A qualidade da representação brasileira nas Cortes de Lisboa prova que o Brasil se achava maduro para a vida independente, sendo de notar que a procura de lugares não foi grande, antes eram poucos os que se prestavam a aspirar a uma honraria que não era um cargo e que trazia no bojo incômodos certos e glórias problemáticas. Em todo caso completou-se o quadro com brasileiros residentes em Portugal, como o bispo de Coimbra, D. Francisco de Lemos, a quem o marquês de Pombal conferira a reitoria da Universidade quando a reformou e cuja idade avançada - era quase nonagenário - o impediu agora de aceitar o encargo eletivo; o célebre economista Azeredo Coutinho, bispo de Elvas e inquisidor-mor, que honrara a mitra de Pernambuco, mas faleceu logo depois de empossado como deputado fluminense, e seu suplente Vilela Barbosa (Paranaguá), poeta, lente de matemáticas na Academia de Marinha, espírito culto e colega de José Bonifácio na Academia Real das Ciências.

É também verdade que essa representação não se compôs exclusivamente de gente educada na antiga colônia. Os estudos superiores faziam-se em Coimbra e universitários eram vários dos deputados, como Araújo Lima (futuro marquês de Olinda), que, depois de formados, tinham regressado para o país natal a exercerem sua atividade.

A base para representação fora fixada em 30.000 cidadãos, dando o excedente de 1S.000 direito a um deputado mais. O cálculo pelo qual se orçou a população brasileira foi o do ano da chegada da corte ao Rio de Janeiro, computando a população livre em 2.323.386 habitantes, o que dava ao Brasil uns 70 deputados (uns 50 chegaram a exercer o mandato) para uns 130 de Portugal. O sistema eleitoral era complicado, abrangendo quatro graus. Os moradores de cada freguesia elegiam compromissários que por sua vez designavam um eleitor paroquial, na razão de 11 votantes e 200 fogos. Os eleitores paroquiais reunidos na cabeça da comarca escolhiam em escrutínio secreto os últimos eleitores, que na proporção de 3 para 1 (15 eleitores elegiam 5 representantes) e igualmente por sufrágio secreto procediam na capital da província à seleção final dos deputados.

Os deputados por Pernambuco - os da cidade e da mata, faltando os do sertão - foram os primeiros a chegar, não só pela maior proximidade geográfica como pelo empenho de Luís do Rego em dar arras do seu constitucionalismo, prevendo os ataques que ele sabia seguramente lhe seriam feitos em Cortes por esses homens que a província escolhera, eivados do morbo revolucionário. Faziam parte da deputação figuras de 1817 como o padre Muniz Tavares e Domingos Malaquias de Aguiar Pires Ferreira, secretário do Cabugá na sua infeliz missão aos Estados Unidos.

Mostrando-se pressuroso em obedecer às Cortes, Luís do Rego tratava de conservar nas mãos a alta direção efetiva do governo local, de acordo aliás com parte da opinião, mesmo da terra, que nele não via propriamente um tirano, mas um delegado da autoridade real. De fato, uma vez abafada a revolução e justiçados os cabeças, Luís do Rego manifestara-se abertamente em favor de medidas de demência, de fomento econômico e de proteção social [1].

Os deputados pernambucanos tomaram assento a 29 de agosto de 1821. A figura proeminente entre eles veio a ser Muniz Tavares, cuja participação nos debates foi contínua e vibrante. Araújo Lima, já nomeado ouvidor em Minas, mostrar-se-ia o que sempre havia de ser: um cultor da legalidade, preso pelos melindres jurídicos, respeitador por excelência da vontade popular, manifestada ou manipulada pelo voto eleitoral, mas sabendo combinar tal respeito com a diferença devida à coroa e ao papel constitucional que a esta competia. Assim foi sempre o marquês de Olinda nas Cortes de Lisboa, na constituinte do Rio de Janeiro, nos conselhos do primeiro imperador, nas lutas da regência, regente ele próprio, várias vezes presidente do conselho do segundo imperador.

Muniz Tavares, pelo contrário, era da família dos tribunos, estalando de paixão e sequioso de vingança debaixo da sua compostura eclesiástica, da qual se não despojara, apenas da unção generosa dos sacerdotes como João Ribeiro, Miguelinho e Tenório, corifeus da revolução tão cruelmente esmagada. Subsistia contudo nele o zelo pela instrução pública, revelado na proposta para fundação de uma universidade, a qual desdenhosamente comentou um deputado português, dizendo que para o Brasil bastavam algumas escolas de primeiras letras, e para a criação de tais escolas, na razão de uma por paróquia, nas quais fossem ministradas noções de direito constitucional, competindo ao clero não só o ensino do catecismo religioso, como o do catecismo cívico.

Entre os deputados fluminenses avantajou-se sem favor o futuro marquês de Paranaguá, o qual ainda hoje é um enigma, não pelo que diz respeito ao talento, mas pelo que diz respeito ao caráter, tanto o exaltando uns quanto outros o denigrem. Admiradores dos Andradas consideram-no um hipócrita refalsado e um intrigante desonesto, que se aproveitou do patriotismo brasileiro sem possuir o sentimento da nacionalidade. Antônio de Meneses Vasconcelos de Drummond acusa-o mesmo de haver-se oposto em Cortes à independência do Brasil e tratado os partidários da separação de "degenerados"; mas seus discursos não autorizam tal exprobração. Muito pelo contrário, são dos mais inteligentes e dos mais persuasivos em favor do reino americano [2].

Uma deputação que muito se recomendava era a da Bahia, incluindo Domingos Borges de Barros (futuro visconde da Pedra Branca), espírito delicado a quem já preocupavam a sorte dos negros e a incapacidade política das mulheres e que, lírico mavioso, foi também diplomata suave; Cipriano Barata, médico e, apesar de sexagenário, publicista inflamado, que Cairu apelida de "façanhoso perturbador público", descrevendo-o por ocasião do pronunciamento baiano de 10 de fevereiro "burlescamente armado à sertaneja com espadão de tiracolo, e cinto de pistolas" e de quem diz, não se podendo conformar com sua intransigência republicana, que "deixando o escalpelo da cirurgia pelo cutelo da democracia, já no fim do século passado tinha sido implicado na obscura facção de alguns idiotas que tentarão estabelecer República na Bahia [3]; Lino Coutinho, insinuante, culto, eloqüente, espirituoso, magnético, tratando de todos os assuntos com proficiência, e o diácono Francisco Agostinho Gomes; de quem Gomes de Carvalho escreve que era "um santo e um sábio", rígido consigo mesmo, tolerante para com os outros, escrupuloso na moral, incansável no estudo, ardente na caridade.

A deputação de São Paulo era porém a que se compunha de individualidades mais conspícuas, algumas delas tendo depois desempenhado no império um papel saliente, como Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, Diogo A. Feijó, Fernandes Pinheiro (visconde de São Leopoldo) e Nicolau de Campos Vergueiro. Paula Sousa e seu substituto Silva Bueno e Costa Aguiar de Andrada completavam uma representação que não era certamente banal nem medíocre.

Antônio Carlos era dos três irmãos o que tinha o talento mais brilhante, porque tinha a palavra fácil, imaginosa e arrebatada. Sendo por natureza enérgico como José Bonifácio ou Martim Francisco, derivava o seu vigor moral um acréscimo de reputação da parte tomada pelo antigo ouvidor de Olinda na revolução pernambucana de 1817 e conseqüentes padecimentos nos cárceres imundos da Bahia. Já quase que qüinquagenário, o espírito bem sazonado, formado em Coimbra por duas faculdades - leis e filosofia -, tinha sofrido na vida bastantes vicissitudes e aprimorado sua educação intelectual na "universidade" da prisão por meio de leituras e da convivência com muitos engenhos sólidos, ao mesmo tempo que apurara a feição naturalmente combativa do seu temperamento.

Mercê de tudo isso, sentiu-se Antônio Carlos logo à vontade no meio parlamentar e chamou a si a direção dos "brasileiros". Foi o seu líder natural, líder em todo caso mais para assalto, para derribar, do que para reconstruir porque, apesar da facilidade da sua argumentação e da fecundidade dos seus alvitres, o dom da convicção era nele menor do que o dom da intimidação.

O padre Feijó já então era o ânimo firme e resoluto que mais tarde, como ministro da Justiça e regente do império, salvou a ordem pública ameaçada como nunca de subversão no Brasil. Fernandes Pinheiro, o autor dos Anais da província de São Pedro do Sul, não primava talvez nas lutas políticas pela decisão e força de vontade, mas possuía farta ilustração e amenidade [4]. Campos Vergueiro, português que fora para São Paulo advogar e se tornara agricultor pelo casamento que o fez proprietário rural, aparece depois como um precursor dos poderosos interesses agrícolas e industriais da sua pátria adotiva, dedicando parte da sua atividade aos depósitos de ferro e fábrica de Ipanema e a colonização européia.

A deputação de São Paulo foi a única a levar instruções e instruções eram elas compreensivas e notáveis, cuja autoria cabe sem dúvida a José Bonifácio, porque nas mesmas, se encontram estampadas idéias que a muito poucos então preocupavam, como as da abolição da instituição servil e catequese dos indígenas [5].

Dividiam-se essas instruções, que trazem a data de 9 de outubro de 1821, em três capítulos, relativos aos negócios da União, a que o documento chama o Império lusitano, do reino do Brasil e da província de São Paulo. No primeiro capítulo recomendavam-se a integridade e indivisibilidade do Reino Unido e a igualdade dos direitos políticos e civis dos seus respectivos cidadãos. Deixava-se em aberto a designação do lugar que serviria de sede à Monarquia, se o Brasil, se alternativamente um e outro continente, regulando-se pelos reinados ou por períodos dentro do mesmo reinado. Haveria igualmente que fixar as leis orgânicas e determinar a distribuição proporcional das despesas da União pelos dois Estados associados, cujas obrigações seriam estipuladas com relação ao Império Luso-Brasileiro, fundando-se um tesouro comum, à parte dos tesouros dos dois reinos, para gastos de guerra, lista civil da família real e representação exterior. O número dos deputados dos dois reinos deveria ser sempre igual, independente da população, renovando-se a câmara à sorte pela metade cada dois anos. Além dos três poderes - legislativo, executivo e judiciário - haveria um quarto, que não era o moderador, e sim constituído por um corpo de censores que, eleitos do mesmo modo que os deputados e fazendo vezes de poder verificador destes representantes, agiriam como fiscais com relação à invasão de um dos poderes nas atribuições de outro, levando qualquer ato inconstitucional perante um "grão-jurado nacional", por eles próprios nomeado e formado em partes iguais de deputados, membros do tribunal supremo de justiça e conselheiros de Estado, estes escolhidos pelas juntas eleitorais das províncias, à razão de um pelo menos por província, para certo tempo. A esses censores pertenceria igualmente pronunciarem a suspensão dos ministros do executivo e dos magistrados, obrando a requerimento das Cortes.

Para o reino do Brasil deveria organizar-se um governo geral executivo, ao qual ficariam sujeitos os governos provinciais, determinando-se as respectivas esferas de ação, e ficaria assente que, nos tempos em que o Brasil não fosse sede da Monarquia e das Cortes, seria aquele governo presidido pelo herdeiro da coroa, entrando nas suas atribuições fixar os limites com a América Espanhola e colônia de Caiena, e demarcar as províncias entre si. Os códigos civil e criminal que viessem a ser redigidos pelas Cortes da nação deveriam ter em consideração as circunstâncias especiais brasileiras "de clima e de povoação, havendo classes de cores diversas e pessoas, umas livres e outras escravas" [6].

A questão do ensino não podia deixar de chamar a atenção do sábio redator das instruções. Considerava ele de absoluta necessidade uma universidade pelo menos, a ser criada desde logo em São Paulo pelas condições topográficas e climatéricas e barateza da vida, com quatro faculdades: a de filosofia, abrangendo as ciências naturais, as matemáticas, a filosofia especulativa e as boas artes; a de medicina; a de jurisprudência e a de economia, fazenda e governo. Não esquecia ele contudo as bases desse ensino universitário, a saber, o ensino primário e secundário, o primeiro ministrado em escolas de primeiras letras, não havendo freguesia que a não tivesse conforme os modelos alemão e inglês, e o segundo dispensado em ginásios, dos quais haveria um em cada província, "em que se ensinem as ciências úteis para que nunca faltem entre as classes mais abastadas homens, que não só sirvam os empregos, mas igualmente sejam capazes de espalhar pelo povo os conhecimentos que são indispensáveis para o aumento, riqueza e prosperidade da nação" [7]. Convinha que a capital de cada província tivesse as cadeiras de medicina teórica e prática, cirurgia e arte obstetrícia, arte veterinária, matemática, física e química, botânica e horticultura experimental, zoologia e mineralogia.

As instruções referiam-se ainda à ereção de uma cidade central para capital, na latitude mais ou menos de 15º, como o melhor meio de povoamento do interior e de circulação do comércio interno do "vasto Império do Brasil"; ao estabelecimento de uma direção geral de economia pública, uma vez ligado o novo centro por meio de estradas às várias províncias e seus portos de mar; a um código de minas; a uma nova legislação sobre sesmarias, acabando-se em proveito da agricultura com os latifúndios baldios e dividindo-se estas terras devolutas para serem vendidas aos que pudessem comprar os lotes, com o produto de tais vendas favorecendo-se a colonização de europeus pobres e nacionais forros, sob a condição geral aos novos donos e sesmeiros de reservarem a sexta parte do terreno para matas e arvoredos e de não derrubarem e queimarem as florestas sem fazerem novas plantações.

As necessidades privativas de São Paulo seriam reguladas de acordo com as informações e petições das câmaras municipais.



Uma das primeiras providências de Dom João VI, ao ter notícia da revolução ocorrida no Porto e em Lisboa, fora desligar do exército de Portugal, de certo para evitar o contágio à distância, a chamada divisão dos voluntários reais ou corpo de tropas portuguesas da corte, enquanto durasse seu serviço no ultra-mar [8]. O orgulho lusitano agastou-se porém com essa medida, que o governo do Rio de Janeiro foi prontamente obrigado a revogar [9].

Restabelecida a continuidade militar e ganho em Cortes (a constituição dos governos provinciais foi promulgada a 1.º de outubro de 1821) o ponto importante do comando português- português pelo espírito quando o não fosse pelo nascimento - isto é, "despojadas as juntas da força militar" e conseguintemente da possibilidade de resistência sobretudo conjunta, passou a assembléia constituinte ao terreno judiciário, afim de privar o reino do Brasil dos tribunais superiores com que o dotara o governo de Dom João VI e que lhe davam todos os meios legais de prover à sua própria justiça. Esquecia Portugal - conforme relembra Armitage - que no manifesto dirigido às nações da Europa para justificar a revolução que reclamava o regresso de el-rei, uma das queixas formuladas era que "a justiça estava sendo administrada com muita lentidão e despesa, na distância de 6.000 milhas". Agora se pretendia, com sutil ironia por certo, que a remoção dos tribunais superiores para Lisboa multiplicaria as relações e estreitaria os vínculos da união entre os dois países.

Gomes de Carvalho nota que foi a própria comissão de constituição composta dos regeneradores de primeira grandeza - Fernandes Tomás, Borges Carneiro e Moura, o maior orador da constituinte - a que propôs o fechamento dessas cortes de justiça e das juntas superiores de administração às quais fizera jus a elevação da colônia a reino. O argumento velhaco de Fernandes Tomás para abolir esses títulos e recursos brasileiros era que Lisboa não ficava afinal de contas mais distante de muitas províncias do Brasil do que o Rio de Janeiro, sendo talvez mais fáceis as comunicações transatlânticas do que as que tinham lugar ao longo da costa. A oposição do deputado fluminense Martins Basto fez porém adiar o debate para quando estivesse presente toda a representação brasileira (19 de setembro de 1821)

Imediatamente se tratou do complemento necessário da lei de constituição provincial, que era a supressão da regência do príncipe real. Novamente e mais do que nunca dependentes as províncias brasileiras da sua antiga metrópole, para que um representante da autoridade real, ele próprio pessoa real, o sucessor mesmo da Coroa? Era demasiada honra para uma colônia que tinha tido seus vice-reis, mas nunca um herdeiro de rei... a não ser quando tinha tido o rei, forçado porém a voltar.

Os deputados brasileiros presentes, que tinham aceitado a reorganização administrativa do Brasil por meio das juntas governativas eleitas, não ousaram protestar. A proposta foi unanimemente aprovada e a verdade é que, como pondera Gomes de Carvalho, de harmonia com o espírito dominante no Brasil, onde as juntas revolucionárias tinham tido o maior cuidado, exceção feita de uma, de afirmarem sua independência com relação ao centro, pondo tanto afã em se proclamarem constitucionais como em desdenharem da autoridade da regência. A autonomia de que chegara a gozar o Brasil sob um soberano absoluto, sumia-se nessa efervescência de ciúmes que umas províncias nutriam de outras, receando que qualquer delas pudesse vir a ser superior às demais, sobretudo a que fora e continuava a servir de corte.

O Brasil, nem politicamente, nem socialmente era ainda homogêneo, como o tornou o império, fazendo valer a uniformidade da colonização que lhe emprestava uma semelhança de aspectos. Circunstâncias variadas de clima, de história e outras tinham distingido sobre o caráter local. Os próprios viajantes estrangeiros disto se apercebiam. Auguste de Saint-Hilaire menciona que os baianos eram geralmente reputados os mais inteligentes habitantes do Brasil, os pernambucanos os mais ardentes e independentes de caráter, os mineiros os mais pacíficos e industriosos, os paulistas os mais inflexíveis e perseverantes.

Não podia por um lado, para o ponto de vista português, dar-se melhor delegado do executivo nacional português do que o príncipe herdeiro, porque ninguém como ele podia tomar interesse pela integridade dos estados da monarquia sobre que deveria um dia estender-se o seu cetro: mas por outro lado, prendê-lo demasiado ao Brasil envolvia o risco de ver renovar-se no futuro o caso de Dom João VI, a saber, pelo desaparecimento deste, a escolha do Rio de Janeiro como sede permanente da realeza. E o que o Portugal constitucional mais que tudo temia e abominava era a idéia dessa subordinação. Convém não esquecer que a revolução de 1820 foi essencialmente a explosão do orgulho machucado. Os regeneradores vingavam agora o seu despeito impondo sorrateiramente ao Brasil a prévia disciplina e ofendendo na sua vaidade o príncipe Dom Pedro, notando-lhe publicamente a falta, aliás exata, de educação e ditando-lhe como a um pupilo a maneira por que devia completá-la, visitando e estudando os países do ocidente europeu, escolas de constitucionalismo embora limitado.

O sestro das juntas propagara-se até as férias parlamentares, e as Cortes pensaram em derivar da constituição espanhola mais uma sugestão, em última análise proveniente da convenção francesa: apenas o comité de que se tratou em novembro de 1821 não era de salvação pública, nem mais poderoso do que a assembléia. Era uma junta por assim dizer fiscal no regime constitucional e saída do seio da representação nacional, a qual lhe cabia convocar em casos de necessidade. Consoante o projeto e como era de justiça, seria ela composta de três representantes do reino europeu, três do ultramar e um presidente tirado à sorte entre dois membros das duas representações.

Tão perfeita igualdade, se era excelente em teoria e todos a aplaudiam como tal, na prática levantava zelos e antagonismos, mascarando-se com princípios e fórmulas. Puro federalismo essa repartição - exclamavam alguns; nas nações homogêneas e coesas, não há dessas distinções. Ora o federalismo é ou deve de ser um sistema de equilíbrio, não de sobreposição. A divisão eqüitativa estava mesmo em flagrante desacordo com o sentimento dos constitucionais portugueses que, para os comandos de armas, não se lembraram de um só brasileiro, o que ainda se compreende e se pode justificar; mas nem sequer deles se lembraram para os cargos de conselheiros de Estado interinos, na lista de 24 apresentada a el-rei para sua seleção.

A proposta da junta permanente passou por 69 votos contra 26, com a divisão: sua rejeição tornaria franca a política de predomínio e não chegara ainda o momento das afrontas irremediáveis. Note-se que a expressão ultramarinos era capciosa, porque abrangia tanto os asiáticos e africanos quanto os americanos, que se queria de resto nivelar com aqueles outros. Por isso era possível, em face do texto senão do espírito da constituição, preencher todos os lugares do conselho de Estado e da deputação permanente com exclusão propriamente dos brasileiros.

Se o lema geral era ainda a concórdia, alguns todavia já afiavam o gume às espadas e escorvavam os mosquetes. Cipriano Barata, por exemplo, viera da Bahia com o propósito feito de se não deixar embair pelos portugueses. No dia mesmo em que tomou assento (17 de dezembro de 1821), propôs que, de acordo com o artigo 21.º das bases constitucionais, se suspendesse a discussão do projeto de constituição até à chegada de toda a deputação brasileira, sendo até submetidos à apreciação e sufrágio desta, quando completa, os artigos da lei orgânica anteriormente aprovados.

O alvitre era até certo ponto lógico porque não valeria a pena eleger representantes se a estes não fosse dado emitir seus juízos e votos sobre assunto de tamanha transcendência Por outro lado não parecia razoável que a nação esperasse indefinidamente a chegada de parte do pessoal da sua assembléia representativa para iniciar a discussão do instrumento constitucional, para formular e obter o qual se fizera uma revolução. É mesmo corrente em casos tais deliberarem as assembléias com o quorum de ocasião, sobretudo quando corresponde à maioria cuja vontade tem de prevalecer, não havendo distinção entre os membros da casa, que encarnam os interesses coletivos.

Fosse qual fosse a razão que predominou no ânimo dos deputados brasileiros, o preopinante viu-se só ou quase e, perante a promessa de Fernandes Tomás, de serem reconsiderados os artigos constitucionais que sofressem impugnação, acedeu em retirar o seu requerimento, contra o qual a manifestação fora praticamente unânime. Não soara de fato a hora do rompimento e, num lado como noutro, reinavam esperanças de harmonia, alimentadas senão pela afeição, pelo menos pela conveniência. Nem convinha à maioria portuguesa reabrir o debate irritante sobre a remessa de tropas para o Brasil: melhor era reabordar o assunto com maior calma.

O projeto relativo à extinção dos tribunais superiores voltou porém à discussão nesse mesmo mês de dezembro porque assim se conviera, dando-se-lhe outra redação e maior amplitude ao debate. Este não ofereceu contudo nem a animação nem a vibração que deveria ter, porque o sentimento nacional ainda se não condensara no reino ultramarino, o qual na realidade se compunha de províncias sem tradições comuns, embora com aspirações que se encaminhavam para ser comuns.

Acresce que os tribunais superiores tinham sido apanágio da corte que voltara aos seus lares e marcara portanto uma superioridade que desaparecera, a bem da igualdade democrática dessas comunidades transatlânticas. Lino Coutinho achava mais que justo esse nivelamento e exultava com ele. Subsistiam as relações provinciais, para o julgamento de toda matéria contenciosa, e os recursos supremos, que cabiam à Casa da Suplicação do Rio de Janeiro, passaram para a de Lisboa, por não acederem os representantes brasileiros ao alvitre proposto por Borges Carneiro, para funcionar a relação fluminense como tribunal para revistas finais, aproveitando-se a circunstância de ser essa corte constituída por desembargadores do Paço.

Fagundes Varela, representante da província do Rio, teve uma compreensão tão peca do assunto que se mostrou jubiloso com a extinção dos tribunais superiores, nela não enxergando uma diminuição do prestígio da sua terra, antes a vantagem de se libertarem os litigantes de um bando de sanguessugas (sic) que eram a gente do foro. Na verdade eram os magistrados um dos terrores e das pragas da sociedade brasileira, mas o pobre deputado, que viera precedido de grande reputação, pagou com a maior impopularidade além-mar sua curteza de espírito e perdeu para o resto das sessões qualquer veleidade oratória.

Borges Carneiro que, apesar de ser de aquém-mar, percebia mais claramente o espírito ultramarino, quis de novo atenuar o golpe, que se traduzia materialmente por graves incômodos às partes no acompanharem seus processos de última instância em Lisboa. Apresentou uma emenda ao artigo constitucional n.º 158, o qual mandava executar a revista final das causas do Brasil pelas relações com maior número de ministros, dizendo que se tratava expressamente das relações brasileiras. Assim ficou, mas os baianos, no seu particularismo ainda não desbastado, queriam que a cada tribunal de relação coubessem essas funções (janeiro de 1822), o que nem numa federação se concebe e pratica.

Fernandes Tomás argumentava em favor do monopólio judiciário do reino europeu invocando a indispensável unidade da magistratura. Os brasileiros eram entretanto mais radicais no seu liberalismo do que os portugueses, mesmo democratas. A deputação americana, com exceção de Araújo Lima, que foi sempre um espírito conservador, votou no decorrer da discussão da lei orgânica pela eleição dos juizes, temporários e não vitalícios, no intuito de subtrai-los ao influxo do executivo, e entendia que o estado de sítio, isto é, a suspensão das garantias constitucionais não deveria ser aprovado senão por dois terços de maioria e de acordo com uma interpretação rigorosa da causa que o provocava.

Ao reformarem profundamente a organização judiciária nacional pela introdução do júri, mesmo no cível, as Cortes estabeleceram a responsabilidade dos juizes "por erros de direito e especialmente por infrações das regras processuais", competindo às relações o respectivo processo e sendo lícito a qualquer cidadão iniciar contra um magistrado uma ação "por suborno, conluio e prevaricação". Para remediar os inconvenientes óbvios de permanecer o querelado no desempenho das suas funções até a pronúncia, podendo praticar outros atos até piores, o projeto de constituição dava ao soberano a quem subisse a queixa a faculdade de suspender o juiz, após informações tiradas in loco e mediante parecer do conselho de Estado. O alvitre podia satisfazer Portugal mas não o Brasil, pela distância e delonga, incômodos e despesas que essa circunstância trazia à parte interessada, concedendo entretanto ao acusado amplo tempo para eventuais tropelias.

Cipriano Barata foi quem levantou a impugnação e o debate sobre ela foi instrutivo e acalorado. Borges Carneiro propôs que as próprias relações brasileiras decidissem sobre a queixa e a suspensão. Outros, dos maiores, insurgiram-se contra a pretensão determinada por uma insanável questão de geografia e acharam que esses tribunais ultramarinos ficariam demasiado sobrecarregados, com todas as atribuições que já tinham e as que lhes queriam emprestar, ao passo que ao magistrado ficava o recurso de um só juízo, o que aliás não era para temer porquanto o julgador não resultava único, antes diversos dentro da mesma corporação, cabendo a cada qual função diferente. Vilela Barbosa lembrou as juntas governativas que eram o superior poder executivo local, mas argumentou-se com a necessidade de garantir a independência do poder judiciário, no intuito de contrastar qualquer excesso de autoridade daquelas juntas.

Surgiu nesta altura do debate a questão das prerrogativas da Coroa, as quais deviam ser intangíveis. Estava-se em janeiro de 1822. Oradores negaram ao rei a prerrogativa da suspensão dos juizes por não figurar a mesma entre as enumeradas na constituição, sim entre as que não pertenciam ao monarca, salvo casos especiais, pertencendo portanto à soberania nacional em vez de caber nas funções próprias do trono que lhe não fosse lícito delegar, sendo o rei impecável. Araújo Lima distinguiu muito lucidamente entre impecabilidade e irresponsabilidade, predicado este último proveniente da natureza do pacto constitucional. "Os poderes do Estado, criados no interesse dos povos, têm a jurisdição que lhes quer dar a sociedade. Assim numa nação o rei delegará certos privilégios e não o fará em outra, porque o não exige a utilidade social".

Se a prerrogativa do indulto compete ao monarca e a distância priva os brasileiros do melhor da sua eficácia e benefício, quando mesmo transferível seu exercício, ficava com isto registrada, no dizer de Vilela Barbosa, mais uma desigualdade entre os povos das duas seções da Monarquia. E tais desigualdades eram as que fomentavam a desunião - fez ver Antônio Carlos, recém-empossado, no seu maiden-speech [10].

A desunião entre Portugal e Brasil entrara a tornar-se evidente ao tocar-se qualquer assunto. Lino Coutinho comparou as concessões feitas ao reino americano com a comida em frascos que na fábula a cegonha oferece à raposa. Vilela Barbosa fez sentir quão estreitamente se procurava fazer toda a administração brasileira sujeita à portuguesa, no espírito da máxima de Maquiavel - dividir para governar. Entretanto na época colonial aos delegados supremos da autoridade real era dispensada a atribuição de suspender no interesse público os juizes, a qual agora se abolia - ponderou o padre Marcos Antônio de Sousa, erudito deputado baiano [11].

Passava-se isto na sessão de 13 de fevereiro de 1822 e já então os dois reinos se tinham tão visivelmente apartado um do outro, que Vergueiro podia com desassombro dizer que se devia cuidar das condições da união porque, nas suas palavras, "o Brasil está pronto a ligar-se a Portugal, mas não segundo a marcha que leva o Congresso". A oposição dos interesses respectivos ainda se manifestaria porém ao tratar-se da organização do tribunal supremo de Portugal, quando voltou à tona a questão da sua composição por membros do reino e do ultramar. A proposta de Borges de Barros (4 de março de 1822), que foi prontamente repelida, não pecava por falta de clareza: estipulava que o número dos juizes do supremo tribunal, do qual dependia o conhecimento das infrações do direito cometidas pelos desembargadores e ministros executivos, fosse metade de portugueses e metade de brasileiros.

A intransigência das Cortes acabaria fatalmente por estimular a resistência brasileira e ia entretanto emprestando aos poucos ao príncipe constitucional, a quem na sessão de 9 de maio de 1821 propusera o deputado português Alves do Rio fosse dirigida uma carta de congratulação pela parte que ele tomara na direção dos acontecimentos do Rio de Janeiro - "estou informado por cartas particulares do muito que este Senhor tem contribuído" - ares de vítima patriótica, enquanto lhe não inspirava ímpetos de arcanjo vingador.

O processo a seguir pelas Cortes traçava-o Mareschal com diplomacia [12]: era captá-lo com lisonjas para que se fosse sem barulho. Fazia-se da mesma forma a independência, escrevia ele; mas fazia-se com anarquia, que era o que lhes podia ser de vantagem. Com um centro de convergência que era ao mesmo tempo uma fonte de autoridade, em vez de anarquia reinaria ordem no processo de separação.

  1. Dão disto prova suas cartas ao ministro Tomás Antônio. Da de 31 de julho de 1817, pouco depois da sua chegada, destaco o seguinte trecho: "Entre os meus últimos ofícios tenho a honra de levar à presença de S. M. uma participação das medidas que tenho tomado a favor do hospital desta cidade: é um caso tão interessante pela desgraça a que é reduzida a classe indigente do povo, que prefere o desamparo e a morte ao tratamento dos hospitais, que não posso deixar de convidar a V. Ex. outra vez para concorrer da sua parte para a melhor sorte destes infelizes". Na carta de 2 de fevereiro de 1818, ocupando-se do caso de José Carlos Mayrink, escrevia Luís do Rego: Falando de um homem, posso afirmar a V. Ex. que mais alguns estão no mesmo caso e todos voltam os olhos para a bondade do seu rei para lhes servir de abrigo contra os seus infortúnios. Por muitas vezes tem corrido o boato de que chegou o perdão à vinda de qualquer navio, e por outras tantas se tem mudado esta alegria em um desfalecimento geral; isto é prova clara da desconfiança em que todos estão. Meia dúzia mais de primeiros réus justiçados, e um esquecimento perfeito de tudo, é sem contradição alguma o que convém à revolução de Pernambuco, porque ela só foi devida à frouxidão contínua do seu governo, e aos chefes da facção; todos os outros são homens, que nunca teriam assinado papéis, nunca teriam feito serviços aos rebeldes, nunca teriam saído da rua, em que nasceram, ou habitavam, se uma desordem, para que eles não concorreram, ou não pusesse nas circunstâncias apertadas de tomar um partido. Poucos homens têm coragem para serem mártires da nação. Enfim, Exmo. Sr., é necessário que V. Ex. me ajude a salvar este povo de tantos males; eu tenho visto nada há mais tempo, e de mais perto que o mesmo juiz da alçada; e, se não tenho tirado uma devassa geral, também não tenho dado atenção ao que dizem homens sem crédito, e sem cabeça para entenderem o que têm visto: é preciso ouvir homens de bem, homens de probidade conhecida, e não ouvir quatro dias sucessivos um vendilhão, ou tais e semelhantes homens. Peço e rogo a V. Ex. desvie tão grande mal desviando-me também da triste colisão de ver arruinar esta capitania, e seus habitantes, de semear novos males no seio de famílias já quase tranqüilas e de indispor a vontade pública, quando não estamos nas circunstâncias de a desprezar".
  2. Drummond acusa-o mais de ter tecido enredos tendentes à dissolução da Constituinte de 1823, sempre num espírito português. Ninguém lhe tisnou jamais a honradez, como a outros, que se precaviam. A maledicência sobre estes chegou no entanto aos ouvidos de Dom Pedro e a prova de que lhe deu crédito está em que a bordo da Warspite, quando alguns se desmanchavam em lamúrias pela falta que lhes faria tão excelso protetor, e Paranaguá chorava sua pobreza, ouviram dos seus lábios mal-humorados a pergunta cortante que o representante da Áustria, barão de Daiser, recolheu na sua correspondência diplomática: "Por que não roubaram como Barbacena, que agora está rico? Estariam bem agora". Dom Pedro tinha aliás a facilidade muito nacional de passar diploma de ladrão. Numa carta ao conde das Lages assim trata sem rebuço; o marquês de Barbacena, Sua natureza honrada e impulsiva revoltava-se ao primeiro rebate. Paranaguá, que em 1821 já tinha mais de 50 anos, tinha umas cortesanias do antigo regime e não duvidava, como os ministros de Luís XV, servir-se, a bem das suas idéias ou dos seus interesses políticos, da influência da favorita imperial, mas quando esta pretendeu impor sua presença odiosa á imperatriz Leopoldina, no seu leito de morte, o marquês do império teve um assomo de piedade e de revolta contra o ultraje vil e proibiu terminantemente à Domitila a entrada na câmara da augusta enferma. O imperador achava-se nessa ocasião no Rio Grande do Sul.
  3. Refere-se certamente Cairu ao ensaio revolucionário que ocorreu em 1798-1799 e sobre o qual reuniu documentos interessantes e publicou erudito estudo o Dr. Borges de Barros, diretor do Arquivo Público da Bahia.
  4. Por ocasião da guerra de emancipação da Banda Ociental, iniciada em 1825 por Lavalleja e Rivera, quando as forças brasileiras sofreram as derrotas de Rincon de las Gallinas e Sarandi e o Rio Grande do Sul esteve a ponto de ser invadido, após a destruição do corpo de exército comandado por Abreu (Cerro Largo), Fernandes Pinheiro, presidente então da província meridional, esteve perfeitamente a altura da situação e soube tomar com acerto e energia medidas mesmo militares (C. L. Fregeiro, La batalla de Ituzaingó, Buenos Aires, 1919).
  5. Tomás Antônio, se bem que ultra-conservador, era partidário decidido da abo1ição da escravatura, que desejava ver iniciada e reputava um bem para Brasil, ainda que este sofresse temporariamente (Melo Moraes).
  6. As instruções rezavam serem imperiosos os cuidados "sobre melhorar a sorte dos escravos, favorecendo a sua emancipação gradual e conversão de homens imorais e brutos em cidadãos ativos e virtuosos, vigiando sobre os senhores dos mesmos escravos para que estes os tratem como homens e cristãos, e não como brutos animais, como se ordenara nas cartas régias de 23 de março de 1688 e de 27 de fevereiro de 1798".
  7. A teologia seria ensinada nos seminários episcopais.
  8. Decreto de 1.º de dezembro de 1820.
  9. J. da Silva Lisboa, ob. cit.
  10. A respeito de se dizer - assim rematou o discurso - que os povos apesar de gozarem dos mesmos direitos não hão de ter todos as mesmas comodidades, digo que se isto assim fosse, a nossa união duraria um mês. Os povos do Brasil são tão portugueses como os povos de Portugal e por isso hão de ter iguais direitos. Enquanto a força dura, dura a obrigação de obedecer. A força de Portugal há de durar muito pouco, e cada dia há de ser menor, uma vez que se não adotem medidas profícuas e os brasileiros não tenham iguais comodidades".
  11. Toda esta discussão acha-se excelentemente tratada no livro do Sr. Gomes de Carvalho.
  12. Ofício a Metternich de 22 de janeiro de 1822.