Dom Pedro havia de realmente sonhar.

A psicologia do rei não era complicada, mas eram complicados os seus processos psicológicos, porque provinham de vacilações filhas do seu raciocínio inteligente e obedeciam não só a móveis íntimos, que ele tinha o hábito de dissimular, como também a pressões externas que alternadamente com aqueles agiam sobre a sua vontade. "Il a autant de finesse dans l'esprit que de fausseté dans le caractère" - escrevia sobre Dom João VI a Metternich [1] o barão de Sturmer, chegado ao Rio de Janeiro a 23 de dezembro de 1820 e que enxergara depressa e argutamente a situação.

No entender desse diplomata, o conde de Palmela, seu companheiro de viagem pois que, tendo-o encontrado desembarcado em Gibraltar por motivo de desconcerto no paquete que o levava de Lisboa ao Brasil e que ali tivera de arribar, o ministro da Áustria oferecera-lhe transporte a bordo da corveta de guerra Carolina, estivera perdendo seu tempo em querer dizer as verdades ao rei, acerca da revolução constitucional que fermentava em Portugal. O rei só fazia o que lhe convinha, e o que lhe convinha na ocasião era não fazer coisa alguma.

Entretanto, não estava mais nas mãos do monarca o garantir de algum modo a tranqüilidade nacional sem empreender sérias reformas. Os outros tinham também os seus móveis a atuarem como impulsos. A antecipada aprovação, por exemplo, da constituição que as Cortes de Lisboa viessem a elaborar e que teria seguramente por modelo a constituição espanhola de 1812, fora imposta a Dom João VI por agitadores de quartel e de rua que para tanto amotinaram tropa e populaça, em oposição ao projeto mais prudentemente aventado de redigirem no Rio de Janeiro, com destino ao Brasil, uma lei orgânica particular, de acordo com as condições e interesses do reino americano, os procuradores das câmaras da sua capital e cidades de províncias.

À primeira vista traduziu o pronunciamento o despeito dos partidários da metrópole lutando para recuperar seu prestígio: por trás destes havia contudo os republicanos das lojas maçônicas, ansiosos por verem o rei de barra fora porque nele divisavam, e com razão, o principal obstáculo à independência de acordo com os ideais da grande revolução. E tanto os adivinhava Dom João VI, que não partiu afinal sem deixar o filho de sentinela aos acontecimentos, alvitre adotado após uma crise prolongada de dúvidas, pois que seu desejo muito ardente seria ficar em São Cristóvão ainda que Portugal se tornasse constitucional. Um constitucionalismo à distância não humilhava assim tanto e o reino europeu carecia absolutamente do reino americano. O Brasil - acreditava ou antes fingia acreditar o astuto monarca- já se achava afeito ao seu paternalismo: deixá-lo entregue ao herdeiro da Coroa, moço ambicioso e estouvado como ao próprio pai se afigurava, era facultar uma transformação radical como a que se verificou.

Se o regresso de Dom João VI para Portugal, efetuado em abril de 1821, não fora absolutamente do agrado real, tampouco o fora do da maioria dos seus súditos transatlânticos. Apenas embaraçava assaz aos facciosos na execução dos seu planos a presença no país da família real. Os facciosos eram pura e simplesmente em bom número os constitucionais, mas Sturmer não fazia distinção entre eles e os contagiados do mal democrático, adeptos das idéias republicanas "que tout habitant du Nouveau Monde nourrit au fond de son coeur" e que escandalizavam o representante austríaco. O descontentamento era geral antes mesmo da retirada da corte. Além da agitação produzida nos espíritos pelo choque das doutrinas, havia que notar o péssimo efeito por fim causado pela venalidade de homens em evidência e pelos abusos na administração. O príncipe herdeiro, cheio de ardor político, andava de coração com os constitucionais, mesmo porque era a esse tempo Dom Pedro português na alma, da mesma forma que Dom João VI se tornara brasileiro. No dizer de Sturmer [2], "il gémissait de l'abandon ou on laisse le pays qui l'a vu naitre" e chegava a mostrar-se disposto a rebelar-se contra a autoridade paterna, com o fato de assumir uma posição de iniciativa e responsabilidade próprias. A darmos inteiro crédito à versão exarada em semelhante correspondência oficial, precisava até a princesa Leopoldina de empregar seus melhores esforços para conservar o marido no caminho do dever e da honra que competiam ao primeiro dos súditos da monarquia.

Não escapava à perspicácia, que era grande, de Dom João VI, o que se passava no íntimo do filho, e isto contribuía para que mais hesitasse em mandá-lo para Portugal na qualidade de seu lugar-tenente, segundo lhe aconselhavam tantos, no numero o ministro inglês Thornton, ao urgir pela centésima vez o rei a adotar resoluções decisivas que impedissem a dissolução iminente da monarquia portuguesa. Enciumava-o aquilo que Dom Pedro poderia ultimar em Lisboa e redundasse em fama do herdeiro da Coroa, receando também concessões que fossem de natureza a deslustrar o poder real e a ofuscar sua autoridade soberana, da qual era mui cioso.

Tais zelos misturavam-se no seu espírito com o apego que ele nutria pela terra brasileira e que neste caso favorecia a indolência física tão sua característica e tão fácil de agravar, tratando-se de uma travessia prolongada e de uma mudança completa de hábitos adquiridos e de horizontes tornados familiares. Era de ver-se o ar desvanecido (épanoui reza o ofício de Sturmer) com que Dom João VI respondia – "n'est-ce pas, c'est un beau pays?" - à observação tendenciosa do ministro austríaco de que não perdera o rei seu tempo nos treze anos já decorridos da sua residência fluminense, ali fundando "un empire qui sera un jour un des plus florissans de la terre" [3].

Sabia Sturmer perfeitamente, e dizia-o mesmo, ter assim tocado no ponto fraco de Dom João VI, o qual sem demora se pôs a discorrer sobre o porto do Rio de Janeiro, a extensão do novo reino e suas riquezas, com o entusiasmo de um propagandista que fosse bem sincero nas suas convicções. Nem duvidou concluir respondendo afirmativamente e com a maior prontidão à reflexão do diplomata, de que bem percebia a mágoa que ao seu régio interlocutor causaria deixar esse extraordinário país. Com o seu natural desconfiado ajuntou porém logo Dom João VI - comme pour me sonder observava Sturmer na correspondência: - "Entretanto sou europeu, nasci em Lisboa". É claro que o ministro da Áustria não perderia o belo ensejo de replicar-lhe: "Treze anos de novos hábitos e o amor de um povo que tudo deve a V. M. são motivos bastantes para fazerem esquecer Portugal. Não se acha no mesmo caso o príncipe real, que é moço e arde em ambição de servir V. M. em qualquer hemisfério que seja". O rei contudo desconversou ao chegarem as coisas a tal ponto, falando da morte da mãe, do calor excessivo que fazia naquele momento, das suas mazelas e de outros assuntos alheios ao primitivo.



De fato tanto repugnava a Dom João ir como consentir em que fosse Dom Pedro. Ele próprio se iludia - porventura voluntariamente - quanto à gravidade do movimento revolucionário português, e pode ter-se como certo que refletia bem sua opinião o panfleto por essa ocasião clandestinamente editado, na verdade saído do prelo da Imprensa Régia do Rio de Janeiro, advogando a permanência de toda a família real na América. A razão dada era que o Brasil poderia dispensar Portugal, ao passo que a Portugal não era lícito dispensar o Brasil, o qual nenhuma vantagem estava auferindo do estado de união. A partida da família real marcaria o prelúdio da independência do Brasil; muito pelo contrário sua permanência, com a autoridade intacta, assinalaria a fundação ultramarina "de um Império de bastante peso na política do mundo" [4]. A posse do Brasil era a garantia desse Império e o penhor do seu soberano.

O fundo do pensamento real era precisamente esse, e não pouco se orgulhava ele de se não encontrar no Rio, segundo à expressão do folheto, sob a ferula da Inglaterra, como o tinha estado a regência de Lisboa. A expressão ofendeu mesmo o ministro britânico que, ajudado por Arcos e Palmela, obteve a proibição da circulação da brochura, depois todavia que esta correra a cidade e fora expedida para a Europa, à qual se destinava especialmente pois que era em francês.

Para desnortearem a curiosidade pública, seu autor ou autores atribuíram ao folheto paternidade austríaca, dando-o até como escrito por Metternich; mas não era preciso ir procurar tão longe a sua origem. No Rio foi ele considerado obra de João Severiano Maciel da Costa (futuro marquês de Queluz), ou mais verossimilmente de Silvestre Pinheiro Ferreira, que manejava bem a língua francesa [5].

Não menos do que a ferula britânica, queria Dom João VI escapar à ferula revolucionária, que não deixaria de ser-lhe aplicada se o tivessem à mão. As Cortes admitiam um rei, mas um rei-títere, educado na obediência completa e passiva à representação nacional.

Em abril de 1821 publicava-se em Portugal uma contestação ao folheto do Rio, intitulada Considerações sobre a integridade da monarquia portuguesa [6], e na Bahia também logo se publicou um Exame analítico-crítico da solução da questão posta na brochura, contradizendo cada uma das suas proposições. Assim, se o Brasil podia ir buscar melhor alhures os artigos manufaturados e os imigrantes de que carecia, sendo no entanto de esperar que argumentasse extraordinariamente a emigração de Portugal, uma vez reduzido o velho reino à miséria pela separação, melhor faria o novo reino - comentava o autor da resposta - permanecendo unido, a fim de não cair nas garras dos estrangeiros.

O Portugal constitucional ia ter, sonhavam os seus fiéis, fábricas, artes, indústria, com que suprir o consumo brasileiro, e mais justo parecia ficar em casa o lucro enorme derivado pelas nações manufatureiras que ao Brasil vinham buscar as matérias-primas dos seus teares e maquinismos. Os benefícios colhidos pelo país americano de ser, treze anos havia, a sede da monarquia portuguesa, apareciam no fim de contas ilusórios, pois que se cifravam em graças para os favoritos e tributos para os demais - a saber, para o grande número. O regime constitucional português asseguraria, pelo contrário, as franquias necessárias: com ele não se faria mister um divórcio. "A Constituição Portuguesa tem a virtude da Arca Noemítica, hão de habitar à sua sombra diversos caracteres e todos em perfeita paz".

Escrevera o discursista do Rio que a fermentação dos espíritos no Brasil não significava muito, porque o descontentamento se originava em vícios de administração e não incidia propriamente sobre as bases do edifício social, procedendo sobretudo de cidades onde se aglomeravam europeus eivados do morbus revolucionário e não do grosso do país, fundamentalmente distinto. A supressão desses facciosos e a correção dos abusos apontados eram coisas relativamente fáceis e o essencial consistia em preservar-se a realeza envolta em toda sua dignidade. Guardando a plenitude do seu poder; o rei do Brasil e Portugal desempenharia na política que hoje se denominaria mundial o papel importante que lhe reservavam a magnitude do seu Império, a posição geográfica deste e as possibilidades infinitas que comportava.

"A América vai pesar na Balança das Nações com todo o peso do seu imenso e fértil território, da sua população sempre crescente, do vigor, enfim, que acompanha a mocidade dos povos, como a dos indivíduos". Assim se expressava o folheto fluminense e, prosseguindo nas suas considerações, vaticinava que o oceano seria o futuro campo de batalha entre as nações e que, neste caso, grande relevância caberia ao Brasil num conflito geral. Poderia assumir a dinastia a importância correspondente a essa ingente tarefa se continuasse encolhida no seu cantinho europeu, oscilando entre o temor da opressão espanhola e o respeito à palmatória inglesa? Não lhe cumpriria antes, no seu próprio interesse, não abandonar o Brasil, a fim de não perder aquilo que unicamente permitia a Portugal sustentar sua categoria, a saber, a grandeza territorial ultramarina?

No fundo de toda esta argumentação política o que já se divisava era o litígio entre as duas seções da monarquia; os portugueses apregoando a constituição como panacéia para todos os males e dela fazendo manto para restabelecerem seu monopólio, representando o seu constitucionalismo um bom emprego de capital pois que se baseava na recolonização [7]; os brasileiros não querendo abrir mão das vantagens obtidas com a trasladação da corte para o seu seio e encarando mesmo a hipótese de uma separação, no caso de pretenderem privá-los dos benefícios auferidos.

É curioso como, no intuito de vincularem o liberalismo ao passado nacional, os publicistas e políticos de então recordavam a cada instante as imaginárias Cortes de Lamego e as tradições de governo representativo que diziam ser as da realeza lusitana. Porventura com isso intentavam também acalmar os receios de Dom João VI, educado nas tradições do puro absolutismo e temendo, não só atentados contra a sua soberania, mas contra o seu decoro.

Os argumentos históricos, as velhas tradições, assim serviam para responder aos conselhos de permanência no Brasil, ocasionados, quando mais não fosse, pelo propósito de poupar ao soberano do Reino Unido desacatos como os sofridos por Luís XVI, prisioneiro da Assembléia Nacional antes mesmo da Convenção o tornar seu joguete. O rei estava aliás convencido de que no Brasil escaparia à arrogância dos revolucionários e lhes ditaria a lei em vez de receber-lhe a imposição. O citado folhe-to em francês, o qual levava seu antagonista da Bahia a escrever que "nem todos os portugueses têm juízo sólido, nem só os franceses dizem frioleiras", externava portanto o pensamento recôndito do monarca sagaz que apenas pecava pela fraqueza de vontade.



Instado no entanto de muitos lados, fingiu Dom João VI anuir à partida do seu herdeiro, sozinho porém, sem a filhinha de ano e meio e sem a esposa, cujo estado adiantado de gravidez não permitia empreender sem risco uma longa e penosa viagem marítima. A restrição parecia ter por fim levar Dom Pedro a renunciar à partida ou então proporcionar ao rei o penhor de um pronto regresso do filho. "L'état de grossesse avancée ne permettant pas à cette Princesse de s'exposer aux périls d'une longue traversée et aux inquiétudes d'un voyage dont l'on ne peut encore considérer les resultats comme assurés, et la tranquillité do Brésil exigeant qu'un nombre si considerable de membres de la famille royale ne le quitte en méme temps..." - eis como rezava a tradução remetida para Viena do exórdio da circular com que, nos começos de fevereiro de 1821, foi comunicada às legações estrangeiras no Rio de Janeiro a ida iminente do príncipe real no caráter de Condestável, levando por missão restabelecer a ordem e a paz entre os espíritos portugueses.

A melhor prova contudo de que isto não passava do que em linguagem de jogo se chama um bluff está em que logo se alterou a data dessa partida para depois do bom sucesso da princesa; e como o movimento constitucional fosse menos paciente do que a natureza e não esperasse o termo prescrito para arrastar o Brasil na órbita da nova política portuguesa, surgindo a revolução na Bahia e estando a estalar no Rio, um outro decreto, de 22 de fevereiro, pela segunda vez prometeu formalmente o embarque do lugar-tenente real. O paquete de 24 velejou para o velho reino com tão grande e jubilosa novidade, ficando Dom João VI momentaneamente livre das importunações de Palmela e de Thornton, que ambos instavam pela partida de alguém que pudesse ainda sustar o movimento no seu pendor democrático.

Tão pouco disposto se mostrava todavia o rei a respeitar seu compromisso oficial, que pela filha favorita, a princesa Dona Maria Teresa, viúva de Dom Pedro Carlos, infante de Espanha, mandava dizer em sigilo à princesa Dona Leopoldina que se não agoniasse com a idéia da separação do marido porquanto este não iria, apesar da participação pública declarar o contrário [8]. O que em seguida se passou caberia antes no domínio das comédias agitadas, absurdas e hilariantes do repertório do Palais-Royal.

Palmela continuou, é claro, a fazer pressão para que não fosse deixado de honrar o compromisso internacional assumido, mas com toda sua hábil diplomacia só conseguiu ser uma vez mais ludibriado pelo rei. Na frase de Sturmer para Viena, "il fut joué d'une manière cruelle". Já à chegada de Lisboa do seu ministro de estrangeiros e da guerra - cargo de que Palmela viera tomar posse - Dom João VI o persuadira de seu desejo de regressar para Portugal, quando o certo é que não pensava absolutamente naquela ocasião, nem mesmo depois, em retirar-se do Brasil. Sabedor entretanto do prestígio de que gozava Palmela pela sua inteligência fora do comum e serviços importantes prestados no congresso de Viena e em várias missões, quis de algum modo cercá-lo para que não fosse dado ao ministro, com suas idéias mais largas que as dos outros conselheiros, tomar grande autoridade sobre a revolução portuguesa, guiá-la e servir mesmo de intermediário entre o trono e a nação. Com tal fim, segundo se conta, promoveu Palmela, de uma assentada, de major de voluntários a marechal de campo, fazendo destarte maquiavelicamente crer ao público que o ministro se aproveitava da sua situação nos conselhos da Coroa para satisfazer suas próprias ambições, vaidades e conveniências.

Palmela, militar de empréstimo mas diplomata nato, era temperamento de conservador simpático a um liberalismo moderado: por outras palavras era um constitucional da escola a um tempo adiantada e tradicionalista desse Benjamin Constant, com quem ele convivera na intimidade de Madame de Staël. Seu objetivo atingia mais longe do que o campo pessoal, o terreno das instituições, e seu afã voltava-se para não deixar abolir a realeza como daninha ou mesmo inútil, antes assinalar-lhe uma função essencial no novo mundo político, recordando que na Idade Média fora a coroa quem protegera o terceiro estado contra os vexames e iniqüidades da nobreza e do clero.

Ao pisar em terras brasileiras, com o pessoal e os acessórios que o acompanharam, o príncipe regente exclamara sem ambages que nelas viera fundar um novo Império. Dados o cenário e os atores, que espécie de monarquia podia ele porém criar no meio americano? Aquela somente a que com efeito deu origem: uma monarquia híbrida, misto de absolutismo e de democracia; absolutismo dos princípios, temperado geralmente pela brandura e bondade do príncipe, e democracia das maneiras, corrigido o abandono bonacheirão pela altivez instintiva do soberano. Foi esta a espécie de realeza levada ao seu auge, e tomando em consideração a diversidade do meio político e o desenvolvimento do regime representativo, pelo imperador Dom Pedro II, personagem em muitos traços parecida com o avô.

De Dom João VI não se podia esperar impulso diferente. Por um lado crescera o orgulho da aristocracia transplantada da Europa e mais intimamente ligada com a família real, cujos sofrimentos e humilhações compartilhara e de cuja confiança imediata gozava, educada como classe nas máximas do direito divino e machucada na sua vaidade pela atual relativa modéstia de recursos em contraposição com os da gente abastada da terra. Por outro lado a despretensão gerada no intercurso menos cerimonioso e mais direto dos graúdos locais com os vice-reis representantes da suprema autoridade da metrópole, não excluía, quer urbanidade, quer deferência.

Os brasileiros estavam pois inconscientemente mais preparados para uma monarquia constitucional, ao passo que não faltavam entre os portugueses os que por seus sentimentos e interesses tinham que se manter instintivamente aferrados à monarquia absoluta. E na verdade, quando se deu o movimento geral e impetuoso de adesão do reino ultramarino ao programa revolucionário de Lisboa, encarnado legal e ordeiramente nas Cortes de 1820, muitos eram os brasileiros arrastados pela quimera liberal e muitos eram os portugueses instigados pelo ideal da recolonização.

As Cortes de Lisboa ultrapassavam as opiniões políticas de Palmela, mas tinham ainda assim estacado diante da majestade do trono, posto que pensando em reduzi-lo a satélite da soberania popular. Passadas as primeiras efusões, determinadas pela adesão brasileira, que começara sendo uma incógnita, a obsessão da assembléia liberal portuguesa foi reduzir o Reino Unido à anterior condição de metrópole e colônia, isto quando a independência do Brasil, examinada pelo prisma da história e da simples lógica, era um acontecimento fatal.



É natural que o filho chegado à maioridade se emancipe, e sucede entre as nações como entre os indivíduos. A fase de subordinação cessara pela força das circunstâncias; a de igualdade poderia ter-se prolongado um pouco mais, mas também tinha forçosamente de acabar embora houvesse sido sincera a intenção e inteligente o plano do monarca e dos seus conselheiros do momento. A igualdade feria porém o sentimento geral do reino que por três séculos representara o papel de metrópole, com tudo quanto na concepção daqueles tempos encerrava a expressão em matéria de autoridade e de exclusivismo. Havia de por isso chegar, como chegou, o dia em que a mesma igualdade seria iludida no espírito e desvirtuada na prática.

A revolução portuguesa de 1820 foi pois a causa apenas próxima de uma separação que contava muitas causas remotas e obedecera ela própria a diversas razões das quais nenhuma contrariava, antes todas militavam a favor da solução radical, sem ser quase violenta, que o problema político da união veio a receber. Foram sobretudo quatro os motivos determinantes do movimento liberal que implantou o constitucionalismo em Portugal. Em primeiro lugar a miséria do velho reino, refletida não somente no atraso do pagamento de ordenados e soldos - miséria financeira - como no fechamento das fábricas e no abandono da agricultura - miséria econômica -; depois a dupla humilhação da tutela britânica e da primazia brasileira; por fim o contágio espanhol [9].

Às três invasões francesas, sucedendo-se a curto prazo e assolando a Península com o caráter invariavelmente feroz das guerras, juntara-se, como geradora de pobreza para Portugal, a concorrência mercantil inglesa provocada pela abertura dos portos brasileiros em 1808. Esta medida, a um tempo diplomática e econômica, tivera por efeito direto cerrar tão amplo mercado quanto o da América Portuguesa ao monopólio comercial da sua antiga mãe-pátria e indiretamente trouxera a esta os graves males de penúria do erário e de vagabundagem por falta de trabalho. Fácil é de ver que não só o povo sofria de tal situação: dela sofria não menos, pela natureza mesma dos fatos, a burguesia de negociantes e lavradores que foi quem fez a revolução, de mãos dadas com o exército enciumado. O povo por si, desacompanhado de outros elementos, jamais conseguiria levar por diante um empreendimento desse gênero, não só destruidor como construtor. O desespero produz jacqueries, mas, não organiza regimes.

A tutela britânica não era disfarçada, antes bem visível, pois que se achava representada pelo procônsul Beresford, o algoz de Gomes Freire, desempenhando junto à regência o papel que, já antes do franco protetorado de hoje, cabia no Egito a lord Cromer ou a lord Kitchener. Ainda depois da revolução o governo britânico dava como uma das razões para não querer intervir nos negócios de Portugal, o que era um meio de deles afastar a Santa Aliança, o azedume que ficara no exército nacional, produzido pela subalternação dos seus oficiais aos oficiais estrangeiros, quais eram os ingleses, durante e após a campanha peninsular contra Napoleão.

Ao passo entretanto que Portugal andava assim humilhado na sua mais briosa instituição, dava o rei mostras inequívocas de não querer mais regressar do Brasil, transformando quiçá de direito, como de fato já o era, a antiga colônia em sede da monarquia. No Campeão, que se publicava em Londres, considerava-se assente que Dom João VI, nem queria voltar, nem repartir sua autoridade.

O exemplo da Espanha não podia deixar de ser imitado no país vizinho, onde as condições reclamavam as mesmas reformas. Desde poucos anos que no Porto se organizara uma sociedade secreta sob o nome de Sinédrio, cujo fito era fazer vingar em Portugal os princípios do governo representativo. É natural que esta associação [10] tivesse ligações com agremiações congêneres da Espanha. O certo é que a revolução de Cadiz ocorreu a 7 de março e a 24 de agosto do mesmo ano a do Porto. Nenhuma delas visava a estabelecer um regime republicano: não o toleraria o resto da Europa, entregue à reação. Visavam porém ambas a reduzir quanto possível as prerrogativas da realeza e a firmar a preponderância da nação. A regência portuguesa, organizada a 30 de janeiro de 1821 para exercer o executivo em nome do rei ausente, tinha um caráter conservador e mesmo tradicional, compondo-se de cinco membros com outros tantos secretários de Estado. Esses cinco membros foram tirados, dois da nobreza (o marquês de Castelo Melhor e o conde de Sampaio), um do clero (o patriarca frei Francisco de S. Luiz, também conhecido como cardeal Saraiva) e dois da burguesia (José da Silva Carvalho e João da Cunha Souto-Maior).

O egoísmo não desampara contudo as manifestações políticas, nem sequer as que proclamam guiar-se por máximas liberais. Os manes das vítimas portuguesas de 1817 reclamavam um sacrifício expiatório, mas o fito essencial do movimento de 1820 foi, à sombra do constitucionalismo, exaltar o reino europeu e deprimir o reino americano que além-mar se estendia numa vastidão colossal, vaidoso dos seus recursos e desejoso de aproveitá-los para seu único desenvolvimento, no benefício da sua própria população.

A América Inglesa estava livre, afora as ilhas do mar do Caribe, a Guiana equatorial e o domínio gelado do Canadá; igualmente em vésperas de tornar definitiva sua independência a América Espanhola, exceção feita das Antilhas que Os Estados Unidos não consentiram que fossem libertadas pelo esforço conjugado do México e da Colômbia, de medo que lhes escapasse para sempre aquilo sobre que já cobiçavam estender seu domínio. Por que não se havia de tornar livre o Brasil, que era um mundo e que acabava de dar seguro e honroso asilo por treze anos, à dinastia deposta por Napoleão? Quem tinha condições para tanto, tinha também condições para por si se governar, para assumir as responsabilidades do seu destino.

Apenas entre os homens públicos ou melhor dito, que iam surgindo para a vida pública, reinava, nos que melhor conheciam o meio europeu, o temor de incorrer nas iras da Santa Aliança com uma ofensa direta e grave ao princípio de legitimidade que ela fizera seu. Por isso Barbacena escreveria de Londres, quando ainda era Felisberto Caldeira Brant, a José Bonifácio, que o papel do príncipe regente estava traçado: convocar Cortes no Rio de Janeiro, retirando de Lisboa os deputados brasileiros; declarar seu pai em estado de coação e usurpadoras as Cortes de Lisboa, cujos atos deviam ser declarados nulos antes de eleita uma nova assembléia; finalmente entrar em relações diretas com os soberanos europeus.

O primeiro objeto dos trabalhos desse parlamento ultramarino seria a constituição do Brasil. "Nada há mais fácil, escrevia o futuro marquês de Barbacena numa afirmação instintiva de pan-americanismo; a Constituição Americana com palavras, e fórmulas monárquicas de quanto nos convém. Quando o rei estiver em Portugal o futuro sucessor estará no Brasil, e vice-versa" [11].

O que convinha a Portugal na situação criada era evitar os atritos e não provocá-los, proceder com magnanimidade e não com intolerância. Ora as Cortes foram levadas pela corrente de opinião apaixonada que as governava, e depois de uma curta fase de expansão que se pode crer sincera porque era uma explosão do liberalismo, primaram em demonstrar nas suas relações com o Brasil falta absoluta de tino e de previsão. Sua política consistiu em jogar com os ideais de liberdade com vista em recolonizar o Brasil, apesar do antagonismo dessas atitudes e como se a liberdade não devesse ser a mesma em qualquer latitude e sob qualquer céu na órbita da civilização.

Imaginar que o reino americano, pelo fato de ficar dispondo de representação parlamentar em Lisboa, abandonaria seus interesses mais vitais e renunciaria a privilégios que o soberano lhe facultara durante sua estada e que o punham no mesmo nível do reino europeu, era um plano por fim de contas infantil e digno tão somente da ingenuidade democrática que acima dos interesses colocava os princípios. De que serviriam os direitos do homem e o que significariam as garantias do cidadão, uns e outras exaradas num texto constitucional destinado a cercear os atributos da soberania real, se as novas prerrogativas avocadas pela nação ficavam quase todas aquém do oceano e apenas se concedia além-mar um simulacro de autonomia?

A constituição de Cadiz, de 1812, que a junta governativa de Lisboa fora compelida a aceitar provisoriamente por um novo pronunciamento militar e civil, poderia ser um fetiche para os espíritos abertos à doutrina da soberania popular, mas não assegurava afinal no Estado ultramarino aquilo que já passara a ser, expressa ou latente, sua aspiração comum e formava a base do seu desenvolvimento no porvir - a independência. E sem esta seriam falazes quaisquer seguranças constitucionais, vindas da antiga metrópole.

O papel das Cortes foi lógico quando de começo fomentou indiretamente a desunião do Brasil, privando este do seu centro natural de atração, que era a capital consagrada por Dom João VI, mediante o estabelecimento de ligações diretas com cada uma das capitanias, agora províncias, como ocorria nos tempos coloniais. Seu fito devia entretanto ser todo robustecer e consolidar o triunfo da sua obra política, e esta não só perigaria como soçobraria, caso o Brasil afrouxasse. Seu erro foi não compreender que seria impossível restaurar e combinar com a nova ordem de coisas a antiga fórmula de subordinação, e que o Brasil continuaria monarquia ou passaria a república dependendo da permanência ou não do príncipe regente, sendo porém inevitável a separação. O barão Wenzel de Mareschal, que ficou como encarregado de negócios da Áustria com a partida do barão de Sturmer - acompanhando os ministros estrangeiros o rei para Lisboa -, escrevia para Viena [12] que se Dom Pedro partisse, todos os brasileiros se apegariam à solução republicana.

O tratamento a seguir era portanto o brando, não o drástico. A ignorância mal desculpava o segundo, porque país algum que uma vez gozou dos foros da soberania se resigna de bom grado a abdicá-la. Este era o caso do Brasil, que a mudança da corte convertera em nação e não se resignaria a voltar a ser uma dependência, menos ainda um mosaico de colônias. As Cortes entenderam porém legislar para um país autônomo e praticamente independente como se se tratasse, na frase da escritora inglesa Mrs. Graham, cujo marido comandava a fragata de guerra Doris estacionada na baia do Rio de Janeiro, de um presídio nas costas da África selvagem.

O regime das juntas locais foi o instrumento de aplicação dessa política que tão mal avisada resultou, mas que constituíra no princípio a única a seguir, contanto que se tivesse prolongado no mesmo espírito de concordância. O ministro Tomás Antônio tinha razão quando dizia, num dos seus pareceres ao monarca, que "bem se via que a maior ânsia dos revolucionários era incendiar o Brasil; porque, se ele se separa e rompe a comunicação, Portugal tem de cair".

O Brasil pronto aderiu ao movimento constitucional português como o meio mais fácil e mais natural, conscientemente para uns, instintivamente para o maior número, de chegar ao fito supremo. O rastilho de pólvora estendia-se de norte a sul e bastou que no Pará se acendesse a mecha, para que as explosões se fossem sucedendo. O impulso era para perfilhar tudo quanto fosse liberdade. As províncias brasileiras emancipando-se porém da sua velha sujeição, transferiam ipso facto para Lisboa, de onde raiara o sol da liberdade, o seu vínculo de lealdade. No jogo revolucionário que se travara numa partida angustiosa, o Brasil, numa feliz expressão ([13], serviu de trunfo para vencer a resistência real.

Vencendo esta resistência, servia-se na verdade a causa da união dentro da esfera constitucional, mas não é menos verdade que o Brasil não voltaria a ser, sob outro aspecto muito embora e como se fazia fé em Portugal, cuja revolução parecia vingar em todos os seus intuitos com a adesão brasileira, a salvação econômica prestada a troco de uma fantasmagoria política.

Nem constituiria o Brasil o mais sério dos amparos para a eventualidade, sempre possível, de uma intervenção da Santa Aliança, da qual Portugal até então se livrara, tanto pela reserva que punham as potências maiores em interferir com um país protegido pela Grã-Bretanha, sua virtual dependência política [14], quanto pela prudência e tino do rei, infenso "a chamar forças externas para sossegar as desordens internas", passo sempre arriscado e conducente a "desvarios a que a desesperação pode arrastar". A Vilafrancada, que foi a reação nacional personificada no infante Dom Miguel, manejado pela rainha Dona Carlota, viria no momento psicológico varrer as Cortes e derrubar a sua obra, mais tarde reconstruída.



A seqüência dos acontecimentos políticos entre a partida do rei e a proclamação do império torna-se em certo sentido mais compreensível observada à luz dos sucessos hispano-americanos, sobretudo platinos, e ainda o seria melhor, examinada na penumbra das sociedades secretas. As lojas maçônicas desde 1812 pelo menos que funcionavam na América do Sul e a denominada Lautaro, de Buenos Aires, a qual, adotando o nome de um herói araucano, só por isso dava a entender suas ligações com a costa do Pacífico, desenvolveu notória e fecunda atividade na perseguição do seu ideal, que era a independência com a república. O fito comum tornava irmãos todos os revoltosos da América sujeita à Europa e o laço que os prendia era o juramento de não reconhecerem outro governo legítimo senão o "eleito pela livre e espontânea vontade dos povos".

É inquestionável, posto que desconheçamos os pormenores, que lojas do Brasil e do Rio da Prata estavam então em comunicação e Rivadavia, numa das suas cartas editadas pelo Sr. Júlio Peña, erudito de Buenos Aires, diz ter tratado com Domingos José Martins pouco antes da revolução de 1817, na passagem do argentino para a Europa.

A junta de 20 de maio de 1810, conseqüência de alguns anos de agitação política que um historiador argentino chama orgânica, já fora segundo este mesmo historiador [15] o resultado de um acordo tácito entre as diversas facções que na capital do vice-reinado encarnavam as tendências de diversa finalidade. A imposição da junta pelo povo ou antes por alguns indivíduos em nome do povo, fez-se de viva voz: a representação escrita foi apresentada muito mais tarde, no mesmo dia. Também a representação do senado fluminense de que resultou o célebre Fico, traduziu um acordo entre facções que pautavam seus esforços por orientações distintas.

Em Buenos Aires ampliou-se a breve trecho a fórmula constitucional para dar nela entrada às forças políticas do interior, que sem isso logo se dispersariam. Entre nós foi mister empregar habilidade e nervo para atrair a um movimento harmônico as juntas provinciais que, entregues a si, seguiriam rotas separadas. A coroa atuava porém como um ímã muito mais forte do que qualquer outro prestígio, e a União tinha de brotar da implantação da monarquia ou antes da transformação liberal dessa instituição tradicional, como brotaria a desunião dos constantes atropelos constitucionais das Províncias Unidas, agrupadas pelo pacto do estatuto de 1816.

Mariano Moreno representara a tendência centrípeta que Rivadavia prolongaria; Artigas a tendência centrífuga que o federalismo manteria, em todo caso englobando aquele uruguaio no seu sistema os territórios ou províncias do litoral e contíguas Entre Rios, Corrientes, Santa Fé e até Córdova. No Brasil, em 1821, um observador estrangeiro como Mareschal notava que não havia entre as províncias unanimidade, nem sequer tendências comuns. Assim a junta organizada em Minas Gerais começou por ser oposta à regência e de fato independente, tratando com a de São Paulo de potência a potência, fazendo lembrar o Paraguai com relação à sede do vice-reinado. O diplomata austríaco opinava mesmo na sua correspondência pela transferência do governo central do Brasil para Minas, por causa do ciúme que a capitania interior nutria do Rio de Janeiro. Quanto a Pernambuco, escrevia ele que mostrara sempre um espírito de independência republicana.

A felicidade do Brasil foi não haver naufragado o princípio da autoridade e ir a nau do Estado, revelando maior capacidade de resistência à medida que ia deixando atrás de si os escolhos que a ameaçavam. Logo depois se daria entre nós o mesmo antagonismo entre a convocação de uma assembléia constituinte que engendrasse uma lei orgânica, corrente que em Buenos Aires personificava San Martin, e a instalação de uma ditadura, que lá personificava Alvear. Apenas o conflito no Brasil era muito menos cru e a divergência se disfarçava muito melhor.

A razão da segunda corrente argentina estava, não só em que as juntas de governo não expressavam com bastante plenitude a soberania nacional, como em que as Vistas de muitos andavam voltadas para a reconstituição da unidade hispano-americana sobre bases liberais, com uma monarquia limitada pela autonomia das suas partes integrantes, segundo a que fora concedida de jure ao Brasil em 1816. O carlotismo, como chamam escritores platinos aos esforços de Dona Carlota Joaquina para assumir a direção dos domínios americanos de seu irmão Fernando VII, era uma modalidade desta última tendência, que a restauração do soberano deposto por Napoleão e cativo desde então em Valença, não podia bafejar.

Não obstante ser militar de carreira, foi sempre San Martin muito mais adepto da doutrina constitucional do que muitos civis, da mesma forma que no Brasil ninguém amou mais romanticamente as liberdades políticas do que Dom Pedro, ainda que temperamento e educação freqüentemente o levassem a desprezá-las. A vantagem manifesta do Brasil foi que adotando a solução monárquica, não procurou nem governante nem regime político alheio às suas tradições: apenas adaptou a monarquia aos novos princípios, tornando-a não só constitucional, como democrática.

Mercê da trasladação da corte e dos benefícios resultantes da sua fixação no Rio de Janeiro, o sentimento público, pelo menos o fluminense, não criara incompatibilidades com a realeza. Pugnando pelos direitos políticos do cidadão, a opinião admitia contudo tal instituição acima dos partidos e das classes.

Foi também uma fortuna para o novo Brasil, independente e unido, que se houvesse fragmentado o vice-reinado do Prata, porque diante do seu território dividido politicamente e do seu meio físico dispersivo, ele teria sido levado a agir como um instrumento de destruição. O Uruguai, prolongamento do Rio Grande do Sul e onde, na opinião de alguns, devia ter sido a capital, achava-se nessa ocasião nas mãos dos portugueses; mas não o estava o Paraguai, prolongamento meridional do Mato Grosso, como o denominou Eliseu Reclus, que daria grande trabalho ao Brasil quando uma vez se organizasse em estado guerreiro, núcleo de resistência a absorções e agente de desagregação do Império.

O Brasil colonial fora expansivo, como o provam os tratados; de 1750 e de 1777 legitimando suas incorporações: o obstáculo agora deparado podia converter-se numa força que atraísse Mato Grosso e Rio Grande do Sul para a bacia platina. A posse do Uruguai trazia consigo porém a clausura política do estuário e com ela uma dupla volta de chave à porta mercantil das províncias litorais, desde Colônia até Corrientes [16]. Convém não esquecer que Montevidéu fora o baluarte destinado a contrapor-se às tentativas de consolidação e de irradiação dos portugueses instalados na Colônia do Sacramento.

Ocupada a Banda Oriental pelas armas do pacífico Dom João VI, ao Brasil-reino abria-se uma carreira de conquista, mesmo involuntária, sem todavia possuir, nem as forças, nem os recursos, nem mesmo o espírito do conquistador militar. Faltava outrossim, à América Portuguesa como à Espanhola, a autoridade de uma classe dirigente educada e preparada para as altas funções políticas, da qual no entanto emergiram capacidades que se distinguiram, e até personalidades excepcionais, que modelaram as novas nações com a intuição fulgurante de Bolívar e com o entusiasmo entre estouvado e perspicaz de Dom Pedro, completado pelo patriotismo entre ardente e refletido de José Bonifácio, cujo principal mérito foi enxergar mais longe e sentir mais fundo do que a sua pequena pátria paulista.

Notas editar

  1. Ofício ostensivo de 29 de janeiro de 1821, no Hof und Staat Archiv de Viena (Correspondência do Brasil). O barão de Sturmer não desejara, de começo, por causa do estado de saúde de sua esposa, abalançar-se a uma tão longa viagem de mar. Tendo-se porém dado uma notável melhoria na doente, solicitou o posto do Rio de preferência ao dos Estados Unidos, e tão agradável foi sua primeira impressão que não se arrependeu da escolha. "Tout me presage une existence heureuse dans ce pays, escrevia ao Príncipe de Metternich três dias depois de chegado. La nature y est soperbe et au dessus de tout ce que j’avais imaginé. On ne peut rien voir de plus magnifique que l'entrée du port, et la campagne que nous habitons est delicieuse. Ma femme en est eochantée..." A correspondência diplomática é toda em francês: os relatórios econômicos anexos são porém em alemão.
  2. Ofício cifrado de 29 de janeiro de 1821.
  3. Conversação ocorrida na noite de 24 de janeiro e logo relatada ipsis verbis para Viena.
  4. Porto Seguro, História da Independência,
  5. Varnhagen não está longe de supor que fosse isto verdade, não sendo mais que um testa de ferro o francês Caille, que na correspondência de Tomás Antônio Vila Nova Portugal aparece como o autor do escrito, mandado imprimir por ordem de Tomás Antônio e conta do Erário. João Severiano não retorquiu quando no Malagueta foi acusado de tal autoria e é positivo que ele andava então "mui chegado aos conselhos do rei e do dito Tomás Antônio". (Porto Seguro, História da Independência).
  6. Saiu anônima, mas lnocêncio (Dicionário bibliográfico) diz ter sido seu autor o Dr. Soares Franco, médico e deputado às Cortes.
  7. Os negociantes de Lisboa e Porto têm lançado, diz-se, nos cofres do Estado dinheiro para ocorrer as suas necessidades".
  8. Ofício de Sturmer a Metternich de 3 de março, no Hof und Staat Archiv de Viena. É muito natural que a princesa real tivesse relatado o fato ao representante do seu país de nascimento.
  9. O relatório apresentado às cortes constituintes pelo deputado Manuel Fernandes Tomás, um dos corifeus da revolução, descreve com cores vivas o grau de indigência a que chegara Portugal, e suas informações são plenamente confirmadas por depoimentos insuspeitos como o do cônsul geral de França, de Lesseps.
  10. Principiou em 22 de janeiro de 1818 com Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges, José da Silva carvalho e João Ferreira Viana, segundo a declaração feita em cortes por Ferreira Borges (sessão de 8 de agosto de 1821).
  11. Carta de 1.º de maio de 1822, nas Publicações do Arquivo Público Nacional. Tomo VI.
  12. Ofício de 22 de janeiro de 1822.
  13. De Viveiros de Castro, Memória apresentado ao Congresso de História Nacional de 1914.
  14. Antônio de Saldanha da Gama, depois conde de Porto Santo, que pelejara no congresso de Laybach por orna intervenção reacionária em Portugal, escrevia que a Santa Aliança receava que a Grã-Bretanha julgasse tal intervenção um ataque feito à sua propriedade.
  15. Diogo Luís Molinari. El Gobierno de los Pueblos, Introduccion a la edicion facsimilar de "El Redactor del Congresso Nacional", Buenos Aires, 1916.
  16. Carlos Pereira, Francisco Solano Lopez y la Guerra del Poraguay, Madri, 1919.