Restava ainda ao príncipe, para consolidar sua decisão, emancipar-se da verdadeira tutela que sobre ele pesava, senão em contínua operação, pelo menos sempre latente e prestes a manifestar-se ao primeiro sinal de vontade própria. A 4 de outubro fora a comissão militar que desde 5 de junho exercia o governo das armas sob a forma de triunvirato, que reclamara e exigira do regente "uma declaração pública pela imprensa, em que, da maneira que mais for do seu agrado, faça conhecer a segurança de seus sentimentos à causa da nossa constituição política, e a bem fundada confiança que tem na tropa desta guarnição; protestando proceder sem a mais pequena condescendência contra todo aquele que for convencido de perturbador do sistema constitucional, cujas bases, solenemente juradas, há de manter inviolavelmente, enquanto por novas leis as Cortes Gerais e Extraordinárias do Reino não mandarem o contrário" [1]. Foi desta intimação que procedeu a conhecida e empolada proclamação daquela data.

Agora outra tentativa para impor as ordens das Cortes: esta porém foi mal sucedida. Diante da desobediência de Dom Pedro, apregoada aos quatro ventos pela sua sucinta resposta ao senado da câmara, Jorge de Avilez fez constar entre os soldados da divisão auxiliadora que, com grande sentimento próprio, estava demitido do governo das armas desde o dia 10. Na tarde de 11 visitou ele os quartéis, sendo aclamado como "o general constitucional".

Melo Moraes pretende que não se tratara ainda de demissão e que Jorge de Avilez quis apenas especular com isso para acirrar sua gente. Porto Seguro supõe que ele deu demissão a 12 do governo das armas, continuando porém no comando da divisão. Cairu escreve que foi de 12 a abolição do triunvirato, com a conseqüente destituição de Avilez. A expressão do príncipe é pois verdadeira na sua carta ao pai de 23 de janeiro: a 11 o general "não estava demitido".

Havia no entanto alguma coisa de mudado e profundamente mudado. Era uma nova orientação política que se desenhava: a proclamação ulterior de 1.º de fevereiro a refletiria dizendo que, "recrescendo novas e imperiosas circunstâncias, era do dever da autoridade suprema mudar de resolução e tomar novas medidas". Afirmou-se essa orientação na escolha, nas noites de 9 e 10 de janeiro, de destacamentos nacionais para formarem a guarda de honra no teatro de São João, ponto de reunião obrigatório da corte, que ia ser crismado em São Pedro de Alcântara e que se transformara no cenário das expansões, primeiro constitucionais e depois independentes.

Não estando ainda no seu papel ostentar preferências, quis o príncipe por tal motivo dar uma espécie de satisfação aos regimentos portugueses e mandou buscar entre eles a guarda de honra para a noite de 11; mas, ao que parece, experimentou a desfeita de uma recusa geral. Mrs. Graham, espectadora e cronista destes sucessos, não dá o fato como autêntico, julgando-o contudo provável, em vista das circunstâncias. A sedição fervia e rompeu nessa mesma noite, quando grupos de 20 e 30 soldados portugueses, armados de cacetes, percorreram as ruas quebrando vidraças, insultando os transeuntes e praticando outros que tais desacatos contra as casas decoradas de luminárias pelo motivo do Fico, aos gritos de: "esta cabrada leva-se a pau [2].

A notícia chegou ao teatro, onde Dom Pedro logo notara a ausência de Jorge de Avilez do camarote de que era freqüentador o mais assíduo. Os espectadores em confusão dispuseram-se a recolher-se, detendo-os todavia a palavra tranqüilizadora de Dom Pedro que da tribuna real falou ao público, anunciando ter já tomado as providências necessárias para restabelecer a ordem, as quais tinham sido chamar o brigadeiro Carretti, imediato de Avilez, e mandá-lo reprimir os amotinadores. Estes foram induzidos a voltar para os quartéis, podendo portanto recomeçar o trânsito das ruas em segurança e parecendo, graças à presença de espírito do príncipe e à calma que a mesma insuflou em alguns oficiais, ter a cidade volvido à sua anterior normalidade.

Urdira-se porém coisa pior, proveniente diretamente de um incidente vulgar de embriaguez, ao qual igualmente se refere a citada carta do príncipe. No saguão do teatro o tenente-coronel José Maria da Costa, do regimento 11 da Divisão, altercou com o tenente-coronel José Joaquim de Lima e Silva, do 30 da corte, sobre a política do dia, e o oficial português, que estava "espiritualizado" na expressão da relação publicada por Melo Moraes, jurou ao outro que o Brasil continuaria escravo de Portugal e que o príncipe embarcaria, mesmo que para isto tivesse sua espada de servir-lhe de prancha. Na excitação da briga saíram os dois para o largo e Lima e Silva, voltando para o teatro, contou o ocorrido a vários camaradas dos quais um, o cirurgião ajudante Soares de Meireles, acompanhou o tenente-coronel José Maria até conhecer que havia um plano de insubordinação e ver mesmo, à sua voz, a Divisão começar a pegar em armas e formar no largo do Moura.

Deu-se então Meirelles pressa em vir informar o ministro da guerra, que por sua vez informou o príncipe, ambos ainda na função. Dom Pedro retirou-se para São Cristovão, dando porém ordens para que as forças de 1.ª e 2.ª linha da corte se preparassem para qualquer eventualidade. De fato o motim, longe de arrefecer, agravara-se: 700 soldados tinham marchado com quatro peças de artilharia para o morro do Castelo, donde ameaçavam varrer à metralha a população a seus pés para depois saquear-lhe as casas.

A guarnição portuguesa da Quinta da Boa Vista, composta de caçadores 3 - uns 500 homens no cálculo de Mrs. Graham - não tinha feito causa comum com os companheiros, declarando que lhes havia sido confiada a defesa do príncipe. Melo Moraes atribui sua atitude a um ardil: o projeto da Divisão era, segundo ele, embarcar o príncipe à força na fragata União e mais fácil se tornaria a empresa conservando a postos aquela guarda fiel. O que parece mais exato é que sua neutralidade foi efeito de anuência a um pedido pessoal do regente, que lhes falou nos seus deveres de lealdade e não se esqueceu provavelmente de distribuir algumas recompensas. Esses caçadores pediram depois para partilhar da sorte dos seus patrícios, mas dos seus oficiais se valeu antes Dom Pedro, como intermediários, para evitar um conflito cujas conseqüências se não podiam prever.

Não só o príncipe deu nessa crise mostras de capacidade executiva, como os nacionais não esmoreceram um instante na atividade que exibiram. Além dos soldados, artífices de caserna, obreiros do arsenal e policiais, afluíram simples paisanos a armar-se no quartel do campo de Sant'Anna, assumindo o seu comando, apesar de estar com dores reumáticas, trazendo as pernas envoltas em baetas, o ajudante general Oliveira Álvares, que era aliás madeirense e a quem muito ajudou nessas circunstâncias o coronel Luís Pereira da Nóbrega.

Ordem fora dada para que no campo se congregassem todos os cavalos e muares que fosse possível encontrar na capital. Na madrugada de 12 já nada menos de 4.000 homens ali se achavam reunidos, dispondo de animais e prontos para a ação. Nas palavras de Mrs. Graham, se eram deficientes em matéria de disciplina profissional, eram formidáveis pelo número e pela determinação de que se achavam possuídos. O velho general Joaquim Xavier Curado, o decano dos oficiais superiores brasileiros, veterano das campanhas do sul e no império conde de São João das Duas Barras, foi aclamado no acampamento governador das armas da cidade e província do Rio de Janeiro, que lhe dava como que a interinidade da pasta da guerra, a cujo expediente o titular dela se esquivara.

O príncipe tinha diante dos olhos a guarnição dividida em dois campos hostis, mas afetava não tomar partido entre portugueses e brasileiros. Mandou indagar de uns e outros porque se achavam assim armados e municiados e só alcançou a madrugada de 12 foi o general Jorge de Avilez a palácio propor ao regente o recolhimento recíproco das tropas em armas, recebendo porém como resposta do príncipe que, se as forças portuguesas lhe desobedecessem, "as poria a elas e a ele barra a fora [3].

Dom Pedro, falando com esta arrogância, ainda não podia calcular que as forças respectivas iam cada vez mais distanciar-se em número, crescendo, segundo Porto Seguro, a 2.000 homens no morro do Castelo e 10.000 no campo de Sant'Anna [4], com algumas peças de artilharia, ardilosamente transportadas por oficiais e praças de coragem. Nem estava pelo menos de si para si tão seguro dos resultados que não tivesse, feito nessa mesma madrugada de 12 partir para a fazenda de Santa Cruz, a doze léguas da capital, a esposa e as crianças, ficando ele indeciso entre ir juntar-se à familia [5] ou resistir a qualquer agressão.

Vira-se de um momento para outro desamparado de seus conselheiros: Mareschal escrevia para Viena que "abandonado do modo mais vergonhoso" pela nobreza e pelos políticos ocupando altos cargos, todos do partido europeu. Os fidalgos portugueses temiam um desforço das Cortes de Lisboa nos bens que possuíam em Portugal.

Segundo escreve Melo Moraes, antes do 9 de janeiro o regente propusera em conselho a questão da execução dos decretos de 29 de setembro, fazendo ver o perigo que representava para a monarquia no Brasil o cumprimento dos mesmos, dada a desconfiança que já entrara a lavrar intensamente. Os ministros votaram porém em sentido contrário ao juízo do regente, menos Farinha (futuro conde de Souzel). O desembargador Vieira, ministro do reino o dos negócios estrangeiros, assim votou oficialmente, declarando contudo a Dom Pedro, após a reunião, que seu parecer como particular era que o príncipe ficasse. Perguntando-lhe então este se ficaria nesse caso ele também, respondeu que não, porquanto o cargo de ministro que ocupava "o privava dessa honra e dessa conveniência" [6]. Escusado é dizer que um homem tão respeitador da integridade faleceu pobríssimo. O ministro da Fazenda Louzã foi também instado para ficar por causa da sua probidade, mas também preferiu partir.

No risco de perder a partida em que se empenhara e antes da exuberância do movimento popular fazer pender a balança para o lado nacional, Dom Pedro achou também avisado preparar para si e os seus um asilo a bordo da fragata inglesa Dons. Conta Mrs. Graham, mulher do comandante, que pessoas ricas para lá mandaram por segurança seus objetos de valor e que ela aprontou seu beliche para receber a família real, no caso desta procurar refúgio, como fora formulada a hipótese. A autora refere que o recado veio sem que ela soubesse a fonte: "A message, I do not know on what authority, arrived to know if the Prince and Princess, and family, could be received and protected on board". O encarregado de negócios da Áustria confirma na sua correspondência oficial que o regente "a été jusqu'à faire d'une demarche hier (12 de janeiro) d'une manière indirecte au commandant de la frégate anglaise la Doris...; preuve combien il est encore peu décidé".

Era realmente preciso que a situação fosse cheia de incertezas para que Dom Pedro, que pelo menos nunca foi homem propenso a fugir ao perigo, e também Dona Leopoldina, que por sua vez sempre se mostrou tão animosa quanto interessada no destino soberano do país aonde a conduzira sua sorte, pensassem na retirada. O Sr. Alberto Rangel, paladino da marquesa de Santos, acha que foi até a carência de feminilidade da arquiduquesa, a qual era entretanto uma sentimental [7], o que mais concorreu para trazer Dom Pedro por tanto tempo enfeitiçado pelos encantos da sua Domitila.

Era aliás natural que naquela emergência o augusto casal não enxergasse a situação por um prisma menos verdadeiro do que a enxergava uma estrangeira recém-chegada ao país como Mrs. Graham, a qual inseria no seu diário a observação - "que quanto mais o príncipe e a princesa confiassem nos brasileiros, melhor para eles e para a causa da independência, porquanto esta agora se tornara tão inevitável (is now so inevitable) que a questão única era saber se seria alcançada com ou sem derramamento de sangue".

O príncipe parecia, e pela vida adiante o mostrou, ser impelido pela educação e também pelo temperamento para o despotismo, mas possuir firme crença política no regime constitucional. "O espírito público se purifica de dia em dia - escrevia ele ao pai [8] - e se desenvolve com maior energia e prudência. O povo inteiro é verdadeiramente constitucional, o que aprecio mais do que posso expressar, porque não quereria governar um povo que não amasse sinceramente a constituição. Creio que uma constituição faz a felicidade do povo; mas creio ainda mais que ela faz a fortuna do rei e do governo. Se o povo é infeliz onde não há constituição, o rei e o governo ainda são mais infelizes. Só velhacos acham seu proveito em governo sem constituição".

Mareschal pensava exatamente como Mrs. Graham e escrevia ao príncipe de Metternich "não haver dúvida de que depois desses fatos o príncipe se lance inteiramente nos braços dos brasileiros, pois estes o apoiam, ao passo que a pusilanimidade, o egoísmo e a covardia dos seus servidores portugueses não têm exemplo". O diplomata era neste ponto demasiado severo para os portugueses, que estavam no seu papel esquivando-se a uma nacionalização forçada: isto não atenua nem muito menos desculpa o fato apontado por Mareschal [9] de não ter havido nem um camarista, nem uma dama para acompanhar a Santa Cruz sua ama, em adiantado estado de gravidez, e os filhinhos, ocasionando a jornada, segundo consta, a doença de que veio a falecer a 14 de fevereiro [10] o primogênito Dom João Carlos, enquanto Dom Pedro ficava a resolver as conseqüências da crise que afinal se encaminhara mais prontamente do que deixava esperar para um feliz desenlace.



A 13 de janeiro, já com razão muito mais confiado num bom desfecho do grave incidente - José Clemente Pereira no seu discurso de 1841 ainda se referia à iminência da luta evitada experimentou Dom Pedro chamar à ordem os discolos. Convidou-os a confabularem uns com outros, isto é, portugueses e brasileiros, à razão de dois oficiais de cada corpo, depois de, na véspera, mandar perguntar a cada um dos generais comandantes o motivo da sua atitude. Respondeu Curado que os brasileiros se tinham congregado para resistir à ameaça contra o príncipe e a cidade; por seu lado invocou Jorge de Avilez a necessidade da sua defesa e da sua gente. Em vista das respostas mandou o regente que as duas parcialidades chegassem a acordo que redundasse em restituir-se à cidade a sua tranqüilidade [11].

Segundo a versão de Porto Seguro, foi o general Avilez quem se ofereceu para entrar em negociações, admitindo o príncipe a proposta da trasladação da Divisão Auxiliadora para o outro lado da Bahia, guardando os soldados suas armas e recebendo seus soldos até embarcarem para Portugal. Para tal fim entrou o ministro da Marinha Farinha em correspondência com Carretti, porque os três outros ministros já estavam de demissão aceita, bem como do outro lado o general Avilez, cujo pedido de demissão fora aceito a 12.

Da carta do príncipe de 23 de janeiro antes resulta que a iniciativa da conclusão do alvitre pacificador lhe pertence: "e assim estiveram até as 24 horas, que mandando eu dois oficiais, um aos de cá, e outro à divisão, com diferentes propostas, assentiram os da divisão passarem para a outra banda do rio". Os portugueses não tinham contado com tanta presteza e decisão da parte dos brasileiros e, compreendendo bem a má vontade que contra eles reinava na cidade e que tão espontaneamente se manifestara, cederam assim prontamente, mesmo porque não tinham carregado para o morro do Castelo provisões de boca, calculando que outro rumo tomariam os acontecimentos.

Nem era o adversário de desprezar-se. Mrs. Graham achou os homens, conquanto geralmente franzinos (slight), sadios, ativos e cheios de vida (spirit), parecendo-lhe gente resoluta nos seus desígnios e determinada a defender seus lares e seus direitos. A cavalhada era a melhor que ela até aí vira na terra. O espetáculo do acampamento era variado e pitoresco, dele nos deixando a escritora inglesa uma descrição que tem o relevo de uma água forte:

"Dentro da cerca onde a artilharia fora postada, tudo parecia grave e sério: os soldados estavam alerta e os oficiais, em grupos, discorriam sobre os acontecimentos da noite anterior e as circunstâncias do dia; aqui e além, dentro e fora do círculo, um orador estacionava com os Ouvintes em redor, prestando atenção aos seus arrazoados políticos e suas arengas patrióticas. Na parte aberta do campo viam-se soldados afastados dos seus regimentos e companhias inteiras que tinham fugido à aglomeração de dentro da cerca, que mais intenso tornava o calor. Cavalos, mulas e burros espojavam-se no chão, arfando. Em todas as direções viam-se negros transportando capim e milho para os animais ou levando à cabeça tabuleiros, de doces e refrescos para os homens. Aqui uma porção de soldados, exaustos da viagem e da vigília dormiam estirados sobre o solo; ali jogava um grupo de moleques; cada qual matava o tempo a seu modo, esperando pelo grande evento, uns silenciosamente e pacientemente, receosos do que poderia vir depois, outros ansiosos por agir, tratando apenas de preencher o intervalo da forma mais divertida."

Segundo Mareschal [12], aos milicianos tinham-se agregado populares, roceiros, padres e frades, uns montados, outros a pé, armados de pistola, de faca e até simplesmente de um varapau.

Ao regressar para bordo da Dons no dia 13, Mrs. Graham assistiu por acaso à rendição da última guarda portuguesa do paço da cidade pela primeira guarda brasileira. Os vivas do povo assinalaram a importância do ato que se estava passando. A insuspeita testemunha comentava: "Os habitantes em geral e especialmente os negociantes estrangeiros estão muito satisfeitos com a retirada das tropas de Lisboa, porquanto sua tirania de há longo tempo se vinha exercendo de uma maneira brutal com relação aos forasteiros, aos negros e não raro aos brasileiros: de algumas semanas para cá então, sua arrogância revoltava tanto o príncipe como o povo".

Não é de admirar que nestas condições a ordem de transferência causasse sérias apreensões. A cidade apresentava um aspecto merencório: fechadas as lojas, patrulhas pelas ruas, toda a gente sobressaltada. O pessoal do comércio, incorporado na milícia, andava de serviço, armado e municiado, posto que não fardado, apenas com bandas e cintos de couro cru sobre seus trajes paisanos. O Fico, se exprimia a vontade do partido brasileiro, também podia ser vantajosamente interpretado pelo partido português, desde o momento em que uma das razões - a principal aliás - para sustar-se obediência à deliberação das Cortes, era o receio, melhor dito, a convicção da separação imediata que dali adviria. A desconfiança, que se tornara extrema, entre as duas facções é que levava à tensão entre elas, quiçá à luta por uma solução que em suma aproveitava a ambas, garantindo a presença do príncipe o prolongamento da união ou que a separação se operaria sem gerar confusão e desordem.

No discurso pronunciado a 26 de janeiro perante Dom Pedro, na qualidade de orador da deputação de São Paulo, José Bonifácio disse que desobedecer a tais ordens como as expedidas pelas Cortes era um verdadeiro ato de obediência filial, pois que para os paulistas era indubitável que o rei as assinara sob coação. Por sua vez, antes de fazer o conhecimento pessoal do seu ministro, já Dom Pedro estava convencido, e o expressava com uma noção política muito exata e muito prátical [13], que "com força armada é impossível unir o Brasil a Portugal; com o comércio, e muita reciprocidade, a união é certa: porque o interesse pelo comércio, e o brio pela reciprocidade, são as duas molas reais sobre que deve trabalhar a Monarquia Luso-Brasílica".

No dia 13 efetuou-se o transporte da divisão para a Praia Grande sem que houvesse a menor alteração de ordem: somente subsistiam temores do que poderia ainda acontecer, mormente quando chegassem as tropas em viagem de Lisboa. A 14 reabria o comércio e não faltaram oficiais e sobretudo soldados da Auxiliadora para, desejosos de ficar na terra, pedirem baixa, obtendo-a sem a menor dificuldade: o que os portugueses do partido adverso verberavam como sendo fomentar a deserção entre as forças reais. A medida ajudava porém incontestavelmente o regresso à boa ordem, restabelecida sem tiroteio, a não ser o de publicações, nas quais a época foi fertilíssima, parecendo que da forçada anterior reserva se queriam todos desforrar por uma verdadeira incontinência de argumentação política.

Jorge de Avilez lançou uma proclamação tersa e emproada, a que deu o título de manifesto; portugueses do partido nacional replicaram com uma contra-proclamação muito recheada de reminiscências clássicas, ao passo que um "brasileiro constitucional" publicou uma resposta declamatória e com visos a patética. Uma idéia audaciosa assaltou porém os chefes da Divisão Auxiliadora quando viram interrompidas as comunicações da Armação, onde foram aquartelados, com o Rio de Janeiro - chegando o cerco a ser tão severo que, por edital do intendente geral de policia João Inácio da Cunha (futuro visconde de Alcântara), os moradores daquele lado foram mandados retirar seis léguas para o interior, com seus gados e víveres, e por outro edital foi vedada a comunicação em barcos ou canoas com a capital. Foi essa idéia a de seguirem por terra para a Bahia, a juntarem-se às forças do general Madeira, que ali estavam constituindo um forte núcleo de resistência portuguesa.

Desistiram porém da empresa os que a conceberam, à vista das dificuldades que se antolhavam insuperáveis, apesar de ser lembrado que as depredações pelo caminho podiam fornecer carros e cavalos para a condução. Foi tal projeto originalmente atribuído a um egresso por nome Vicente Pazos, um dos muitos hispano-americanos refugiados no Rio de Janeiro por motivo das convulsões políticas das suas terras, o qual figurara na emancipação da Audiência de Charcas, tomara parte nos sucessos revolucionários de Buenos Aires até o advento de Rodriguez e Rivadávia em 1820, e em Montevidéu se ligou de viva amizade com Jorge de Avilez, a quem acompanhou ao Rio de Janeiro. Melo Moraes, que evoca essa personagem, refere até que José Bonifácio, erroneamente informado da paternidade da idéia da marcha sobre a Bahia, quando de fato o boliviano o que achava razoável era o embarque para Portugal, pensou em apoderar-se dele por uma cilada, do que o preveniu a tempo Duarte da Ponte Ribeiro, depois conselheiro e ministro plenipotenciário do Brasil.

O que parece positivo é que, ao chegar a Divisão Auxiliadora à Praia Grande, pretendeu um destacamento ir reforçar a guarnição da fortaleza de Santa Cruz, composta, afora os artilheiros, de soldados portugueses de infantaria 11, tomando assim conta de uma posição que lhe permitiria dominar a entrada do porto. Um regimento de milícias de São Gonçalo, que ia para a cidade, prevenido da intenção do destacamento, precedeu-o, forçando sua própria marcha, e entrou na fortaleza, donde expulsou os soldados portugueses, erguendo depois disso a ponte levadiça.

Grande é a lista das acusações levantadas contra Jorge de Avilez pelo sentimento hostil do momento, mas, como escrevia a Gazeta do Rio de Janeiro a propósito e todavia sem lhe aplicar o conto, é difícil apurar a verdade acerca de estrondosos fatos contemporâneos, quanto mais sobre sucessos passados de há muito. Acusam-no de ter querido promover uma "bernarda" para evitar o 9 de janeiro; de ter pensado em desfeitear o príncipe apresentando-se no teatro em trajes caseiros no espetáculo de gala do mesmo dia 9 [14], de ter pretendido cortar o abastecimento de água da capital; de ter projetado obrigar o senado fluminense à voltar atrás com o Fico, organizando-se um governo provisório; de ter imaginado uma lista de proscrição como as de Sula, abrangendo 50 e tantos ricaços, entre eles o visconde do Rio Seco (depois marquês de Jundiaí), cujos bens seriam confiscados como de rebeldes às Cortes: isto fora o que já sabemos.

As recordações romanas eram de rigor e Sila vinha a tempo e hora. O artigo da Gazeta compara a política das Cortes com a da velha Roma: "Acaso uma província ou muitas províncias reunidas terão menos jus para reclamarem em termos legais e decentes os seus direitos, que julgam menosprezados ou desatendidos, do que tem cada indivíduo de per si? Não é uma verdade conhecida na história que a grandeza colossal que adquiriu o império romano, foi fundada na astuciosa medida com que se dividiram e separaram as partes componentes de diferentes Estados? Eles tiraram (diz Montesquieu) as ligações políticas e civis que havia entre as quatro partes da Macedônia, do mesmo modo com que antigamente romperam a União das pequenas vilas dos latinos. A República de Achaia era formada por uma associação de cidades livres; o senado decretou que cada cidade se governasse dali por diante por suas próprias leis, sem dependência de uma autoridade comum... À vista disto quem autorizou a Jorge de Avilez para criminar os povos que, meditando sobre estes fatos e não achando uma razão em que fundem o novo método de se governarem as províncias do Brasil isoladamente, não o atribuam a pretensões de se diminuir a sua ligação íntima, para lhes ficar Portugal preponderante em força moral e física, já que o não pode ser em extensão e riqueza?".

Foi a política das Cortes que mais do que qualquer outra causa criou no Brasil o sentimento nacional. As províncias uniram-se na defesa dos seus interesses, quando destes penetraram a indefectível comunidade. A não ser isso, as rivalidades ter-se-iam manifestado porventura insanáveis. A Bahia ainda não perdoara ao Rio de Janeiro a mudança da sede do vice-reinado para a Baía de Guanabara, quando ela continuava a ser a mais importante das capitanias brasileiras. Relata Mrs. Graham que as províncias do norte preferiam uma capital mais setentrional e que no sul havia bastante gente que a queria ver removida para São Paulo, pela maior segurança de uma cidade interior, alcandorada sobre uma serra, e pela maior proximidade das minas, onde se teimava em acreditar estar a principal riqueza do país, apesar da acentuada baixa da sua produção.

Uma capital, um centro, era contudo essencial e afinal havia de vingar aquela mesma onde se achasse instalada a autoridade para a qual tinham de convergir num dado momento todos os esforços espalhados. Foi o que a perspicácia brasileira não tardou muito mais em compreender para opor à intriga das Cortes. Na representação de São Paulo aponta-se para o fato de querer a Assembléia Constituinte privar o reino americano de um centro de união e de força, e mesmo em Lisboa o deputado Pereira do Carmo desde a sessão de 6 de agosto de 1821 taxara o plano de dividir-se o Brasil em miseráveis fragmentos, de "horrendo perjúrio político". Como poderia com efeito prover à sua defesa contra inimigos externos e desordens internas um país privado de um executivo local, cuja ação lograsse estender-se sobre toda sua vastidão?

A deputação paulista incumbida de reforçar o pedido de não ser dada aplicação aos decretos das Cortes que refletiam aquela política insidiosa, só chegou ao Rio de Janeiro a 17, tendo as guardas e patrulhas pela estrada sido dobradas para prevenir qualquer surpresa dos constitucionais portugueses, considerados adversários desde os incidentes do dia 12. Nada entretanto ocorreu do que se pressagiava, e a prontidão e oportunidade das providências adotadas por Dom Pedro antes de entrar em colaboração com José Bonifácio, bastam para desmanchar a lenda, que alguns têm querido forjar, de que o mérito dos atos acertados e da orientação atilada do governo da regência cabe todo e exclusivamente ao ministro paulista.

Este estava ausente no episódio do Fico e na transferência da Divisão Auxiliadora, nem sequer espiritualmente se achava presente como no Ipiranga, quando a natural impetuosidade do príncipe concordou num repente feliz com a decisão suprema e necessária que fora demorada e avisadamente preparada. A verdade é que os dois se completavam e foram os agentes nas suas espiritualidades diversas de uma só e harmônica idéia nacional. O cientista maduro fora amigo de Alfieri: somente o jovem romântico mostrava por vezes mais impaciência, como que sob o pressentimento de que havia de viver menos do que o velho.

A facilidade com que no campo de Santana se congregou tão avultado número de milicianos no curto espaço de uma noite, faz crer que o golpe contrário estava previsto e a reação preparada, não sendo desarrazoado pensar que a Divisão Auxiliadora esteve com efeito ameaçada de ser desarmada quando existissem para tanto os elementos precisos - do que entretanto Jorge de Avilez não faz claramente menção antes dos sucessos de 9, 11 e 12 de janeiro no seu relatório às Cortes.

O embarque da guarnição portuguesa teve lugar sob pressão. Não podia convir ao governo que a Divisão Auxiliadora estivesse acampada tão perto quando chegassem as tropas destinadas a rendê-la. A situação ficaria por completo alterada. Cercaram-na por isso por terra, com regimentos de milícia de infantaria e cavalaria e algumas peças, e por mar, com uma parte da pequena esquadra que se estava formando, divisão naval composta da fragata União (nome mudado para Piranga), da corveta Liberal, de uma barca a vapor, única da sua espécie no Brasil, e de três canhoneiras [15].

Aprestados os transportes para a travessia transatlântica, foi disposto o embarque para os primeiros dias de fevereiro e marcada mesmo a data de 5, mas os homens reclamaram tardança com sua habitual impertinência, já tendo aclamado para seu general Jorge de Avilez, incompatível com a regência, pelo que a proclamação do príncipe, de 1.º de fevereiro, os tratava de "insensatos" e os concitava a lançarem do seu seio "os homens desacreditados na opinião pública, e rebeldes às minhas reais ordens".

A resposta de Dom Pedro foi um breve - "Estou cansado de desaforos", e depois de condescender em que houvesse maior número de transportes e em que levassem os da Divisão não só seus atrasados como três meses mais de soldos adiantados, fixou-lhes o embarque para 7 e a partida para 12. Não tendo porém a ordem sido obedecida até o dia 9, mandou o regente fundear em frente aos alojamentos da Ponta da Armação a pequena esquadra comandada pelo chefe de divisão Rodrigo de Lamare, disposta a bombardear os recalcitrantes se até as oito horas da manhã de 10 não embarcassem. Na retaguarda formou um corpo de soldados brasileiros.

Dom Pedro passou a noite na galeota, indo de navio em navio verificar os aprestos. Sua atitude mostrou aos rebeldes que a situação era séria e levou-os a partirem sem mais ensaio algum de resistência. Assim aprendeu a vencer esse condottiere das liberdades constitucionais. Nas cartas a Dom João VI dá ele conta dos incidentes desse embarque forçado, desde a ameaça à Divisão de ficar sem pão e sem água mercê do sítio, até a declaração aos comandantes que vieram procurá-lo, de que faria fogo sobre eles, uma vez esgotado o prazo. A 15 de fevereiro singrou a frota composta dos navios Constituição, São José, Americano, Três Corações, Despique, Duarte Pacheco, Indústria e Verdadeiros Amigos (este último sardo), que foi acompanhada até além do cabo de Santo Agostinho pelas corvetas Maria da Gloria e Liberal.

Na altura dos Abrolhos cruzou-se essa frota de transportes com a esquadra de Francisco Maximiliano de Sousa, a qual parara no Recife e trazia a seu bordo um batalhão de infantaria, um regimento provisório, uma brigada de artilharia e uma companhia de condutores, um total de 1.200 homens ao mando do coronel Antônio Joaquim Rosado. Comunicaram frota e esquadra indo a bordo da nau capitânea o brigadeiro Carretti. Alguns dos transportes, mais ronceiros e provavelmente mal aparelhados, arribaram a Pernambuco, entre eles o Três Corações, que conduzia Jorge de Avilez e sua esposa. Esta ia doente, mas a junta do Recife proibiu-lhe o desembarque, como proibiu o de todos os oficiais e soldados. Enquanto os navios estiveram no Lamarão foi um médico de terra várias vezes atendê-la, não sem dificuldade e até com risco pelas condições do ancoradouro.

Mareschal julgava por esse tempo que o príncipe, procedendo como estava, se adiantara demais para poder recuar. O dado estava lançado, restando saber se a facção brasileira não se serviria dele apenas como instrumento, enquanto o não pudesse dispensar. E com seu horror por quanto se parecesse com manifestações populares, sobretudo de caráter desordeiro, ajuntava o diplomata austríaco que era mister haver visto, como lhe acontecera no dia 12, aquela mistura de gente de condições, estados e cores diversas, vociferando e pregando a matança e a pilhagem, para se fazer uma idéia do que podia ainda vir a suceder [16].

Não se enganava entretanto Mareschal na desconfiança que nutria quanto à lealdade dinástica de alguns dos corifeus do movimento, aos quais a solução monárquica afigurava-se incompleta e ilusória, e que do príncipe só queriam fazer o seu agente de operação. A independência já se tornara grito de combate, mas as forças tinham que combater unidas. Por curto espaço de tempo, conforme escrevia Dom Pedro [17], "desde que a divisão auxiliadora saiu tudo ficou tranqüilo, seguro, e perfeitamente aderente a Portugal; mas sempre conservando em si um grande rancor a essas Cortes, que tanto tem, segundo. parece, buscado aterrar o Brasil, arrasar Portugal, e entregar a nação à providência...". Pelo seguro tratava de explicar que "a raiva é só a essas facciosas Cortes, e não ao sistema de Cortes deliberativas, que esse sistema nasce com o homem que não tem alma de servil, e que aborrece o despotismo".

Notas editar

  1. J. da Silva Lisboa, ob. cit.
  2. Carta do príncipe de 23 de janeiro de 1822.
  3. José da Silva Lisboa, ob. cit.
  4. Estes algarismos são confirmados pelo barão do Rio Branco que era um cuidadoso investigador.
  5. Há quem escreva que Dom Pedro e Dona Leopoldina desertaram a capital a 10, o que é inexato. Todos os depoimentos e papéis são positivos neste ponto: o augusto casal assistiu ao espetáculo na noite de 11 e ao romper da alva é que a princesa seguiu com os filhos. Dom Pedro, se pensou um momento em acompanhá-la, depressa se arrependeu desse assomo de cautela que lhe não era habitual.
  6. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  7. O meu prezado amigo Dr. Alberto Lamego possui na sua esplêndida coleção de manuscritos um pacote de cartas da princesa Leopoldina ao marquês de Marialva, embaixador português em Paris e que em Viena representara Dom Pedro nos esponsais. São missivas repassadas de uma afeição por assim dizer filial pelo fidalgo, que de resto parece haver sido o que os franceses chamam um charmeur. Nada têm de políticas, sendo todas de assunto familiar ou para encomenda de livros e instrumentos científicos.
  8. carta de 14 de fevereiro de 1822.
  9. Ofício de 15 de janeiro de 1822.
  10. Sr. Alberto Rangel no seu livro sobre a Marquesa de Santos dá a morte da criança como tendo sido motivada por um ataque epiléptico, que em 24 horas a matou. A carta de Dom Pedro ao pai, no próprio dia do óbito, dá uma versão diversa e muito mais plausível, atribuindo-o a "uma violenta constipação", certamente uma broncopneumonia. "O príncipe já estava incomodado quando esta soldadesca rebelde tomou as armas... Esta viagem violenta, sem as comodidades necessárias, o tempo que era mui úmido depois do grande calor do dia, tudo, enfim, se reuniu... A divisão auxiliadora, pois. foi a que assassinou meu filho..." Este não contava ainda um ano.
  11. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  12. Ofício de 14 de janeiro de 1822.
  13. Carta ao pai de 23 de janeiro.
  14. Artigo citado da Gazeta do Rio de Janeiro.
  15. Porto Seguro, ob. cit.
  16. Ofício de 15 de janeiro de 1822.
  17. Carta de 14 de março de 1822.