Toda a comédia tem um desenlace. O ano de 1822 abria-se com um grande ponto de interrogação: obedeceria afinal o príncipe regente à intimação vinda de Portugal, quando fosse reiterada, ou permaneceria de todo no Brasil? Condescenderia com os despeitos inábeis das Cortes ou satisfaria os anelos dos patriotas, que se supunham protegidos pelos ingleses e pelos americanos? [1] O Brasil - parte dele pelo menos - ressentira-se do agravo que o alcançara na pessoa do regente e queria um desforço: este desforço só podia ser a nacionalização de Dom Pedro, servindo de eixo à união das províncias americanas. Entretanto, para não romper de chofre, contemporizava-se ainda, apelando para o critério dos regeneradores do Congresso e tratando-se de melhor os esclarecer sobre a situação dos espíritos no reino ultramarino, para que avaliassem todo o perigo das suas resoluções autoritárias e impertinentes.

O visconde de Porto Seguro insiste muito na sua História da Independência sobre o efeito decisivo que as vistas de recolonização das Cortes e depois as injúrias assacadas contra o Brasil e seus representantes por deputados portugueses e populares da mesma nação exerceram sobre a opinião culta ultramarina, que até então aceitava o dualismo. Em abono do seu juízo cita não só as instruções da junta de São Paulo aos deputados da província, insistindo na autonomia sem insinuarem a separação, como o Reverbero que no seu segundo número, de 1.º de outubro, dirigindo-se à assembléia constituinte de Lisboa, se referia ao "eterno vínculo que nos ligará eternamente" e dizia confiar nela "porque uma parte da nação livre não há de querer escravizar a outra".

Antônio Carlos, num folheto publicado na Bahia logo depois de deixar o cárcere, nem o dualismo aceitava, achando, nas suas expressões, o cúmulo da inépcia e da velhacaria por parte do ministério do Rio, pretender a princípio "rachar em duas a mesma nação", destruir-lhe a unidade central por meio de parlamentos privativos, quando instituições diversas sob a mesma Coroa mascaravam nações inimigas acorrentadas pela conquista e distanciadas pelos costumes, língua, pensar e até religião. Era este o caso da Inglaterra e da Irlanda. Antônio Carlos pertencia ao número avultado dos que queriam antes de tudo ver estender-se ao Brasil o benefício da democratização portuguesa.

A partida do príncipe real implicava certamente a separação com a independência da seção americana da Monarquia: sua permanência ainda poderia determinar o prolongamento da união através do Atlântico, com a condição de consolidar-se a unidade brasileira que fraquejava no processo da fusão e ameaçava dissolver-se irremediavelmente, da fragmentação só podendo aproveitar-se o ideal republicano. "Não existe até agora unanimidade alguma, nenhuma tendência comum entre as principais províncias", escrevia, Mareschal a Metternich nas vésperas do Fico, a 7 de janeiro, e vimos que citava Minas Gerais tratando com o Rio de Janeiro como de potência a potência, a exemplo do Paraguai com Buenos Aires, e Pernambuco, onde lavrava um espírito de independência republicana". Ao diplomata austríaco acudira até a lembrança da transferência da sede do governo central do Brasil para Minas, a fim de não suscitar embaraços o ciúme contra o Rio de Janeiro, que era um traço geral na antiga colônia.

O príncipe até aí deixara-se ir um tanto ao sabor dos acontecimentos, sabedor de que nas lojas maçônicas, das quais eram membros ou acabaram por fazer parte todos os propagandistas da nossa nacionalidade, se trabalhava com afinco pela organização no reino ultramarino de um governo perpetuamente livre, que como tal não poderia deixar de ser independente. A idéia de aclamá-lo imperador no dia do seu vigésimo terceiro aniversário, a 12 de outubro de 1821, se de fato viu a luz e não foi um simulacro de nascimento, ali fora concebida.

Descontava-se de antemão a ambição de um príncipe trêfego e com aspirações, o qual no entanto não deu senão mais tarde mostras de perfilhar tais projetos, antes os repelira de começo pelo escrúpulo mais que tudo de não melindrar o pai, parecendo açodado no seguir-lhe o precavido parecer. Como julgaria el-rei o que se lhe afiguraria por certo sofreguidão, antes de esgotada a lista de provações a que o próprio monarca andava por seu lado sujeito?

O fardo aliás era pesado e quiçá inglória a missão, caso falhasse, para gáudio da guarnição portuguesa, cujo estado de alma Porto Seguro indica, ao notar que a proclamação de 4 de outubro, do príncipe aos fluminenses, obedecera "à insinuação da comissão que desde 5 de junho respondia pelo governo das armas".

Não era só por uma concordância de sentimentos com os da terra que o elemento português colaboraria na explosão de descontentamento com que foram acolhidos os decretos n.ºs 124 e 125, qualificados por Porto Seguro de iníquos, uma vez publicados no dia 11 de dezembro na Gazeta Extraordinária. Aqueles que Drummond denomina "chatins das ruas da Quitanda e do Rosário" manifestaram-se contra uma solução que os deixaria à mercê do elemento nacional. A intimidade do príncipe com os oficiais da divisão auxiliadora garantira-lhes o seu luzismo; mas por sua vez os brasileiros o tinham como o melhor penhor da sinceridade de uma política que viesse a consagrar a autonomia do seu país. Entrementes é positivo que as Cortes só estavam demonstrando empenho em humilhar o herdeiro da coroa, ao passo que no Brasil se desenhava por ele uma corrente de simpatia e mesmo de carinho. A cisão, com Ele ou sem Ele, só deveria contudo para a maior parte ser um recurso de última extremidade.

Mareschal, que vivia na privança da corte, achava que a irresolução proverbial dos Braganças não era alheia à natureza de Dom Pedro, em quem igualmente prevaleciam a compreensão natural e a vivacidade intelectual da família. Arrebatamentos como ele os tinha, podiam eqüivaler a bravura, mas não supõem forçosamente coragem moral, que se exibe pela capacidade de deliberação espontânea, sem carecer para agir ou se transformar em ação do estímulo de uma força maior, encarnada numa influência estranha. Assim acontecera em Vila Viçosa com o duque Dom João e João Pinto Ribeiro, por ocasião da conjuração de 1640, que elevou ao trono a dinastia dos Braganças: outro tanto ia verificar-se no Rio de Janeiro com Dom Pedro e José Bonifácio.

Já anteriormente ao patriarca da independência atuara em sentido idêntico, porventura sem a mesma autoridade, mas seguramente com maior delicadeza, a habilidade da esposa. As cartas ao major Schäfer, recrutador de colonos e mercenários em Hamburgo e comensal do príncipe, não deixam dúvida a semelhante respeito [2]. Dona Leopoldina enxergava claramente o momento histórico e era decididamente pela permanência de Dom Pedro, portanto pela causa brasileira. "Ele está melhor disposto para os brasileiros do que eu esperava mas é necessário que algumas pessoas o influam mais, pois não está tão positivamente decidido quanto eu desejaria" [3].

Estas palavras a princesa as repetia textualmente numa carta de 8 de janeiro, véspera do Fico: "O príncipe está decidido, mas não tanto quanto eu desejaria". E acrescentava, referindo-se à resolução de formar-se o gabinete do regente com brasileiros e ao plano de agruparem-se as províncias numa livre união: "Muito me tem custado alcançar tudo isto - só aspiraria insuflar uma decisão mais firme" [4].

Não lhe faltavam outras sugestões para que desobedecesse às Cortes. Não pensavam deste modo os raros fidalgos portugueses que ainda tinham seus penates no Rio de Janeiro, mas assim pensava o íntegro e desinteressado Tomás Antônio, relíquia da administração paterna [5]. A questão era que as Cortes queriam tornar verdadeira a ficção da soberania popular e concentrar em si todos os poderes políticos e administrativos, não admitindo o sistema constitucional misto. Nem lhes podia convir à frente de um Estado imenso como o Brasil o sucessor presuntivo da Coroa, dispondo de uma soma de poder e prestígio que facilmente eclipsaria a autoridade da representação nacional.

Um rompimento só podia contudo arrastar o príncipe para muito mais longe do que o ponto onde ele se achava, e Mareschal era o primeiro a reconhecer que o futuro do reino unido só se lograria sustentar como fora devaneado "ligando a sorte de Portugal à do Brasil". Eis precisamente o que as Cortes não queriam aceitar por principio algum, embebidos os olhares na sua passada preponderância de instituição política portuguesa.



Nos começos de janeiro estava Dom Pedro com o propósito feito de ficar. Podia ser ainda inabalável, mas já dava para se externar neste sentido. Assim o declarou ao seu guarda-roupa Gordilho de Barbuda (futuro marquês de Jacarepaguá) e assim dava a entender na sua carta a Dom João VI de 2 de janeiro, pondo-o ao fato das "firmes tenções dos paulistas" e ajuntando como comentário: "Farei todas as diligências por bem para haver sossego, e para ver se posso cumprir os decretos, o que me parece impossível, porque a opinião é toda contra por toda a parte".

Os anteriores protestos de fidelidade de Dom Pedro não tinham diminuído o ardor com que se entrou a procurar demovê-lo da sua intenção, sincera ou afetada, levantando a opinião no Rio e expedindo emissários para as províncias próximas para que estas colaborassem na empresa, o que era também uma forma indireta de congregá-las para um fito comum. É geralmente difícil em casos tais estabelecer prioridades de iniciativa, e José Clemente Pereira, juiz de fora e presidente do senado da câmara do Rio de Janeiro, português de Trás-os-Montes, formado em cânones e em direito em Coimbra e praça do batalhão acadêmico, que veio a ser uma figura notável na política brasileira, fez esta mesma observação num discurso pronunciado na câmara dos deputados, quando ministro da guerra, em 1841, acrescentando todavia que se prioridade houve, coube aos fluminenses, embora seja a glória igual para todas as províncias.

Foi ao Rio que chegaram as primeiras noticias dos decretos e aí foi por isso que se tratou de promover a resistência. É opinião de José Clemente, expressa naquela ocasião, que Dom Pedro simulava por política querer ir para Portugal, quando na realidade sempre teve vontade de ficar. Dar preferência a uma solução não é contudo adotá-la: circunstâncias adversas podem fazer mudar de rumo. Em todo caso é fato que o príncipe respondeu afirmativamente e declarou que receberia as deputações, ao expor-lhe Gordilho de Barbuda o que havia a respeito e perguntar-lhe se anuiria, "à vontade unânime dos povos do Rio de Janeiro, Minas e São Paulo".

Gordilho de Barbuda era nessa ocasião o portador dos desejos de vários patriotas que costumavam reunir-se em casa do capitão-mor José Joaquim da Rocha e entre os quais Melo Moraes menciona Luís Pereira da Nóbrega, Dr. José Mariano de Azeredo Coutinho, desembargador Francisco da França Miranda[6] e Antônio de Meneses Vasconcelos de Drummond. Assegurado o consentimento do príncipe, foi então encarregado o padre mestre frei Sampaio de redigir a representação fluminense - a qual ficou com a data de 29 de dezembro - com a assistência de alguns dos entusiastas da idéia que para este fim subiam ao convento de Santo Antônio, entre eles figurando o confessor do príncipe, frei Antônio da Arrabida, depois bispo de Anemuria. Outros ficaram encarregados de angariar as assinaturas pela cidade, iludindo a vigilância dos comandantes dos corpos portugueses, que mandavam rondar as imediações da casa do capitão-mor Rocha na rua da Ajuda por soldados à paisana, por sua vez fiscalizados pelas patrulhas de Cavalaria da policia do célebre comandante Vidigal [7].

A 20 e 22 de dezembro tinham partido respectivamente para Minas e São Paulo, Paulo Barbosa da Silva, então jovem oficial, mais tarde general, plenipotenciário em várias cortes européias e sobretudo conhecido como mordomo da casa imperial, e Pedro Dias Paes Leme, futuro marquês de Quixeramobim [8]. As representações procedentes de Minas Gerais trazem algumas delas datas que mostram a boa vontade que ao emissário se deparou, antes pelo menos dele encontrar-se com a junta de governo: assim a representação de Barbacena é de 27 de dezembro e a de Mariana de 2 de janeiro. A capitania de Minas Gerais, afastada do príncipe, tampouco prestava às Cortes obediência incondicional. Desde que se organizou pelo modo que se dizia constitucional porque uma junta aclamada tomara o lugar de um governador nomeado, Minas julgou-se província autônoma, senão estado soberano, concedendo patentes militares, sujeitando os decretos de Lisboa ao beneplácito local, obedecendo ao critério dos seus interesses privativos, pensando em alterar a legislação e até em cunhar moeda [9].

Paes Leme, que de Sepetiba a Santos fez a viagem em canoa ao longo da costa, chegou a São Paulo a 23 de dezembro à noite. José Bonifácio estava doente de erisipela numa chácara fora da cidade: debaixo de chuva o procurou o emissário sem demora e pela madrugada veio ele, doente mesmo, para a cidade, convocou a junta e propôs que se suplicasse ao príncipe regente que não partisse antes de receber a deputação que São Paulo ia encarregar de apresentar-lhe os motivos de tal pedido [10]. Constam estas razões da representação famosa de 24 de dezembro, contra os termos da qual protestou o presidente Oyenhausen, como já protestara contra o próprio alvitre, acabando porém por se confessar vencido e assinar o ofício em que José Bonifácio pôs toda a vibração do seu temperamento apaixonado no dar expansão à queixa contra as cortes de quererem desunir o Brasil pelo "deslumbrado e indecoroso decreto de 29 de setembro", e arrancar-lhe o seu pai, "depois de o terem esbulhado do benéfico fundador deste reino". O príncipe, se obedecesse aos "desorganizadores, perderia para o mundo a dignidade de homem e de príncipe e responderia, perante o céu, do rio de sangue que de certo vai correr pelo Brasil com a sua ausência".

Com esta linguagem mostravam-se os paulistas dispostos a tudo e o próprio Martim Francisco, que era o mais calmo dos três irmãos, escrevera concisa mas precisamente a José Joaquim da Rocha: "Nunca quis entrar em revolução, porque conhecia a pouca madureza dos meus patrícios; porém agora, como a necessidade insta, mostrarei para quanto pode em mim o amor da minha pátria" [11].

Por esse tempo já o príncipe, gradualmente abalado pela intensidade do movimento a que assistia, pusera completamente de lado seu justificado receio de uma intervenção violenta da divisão auxiliadora, a qual podia dar origem a uma desastrosa guerra civil, e as próprias obrigações morais a que se dizia jungido para com aqueles de quem emanava sua autoridade - o rei que nele delegara seus poderes majestáticos, as Cortes que personificavam no regime constitucional puro a soberania nacional. Sua correspondência indica bem a progressão na mudança da sua atitude, da recusa formal para a recusa relativa e por fim para a aquiescência.

Ao raiar de 1822 o acordo estava estabelecido entre ele e os portadores dos protestos gerais e a 9 se ia tornar de pedra e cal. José Clemente Pereira recordava em 1841 que, tendo conversado com o príncipe na véspera de natal na tribuna da capela imperial, já ele lhe respondera que ficaria. Publicada na Gazeta Extraordinária na noite de 8 a representação de São Paulo, que fora entretanto divulgada por meio de cópias manuscritas que circulavam, emprestando-lhe porém a atração do segredo, efetuou-se ao meio dia de 9 - hora fixada pelo regente ao solicitá-la o procurador da câmara - a entrega solene do requerimento do senado, fundado nas representações do povo fluminense e coberto com mais de 8.000 assinaturas.

Dom Pedro comunicava-se destarte diretamente com a nação. Nenhum ministro assistiu ao ato e os corpos de linha brasileiros bem como as milícias estavam de prontidão nos quartéis, na previsão de algum pronunciamento das tropas portuguesas. Ao ter noticia da manifestação que se preparava, o general Jorge de Avilez levara ao príncipe regente uma representação da divisão auxiliadora, a qual, conquanto esperasse a cada momento ser rendida por tropas de Lisboa e não quisesse por isso tomar uma atitude mais radical, exigia a prisão e deportação para Portugal dos "perturbadores da ordem pública". Respondeu-lhe muito bem Dom Pedro que o direito de petição já se achava garantido pelas bases da Constituição por ele próprio jurada a instâncias da tropa e que não lhe era mais possível privar os fluminenses do gozo desse direito.

As coisas passaram-se porém nesse dia todas festivamente. José Clemente Pereira dizia quase 20 anos depois: "Creio não ser possível nos nossos dias tornar, a haver um dia tão solene como este, em que se apresentaram sessenta e tantos cidadãos das primeiras classes do Rio de Janeiro, vestidos com o uniforme de capa e volta que então se usava". A câmara que saíra e a que entrara no começo do ano partiram em duas filas da sala consistorial da igreja do Rosário, que servia de sé, encaminhando-se pela rua do Ouvidor para o paço da cidade. Como convinha a um ato exclusivamente civil e popular, a divisão portuguesa não esteve a ele presente e absteve-se mesmo de aplaudi-lo ou de hostilizá-lo após a frustrada assunção por Jorge de Avilez, comandante em chefe da divisão e governador das armas, do papel de mentor, cujos ares por algumas horas se arrogou no intuito de forçar o regente a aceitar os decretos que o exautoravam.

O bisbilhoteiro Vasconcelos Drummond, mostrando neste traço sua vocação diplomática, refere que o príncipe cortejava a mulher do general Avilez, o que ajuda porventura a compreender o tom mal-humorado com que foi feita a intimação ao representante da régia autoridade. Mrs. Graham escreve que corria voz que tal intimação fora grosseira e indecorosa (ungentlemanlike and indecent).

A representação da junta de São Paulo insistia talvez mais no "sistema da anarquia e da escravidão" que as Cortes sonhavam impor ao Brasil, sem a participação da deputação americana, e vaticinava que "seus povos, quais tigres raivosos, acordarão de certo do sono amadornado, em que o velho despotismo os tinha sepultado, e em que a astúcia de um novo maquiavelismo constitucional os pretende agora conservar". A representação fluminense alongava-se de preferência sobre a retirada do príncipe e essa viagem forçada pelas cortes européias, "hoje decaídas daquele esplendor que elas apresentavam em outras épocas, nelas não encontrando mais do que intrigas diplomáticas, mistérios cabalísticos, pretensões ideais, projetos efêmeros, partidos ameaçadores, a moral pública por toda a parte corrompida...".

O príncipe devia de preferência viajar pelo interior do "vastíssimo continente desconhecido na Europa portuguesa" e que os estrangeiros melhor estudavam e descreviam, continente do qual Portugal, dominado por uma cega rotina, "não se dignou em tempo algum entrar no exame, nunca lançou os olhos sobre o seu termômetro político e moral, para conhecer a altura em que estava a opinião pública...". A presença do príncipe despertaria entre os povos brio e entusiasmo e ele, por sua vez, recolheria a vantagem de conhecer por si mesmo "a herança da sua soberania".

A fala do presidente do senado da câmara foi toda elaborada no sentido de que, para poupar grandes males, suspendesse o príncipe a partida até nova determinação das Cortes. Dom Pedro respondeu no mesmo tom. O auto dessa sessão única da vereação fluminense comportou porém uma declaração complementar, que se reflete nos dois editais sucessivos do senado da câmara ao povo do Rio de Janeiro. Segundo o auto e o primeiro edital, este do próprio dia 9, a resposta do príncipe regente foi a seguinte: "Convencido de que a presença da minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias que têm ocorrido".

O auto diz todavia no post scriptum que as palavras de S. A. Real foram lançadas menos exatamente no termo, devendo ser substituídas pelas verdadeiras, que foram as seguintes:

"Como é para bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto; diga ao povo que fico."

E como o povo fora prorrompesse em aclamações, S. A. Real chegando às varandas do paço, disse-lhe: "Agora só tenho a recomendar-vos união e tranqüilidade". Esta segunda parte não consta do segundo edital, de 10, que reza ter o senado da câmara publicado na véspera, "com notável alteração de palavras", a resposta do príncipe regente, "esperando o mesmo senado que o respeitável público lhe desculpe aquela alteração, protestando que não foi voluntária, mas unicamente nascida do transporte de alegria que se apoderou de todos os que estavam no salão das audiências...".

A mudança significa que houve receio de que a expectativa geral, bastante excitada, estranhasse a resposta, achando-a morna e considerando-a um paliativo para o mal que se apregoava horrendo. O remendo é visível na linguagem do edital, achando "tão desculpável aquela falta de todas as pessoas que acompanharam o senado e não tiveram dúvida em declarar que a expressão do edital que se acaba de publicar fora a própria de S. A. Real, com alguma pequena diferença".

Não há dúvida que a versão que ficou histórica é mais lapidar e, além desta vantagem de uma maior concisão, soa alto e firme como um toque de clarim. A outra versão, mais prudente, é também mais conforme com a realidade. Dando conta mais de um mês depois às Cortes do ocorrido, o senado da câmara, em ofício de 16 de fevereiro, insistia pela permanência do príncipe e declarava que o Brasil "queria ser tratado como irmão, não filho; soberano com Portugal, e nunca súdito; independente como ele e nada menos". E em ofício do dia seguinte, aos deputados fluminenses, definia a união que desejava como "um pacto indissolúvel, de condições em tudo iguais".

Esta já é a linguagem de José Bonifácio ministro, adotada pelos outros fatores do momento. No intuito de diminuir o papel dos Andradas no movimento da independência, Porto Seguro, que lhes não é afeiçoado, opina que a vigorosa representação de São Paulo não contribuiu ela só para a final determinação do príncipe, tendo sido precedida no Rio por vários artigos de argumentação análoga, e mesmo que sua linguagem, a qual trata de descabelada para um documento dessa natureza, mais podia ser prejudicial do que benéfica.

É fato que os Andradas eram irascíveis; tinham o que vulgarmente se chama "gênio forte", e José Bonifácio em particular era desbocado: mas o valor do seu gesto do ponto de vista histórico consiste no afã de solidariedade que traduz e que se revela em todos seus atos públicos, até no terreno intelectual [12]. Coube-lhe pois justificar antecipadamente e praticamente o que José Clemente Pereira apontou com discernimento - que é possível que a prioridade do movimento emancipador não tivesse cabido em suma a ninguém; no entusiasmo comum, sem combinação prévia, estariam todos dispostos para o mesmo fim e iriam tomando essa direção.

É mister repetir que o Brasil até certo tempo não queria na sua maioria desunir-se de Portugal: queria apenas que lhe assegurassem as franquias alcançadas. Para isto, ao mesmo tempo que se dirigia ao príncipe regente, a junta de São Paulo procurou sob a instigação de José Bonifácio uma aliança ofensiva e defensiva com a junta de Minas Gerais e, se possível, com as outras, contra a projetada recolonização do Brasil. Chamava-se a esta federação "sagrada" e esperava-se que abrangeria toda a monarquia, lançando em todo o caso, para a hipótese de malogro, "os alicerces de uma união indissolúvel, recíproca, justa e decorosa".

Fiado neste apelo anterior de José Bonifácio e já se sentindo apoiado na tríplice combinação, fluminense-paulista-mineira, foi que o príncipe regente na noite de 12 de janeiro escreveu de seu punho, requisitando dos governos de São Paulo e Minas forças que ajudassem a defesa no caso de ataque por parte da divisão portuguesa transferida para a Praia Grande, vindo um regimento de infantaria de São Paulo e, com alguma demora, um de cavalaria de Minas Gerais.

A combinação referida podia não se achar ainda cimentada, mas já era positiva a constituição de um bloco sulista. São Pedro do Sul participou da cerimônia do dia 9 de janeiro na pessoa do coronel Manuel Carneiro da Silva e Fontoura, autorizado para falar em nome da terra riograndense, o qual declarou em alta voz que os sentimentos dos seus comprovincianos, concordavam com os que ele ali via manifestados.

Outra qualquer impressão mais lata deixaria de ser rigorosamente exata. Os mineiros, com seu natural desconfiado pelas condições mesmas da sua colonização, na qual se rodeava de mistério a extração do ouro e dos diamantes a fim de lesar-se quanto possível o fisco, únicos a possuírem no sul do Brasil tradições republicanas, até de martírio, ficaram, ao que se diz, sus peitando de que no Rio se tramava uma coisa e se comunicava outra. Foi esta, segundo Melo Moraes, compilador atabalhoado de documentos de primeira ordem, a razão da tardança da deputação de Minas Gerais ao príncipe, precedida entretanto pela deputação destinada às Cortes de Lisboa, a qual, uma vez no Rio e tendo conferenciado com o regente a 22 de janeiro, desistiu de seguir viagem e decidiu, conjuntamente com o representante do Espírito Santo aguardar os acontecimentos.

A resolução de Dom Pedro fora efetivamente a salvação do Brasil unido - unido entre si quando deixasse de sê-lo a Portugal - mas fora um golpe terrível para o partido republicano, a que se referia José Clemente Pereira na sua fala de 9 de janeiro como semeado por todo o Brasil e protegido pelos Estados Unidos. A partida do príncipe real podia ter dado ganho de causa à democracia, mas também teria convertido o Brasil numa mera expressão geográfica, como foi a Itália até sua unidade.

A liberdade de imprensa, que o general Jorge de Avilez no seu manifesto de 14 de janeiro aos cidadãos do Rio apontava como uma das instituições dos povos livres decorrentes da atitude das tropas portuguesas que se levantaram a 26 de fevereiro e depois a 5 de junho contra o governo que, no seu dizer, "iludia astutamente os benefícios da constituição, concedendo como uma graça o que era devido por direito", provocou em redor deste episódio do Fico um torneio de opúsculos por publicistas de valor, no número dos quais sobressaem Pereira da Fonseca (Maricá), Bernardo José da Gama (depois visconde de Goiânia), o tenente-coronel Raimundo da Cunha Matos, todos no espírito do unionismo, quer no sentido brasileiro, quer no sentido português, quase todos, senão todos, abundando em argumentos persuasivos em favor de um pacto igual.

As tipografias começaram a abrir-se e as folhas a aparecer. Ao lado do Reverbero surgiram, em principio de outubro de 1821, portanto quase simultaneamente, o Espelho, hebdomadário e depois bi-hebdomadário, dirigido por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, antigo redator da revista O Patriota e da Gazeta oficial, e desde dezembro a Malagueta de Luís Augusto May, folha de opiniões variáveis e publicação incerta, que durou irregularmente até 1829 e cuja redação não era destituída de talento. Em 1822 entrou a publicar-se o Correio do Rio de Janeiro, do português José Soares Lisboa, jornal de escândalo e investivas pessoais, que motivou o decreto de 18 de junho do mesmo ano contra os excessos da imprensa. Soares Lisboa, condenado depois da proclamação do império a 10 anos de prisão por uma culpa séria e provada, foi indultado por Dom Pedro, sob condição de deixar o Brasil. Desembarcou porém em Pernambuco, - onde fundou o Desengano Brasileiro e tomou parte na Confederação do Equador, morrendo em novembro de 1824 no combate do Couro da Anta [13].

  1. Carta do príncipe de 15 de dezembro de 1821.
  2. Estas cartas foram publicadas na Revista do Instituto Histórico e o 1.º secretário perpétuo desta associação, Sr. Max Fleiuss, respondendo a uma consulta minha, garantiu-me sua autenticidade.
  3. O texto alemão reza: "Er ist besser gestimmt als ich hoffte, für die Brasilianer. Es ist aber nötig durch mehrere Personen auf ihn wirken zu machen, denn er ist noch nicht so gewiss entschlossen als ich es wünschte".
  4. Em alemão lê-se. "Alles dieses zu erlangen kostete mir viel - nur wollte ich noch mehr Entschlostenheit einblasen können".
  5. Tomás Antônio escreveu neste sentido de Lisboa ao seu amigo Soares de Paiva.
  6. É o autor do Despertador Brasiliense, nesse momento impresso e distribuído.
  7. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  8. Segundo Porto Seguro foi igualmente despachado para São Paulo João Evangelista Sayão Lobato, depois senador do império.
  9. Fala do juiz de fora José Clemente Pereira a 9 de janeiro de 1822.
  10. José Joaquim da Rocha escrevera ao mesmo tempo a Martim Francisco, que respondeu comprometendo-se. Segundo José Clemente Pereira no discurso citado, os primeiros que no Rio se ocuparam deste assunto foram José Joaquim da Rocha e o Dr. José Mariano de Azeredo Coutinho. Antônio Carlos, presente na câmara, confirmou esta asseveração. Melo Moraes dá a José Joaquim da Rocha a primazia, mas fala também muito dos Serviços de Luís Pereira da Nóbrega. Quanto a seu próprio papel, afirmou José Clemente Pereira que concordara com os passos a dar para se resolver o príncipe a ficar e evitar-se "o governo de 3 cabeças" que se projetava e que o Brasil não queria".
  11. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império
  12. Assim foi que prestou seu concurso à Sociedade Filotécnica, imaginada sobretudo por José Silvestre Rebelo e presidida pelo conde de Palma, regedor da justiça, com o fim de ligar as diferentes províncias por idéias comuns, por meio.
  13. É mister repetir que o Brasil até certo tempo não queria na sua maioria desunir-se de Portugal: queria apenas que lhe assegurassem as franquias alcançadas. Para isto, ao mesmo tempo que se dirigia ao príncipe regente, a junta de São Paulo procurou sob a instigação de José Bonifácio uma aliança ofensiva e defensiva com a junta de Minas Gerais e, se possível, com as outras, contra a projetada recolonização do Brasil. Chamava-se a esta federação "sagrada" e esperava-se que abrangeria toda a monarquia, lançando em todo o caso, para a hipótese de malogro, "os alicerces de uma união indissolúvel, recíproca, justa e decorosa". Fiado neste apelo anterior de José Bonifácio e já se sentindo apoiado na tríplice combinação, fluminense-paulista-mineira, foi que o príncipe regente na noite de 12 de janeiro escreveu de seu punho, requisitando dos governos de São Paulo e Minas forças que ajudassem a defesa no caso de ataque por parte da divisão portuguesa transferida para a Praia Grande, vindo um regimento de infantaria de São Paulo e, com alguma demora, um de cavalaria de Minas Gerais. A combinação referida podia não se achar ainda cimentada, mas já era positiva a constituição de um bloco sulista. São Pedro do Sul participou da cerimônia do dia 9 de janeiro na pessoa do coronel Manuel Carneiro da Silva e Fontoura, autorizado para falar em nome da terra riograndense, o qual declarou em alta voz que os sentimentos dos seus comprovincianos, concordavam com os que ele ali via manifestados. Outra qualquer impressão mais lata deixaria de ser rigorosamente exata. Os mineiros, com seu natural desconfiado pelas condições mesmas da sua colonização, na qual se rodeava de mistério a extração do ouro e dos diamantes a fim de lesar-se quanto possível o fisco, únicos a possuírem no sul do Brasil tradições republicanas, até de martírio, ficaram, ao que se diz, sus peitando de que no Rio se tramava uma coisa e se comunicava outra. Foi esta, segundo Melo Moraes, compilador atabalhoado de documentos de primeira ordem, a razão da tardança da deputação de Minas Gerais ao príncipe, precedida entretanto pela deputação destinada às Cortes de Lisboa, a qual, uma vez no Rio e tendo conferenciado com o regente a 22 de janeiro, desistiu de seguir viagem e decidiu, conjuntamente com o representante do Espírito Santo aguardar os acontecimentos. A resolução de Dom Pedro fora efetivamente a salvação do Brasil unido - unido entre si quando deixasse de sê-lo a Portugal - mas fora um golpe terrível para o partido republicano, a que se referia José Clemente Pereira na sua fala de 9 de janeiro como semeado por todo o Brasil e protegido pelos Estados Unidos. A partida do príncipe real podia ter dado ganho de causa à democracia, mas também teria convertido o Brasil numa mera expressão geográfica, como foi a Itália até sua unidade. A liberdade de imprensa, que o general Jorge de Avilez no seu manifesto de 14 de janeiro aos cidadãos do Rio apontava como uma das instituições dos povos livres decorrentes da atitude das tropas portuguesas que se levantaram a 26 de fevereiro e depois a 5 de junho contra o governo que, no seu dizer, "iludia astutamente os benefícios da constituição, concedendo como uma graça o que era devido por direito", provocou em redor deste episódio do Fico um torneio de opúsculos por publicistas de valor, no número dos quais sobressaem Pereira da Fonseca (Maricá), Bernardo José da Gama (depois visconde de Goiânia), o tenente-coronel Raimundo da Cunha Matos, todos no espírito do unionismo, quer no sentido brasileiro, quer no sentido português, quase todos, senão todos, abundando em argumentos persuasivos em favor de um pacto igual. As tipografias começaram a abrir-se e as folhas a aparecer. Ao lado do Reverbero surgiram, em principio de outubro de 1821, portanto quase simultaneamente, o Espelho, hebdomadário e depois bi-hebdomadário, dirigido por Manuel Ferreira de Araújo Guimarães, antigo redator da revista O Patriota e da Gazeta oficial, e desde dezembro a Malagueta de Luís Augusto May, folha de opiniões variáveis e publicação incerta, que durou irregularmente até 1829 e cuja redação não era destituída de talento. Em 1822 entrou a publicar-se o Correio do Rio de Janeiro, do português José Soares Lisboa, jornal de escândalo e investivas pessoais, que motivou o decreto de 18 de junho do mesmo ano contra os excessos da imprensa. Soares Lisboa, condenado depois da proclamação do império a 10 anos de prisão por uma culpa séria e provada, foi indultado por Dom Pedro, sob condição de deixar o Brasil. Desembarcou porém em Pernambuco, - onde fundou o Desengano Brasileiro e tomou parte na Confederação do Equador, morrendo em novembro de 1824 no combate do Couro da Anta (132).