O reino do Brasil já contava em 1822 com a sua diplomacia privativa. Encarnava-se na Europa o futuro marquês de Barbacena, a quem José Bonifácio fez encarregado de negócios ou antes dos negócios, não sem escândalo do contemplado à vista da sua patente militar de marechal de campo, que lhe parecia merecer categoria mais alta. Para o bom resultado da sua gestão pouco importava a denominação. Barbacena era naturalmente ladino e partindo das premissas, que estabelecia, de que o governo britânico só tinha intimidade com os ministros que sacrificavam os interesses da sua pátria aos da Inglaterra [1] e de que ele pelo contrário antepunha os primeiros aos segundos, tinha que entrar no jogo político com os trunfos da astúcia e da previsão.

Seu espírito acusou sempre uma feição utilitária, isto é, desde moço, na Bahia, o fascinaram os progressos materiais com os quais queria conjugar o desenvolvimento social, pelo que se sentia bem na Inglaterra, pátria das indústrias e pátria do governo representativo. Para a falta de união das províncias brasileiras por exemplo, encontrava ele um remédio certo na maior facilidade de comunicações entre elas que traria a aquisição de barcos a vapor, então nos seus princípios, os quais reduziriam a quinze dias a viagem do Rio de Janeiro ao Amazonas ou antes Pará, com as escalas principais, pois "os barcos da força de cem cavalos andam 10 milhas contra o vento, e maré nos mares da Escócia, e levam as cartas com a mesma regularidade de hora dos correios de terra. Em ocasião de furiosos temporais há de haver alguma diferença, mas os furiosos temporais são tão raros na zona tórrida que pouca consideração merece essa diferença" [2].

Poderia no senso prático que distinguia Barbacena infiltrarem-se algumas ilusões a par de outras tantas antecipações, como a do carvão de pedra nacional; mas era bem verdadeiro o seu conceito, então enunciado, de que o Brasil naquela ocasião precisava sobretudo de militares, de banqueiros e de maquinistas: os primeiros para defenderem-lhe a integridade; os segundos para o salvarem da bancarrota - o banco, a praça e também o Estado - visto que novos tributos não eram viáveis e seria possível obter um empréstimo com a hipoteca da remessa de diamantes e pau-brasil e parte do rendimento de certas alfândegas; os terceiros para valorizarem-lhe os recursos. Não lhe parecia sequer demasiado desenvolver lá a indústria siderúrgica apesar dos obstáculos levantados pelo governo britânico, vindo a fabricar-se no país mesmo máquinas, dificílimas de serem transportadas serra acima, para esgotamento das águas com o fito de aumentar muito a produção do ouro das lavras de Minas Gerais.

Barbacena não deixava de partilhar de um defeito comum aos diplomatas de todos os tempos e de todos os países, que é o de observarem as coisas por um prisma falso, exageradamente estrangeiro ou exageradamente nacional. Pensava ele que à Santa Aliança repugnaria reconhecer um Brasil completamente independente, possuidor de uma soberania sem restrições, mas que era óbvio que aplaudiria qualquer atitude decidida que Dom Pedro tomasse contra as Cortes usurpadoras da autoridade real, indo mesmo até retirar os representantes brasileiros da Assembléia de Lisboa, convocar deputados de todas as províncias na sua capital americana, segundo o que ocorria noutras monarquias duais como a Suécia e Noruega e a Grã-Bretanha e Hanover, romper os laços políticos estabelecidos pela revolução regeneradora e elaborar uma constituição nacional brasileira.

Sua visão de estadista era contudo ampla bastante para que seus possíveis preconceitos europeus, bebidos nas Cortes que entrara a freqüentar, não chegassem ao ponto de levá-lo a votar ao ostracismo as idéias liberais que ele sentia estavam fadadas para o triunfo. Já vimos que achava que para o Brasil estava pronta a faina da preparação de uma lei orgânica pois que "A Constituição Americana com palavras, e fórmulas monárquicas é quanto nos convém", escrevia a José Bonifácio [3]. Um banqueiro inglês lembrava ao mesmo tempo que a expressão - Cortes andava em tamanho descrédito na Europa conservadora por causa dos desmandos doutrinários da Espanha e de Portugal, que vantajoso seria dar à Assembléia Brasileira o nome britânico de Parlamento porque, quase toda a gente deixando-se levar por palavras, essa mudança de rótulo representaria um benefício de 2% no empréstimo projetado.

Fazia Barbacena grande caso da sua profissão militar e punha grande garbo nas suas relações militares, e como não via no Brasil como recrutar gente suficiente para sua defesa tão espalhada, preconizava a importação de mercenários da Irlanda, França e Suíça, embarcando os dos dois primeiros países como agricultores e seus oficiais como administradores, para iludir os respectivos governos se é que estes não fechavam por si os olhos. De todos considerava os melhores a serem engajados os irlandeses, porque a situação da ilha era como sempre desgraçada e porque como cultivadores de trigo e salgadores de carne sua colonização estava muito apropriada para o Rio Grande do Sul, que era a zona particular dos atritos entre as duas grandes raças peninsulares povoadoras da América do Sul e ficava próximo à ilha de Santa Catarina, em cuja ocupação se falava correntemente em Portugal [4].

A Barbacena parece pertencer a prioridade da idéia de contratar-se lord Cochrane - "ouço que é muito amigo de dinheiro, escrevia ele3, e que está em discórdia com S. Martin" - a fim de pelo menos bloquear o porto da Bahia e desmoralizar com o prestígio do seu nome o inimigo ali concentrado. Além do almirante inglês, fácil devia ser engajar algum "bravo americano com suas fragatas" - estavam frescas na memória de todos as brilhantes façanhas navais dos Estados Unidos na guerra de 1812 - e também as tropas estrangeiras Bolívar tinha sob seu comando e que entravam a ser-lhe dispensáveis pois que era fatal a rendição do Peru, último baluarte espanhol na América do Sul. Por tudo quanto ocorrera parecia até conveniente misturar com ingleses e americanos os marinheiros portugueses, e oficiais das armas científicas, pelo menos, não podiam deixar de ser necessários.

Num ponto insistia com razão o primeiro diplomata do Brasil imperial e era na vantagem de grangear as boas graças da Grã-Bretanha mediante a estipulação de um prazo curto para a cessação do tráfico de escravos. A filantropia inglesa andara nesta questão bastante tempo sobrepujada pelo interesse comercial, que até levara o gabinete britânico a obter da Espanha por tratado o monopólio do tráfico para as colônias espanholas; mas filantropia e interesse tinham acabado por entender-se e associar-se ao ponto que a admissão franca do assacar brasileiro no mercado inglês seria porventura uma das conseqüências da medida abolicionista recomendada por Barbacena.

Escrevia este que não havia homem público de importância na Inglaterra que não fosse contrário à escravidão e afigurava-se-lhe que o Brasil só teria a lucrar com fazer a abolição contemporânea da sua própria emancipação. Se era ela antipática ao sentimento público brasileiro, acostumado ao trabalho servil, valia por isso mesmo a pena, da opinião de Barbacena, que fossem os ingleses os que incorressem no odioso suscitado pela sua eliminação. O diplomata como que previa o bill Aberdeen e a cessação do tráfico determinada pela imposição estrangeira.



Eram múltiplos os objetos de que Barbacena tinha a cuidar na sua missão até certo tempo oficiosa, mas nem por isso de um caráter menos substancialmente diplomático. A entrevista com Beresford foi seguida de outra mais formal em que o marechal inglês, falando virtualmente pelo governo britânico depois de conferenciar com o Foreign Office, sugeriu ao Príncipe Regente que buscasse a mediação da Inglaterra no caso de recear deveras que se verificasse a hipótese da guerra civil e de querer sustar a projetada expedição portuguesa. S. M. Britânica, "como medianeiro no ulterior arranjo dos dois Continentes, empregaria todos os meios de conciliação para terminar as diferenças de uma maneira honrosa, e útil a ambas as partes" [5].

Barbacena achava mesmo que Beresford formulava sua insinuação por conta do ministério inglês, sendo aliás a melhor concretização, a mais benéfica para os interesses de uma e outra parte, da idéia lançada pelo antigo procônsul britânico em Portugal de apelar Dom Pedro para os soberanos da Europa à vista da situação de Dom João VI que, por não haver seguido o conselho britânico de ficar nas Ilhas, longe da tutela das Cortes, se via "reduzido a Grão-Lama sem autoridade de propor ou impedir qualquer lei, e assinando quanto lhe mandam". É claro que o gabinete de St. James protestava sempre não querer intrometer-se nas dissensões internas da monarquia portuguesa; mas como dizia sentir os males de ambas as suas seções, desejava concorrer para o bem da nação em geral sem tomar partido por este ou aquele reino.

O plano de Beresford era que, solicitando a mediação britânica, como por fim aconteceu para o reconhecimento do Império, e expondo as reclamações derivadas da usurpação pelas Cortes de quanto era regalia e autoridade da coroa, o Príncipe Regente não melindrasse seu pai, não repudiasse Portugal e não rompesse a integridade do Reino Unido. "Ele deve lisonjear o amor próprio dos brasileiros, mostrando-se persuadido que eles perderão contentes a vida em defesa da sua pessoa, e direitos, mas que por isso mesmo maior é sua obrigação de evitar a guerra civil; deverá garantir que eles querem a união, mas com dignidade, que concorrerão para as despesas gerais mas tendo no Brasil uma pessoa real com Parlamento Brasileiro para que nenhum dos Reinos possa intervir na administração particular do outro" [6].

Reproduzindo estas opiniões, Barbacena exultava porque nelas achava o reflexo das suas próprias, anteriormente manifestadas a José Bonifácio [7]. "Não proponho - escrevia ele então- a declaração de Independência ou Aclamação de S. A. Real em Soberano do Brasil, porque esta medida tornando-o desobediente a seu pai, e privando-o da herança de Portugal também embaraçaria o reconhecimento dos Soberanos da Europa, que estimando, e aprovando todos à resolução de ficar S. A. Real no Brasil, não podem fazer ato algum público contra os princípios de Legitimidade garantidos pela Santa Aliança, quando aliás em Regente do Brasil, e fazendo o que adiante lembro, será reconhecido por todos os soberanos, terá a glória de fundar num novo Império, e mudará a triste sorte de seu pai, e de Portugal" [8].

Beresford e Barbacena estavam com a hora política atrasada. No Brasil já estava passado o zenith da união e as próprias Cortes Portuguesas, não querendo abolir no seu seio a representação das províncias de além-mar que se haviam ligado ao príncipe, porquanto tomavam tal deliberação como emanada das suas juntas e esperavam que fossem eleitos os deputados à Constituinte Brasileira para então acatarem a vontade popular manifestando-se favorável à separação das assembléias, foram as que ensinaram a respeitar a expressão da soberania nacional. As Cortes timbravam na deferência as fórmulas quando mesmo violavam a essência do self-government. Barbacena dava em todo caso boa cópia do seu tino quando falava em serem estipuladas por uma convenção especial as relações comerciais entre os reinos desunidos. Os interesses mercantis e econômicos de Portugal constituíam de fato a preocupação máxima das Cortes.

No conceito destas a Santa Aliança preteria-lhes o príncipe, a quem diziam abertamente protegido pelo sistema reacionário. De uma excursão pelo continente trouxe com efeito Barbacena a impressão de que Dom Pedro gozava da maior consideração e seu gabinete da melhor reputação: pelo menos assim o referia [9] , e é verdade que o Imperador da Rússia costumava até exclamar com freqüência - Viva o rapazinho, aludindo ao dito de Borges Carneiro, que Barbacena qualificava de "tremenda insolência", e vaticinando que seria aquele outro Pedro o Grande. Ora, para não ver comprometida essa "pública aprovação" é que o agente diplomático brasileiro não queria ver seu país afastar-se do espírito monárquico ainda que constitucional. O próprio ministério britânico, mandava ele dizer para o Rio, "nutria receios" sobre a força da torrente democrática no reino americano. Beresford informou Barbacena na entrevista que tiveram em junho que os brasileiros tinham adquirido na Inglaterra fama de "demasiadamente democratas" e que o gabinete inglês estava persuadido "que a afeição que ora mostram pelo príncipe é fingida enquanto se fortificam contra Portugal". Respondeu-lhe Barbacena que não duvidava "que nas cidades marítimas aonde existe maior número de negociantes portugueses, abunde, mais ou menos, de furiosos democratas, nem isso admira porque neste mesmo país (Inglaterra) a gente pobre, e das ocupações ordinárias da sociedade são radicais. Quanto porém ao interior do Brasil, e principalmente nas províncias de S. Paulo e Minas Gerais, todos são partidistas da Monarquia temperada" [10].

Se assim pensava o governo de Londres, como o não pensariam os outros? A idéia predominante entre os gabinetes conservadores da Europa era que, a haver constituição, fosse esta sob a forma de uma Carta outorgada pelo soberano e não de uma declaração de direitos, equivalente a uma expressão da soberania nacional e das garantias inerentes à atividade do cidadão. Tal era também a preferência de Dom Pedro, que ele não ousou formular em 1822 porque tinha presente a sábia recomendação paterna [11]; que o levou no ano imediato a dissolver a Constituinte; que o fez procurar em 1824 o meio-termo de uma constituição redigida por uma comissão ad hoc e aprovada pelas câmaras municipais, e que em 1826 o decidiu a conceder a Portugal a carta cujo destino teve que ser decidido numa porfiada guerra civil.

Um dos maiores diplomatas da Europa na frase de Barbacena, que não diz entretanto quem fosse, observou-lhe que o Príncipe Regente tinha "agora bela oportunidade de dar um grande golpe, e lição a Portugal. Deve apresentar uma Magna Carta, que sem ofender a essência dos Governos Monárquicos, segure em toda extensão possível os direitos, e privilégios do Povo, a fim de ser completamente aceita pela Assembléia, a qual longe de perder o tempo em discussões, e vaidosa ostentação de eloqüência, se ocupará das leis (segundo os princípios da carta) para o bem da administração da Justiça, e Fazenda. Não perder tempo a Assembléia do Brasil com pedantarias do colégio, é já um grande bem mas acresce outro, que é dar aos portugueses a mesma carta, tirando a nação do precipício em que se acha de reunir-se a Espanha. Se a constituição for feita pela assembléia, dirão os portugueses que não tiveram nela representantes, e portanto a não podem admitir: Se porém for dada por S. A. Real e aceita pelos brasileiros, que dirão os portugueses?".

Uma carta constitucional outorgada aos dois países significava destarte a preservação da sua união pelo laço pessoal do soberano. O governo britânico não favorecia por certo um regi-me absoluto, contrário às suas próprias tradições e sentimentos, e sua influência, que despertava nos Estados Unidos ciúmes que dentro em breve se Cristalizariam numa doutrina exclusivista, carecia, para melhor se exercer, que o príncipe contasse com a afeição, respeito e obediência dos brasileiros [12].

Para a Santa Aliança o império brasileiro, embora vazado num molde constitucional, representava a única sobrevivência na América do princípio monárquico europeu e era assim uma porta de entrada mais acessível para os interesses do Velho Mundo no Novo Mundo. Não convinha portanto levar o Brasil a fazer em tudo causa comum com o resto do duplo continente, já sendo bastante a fatal pressão do habitat, das idéias políticas e do intercurso social. O Brasil carecia, é verdade, do reconhecimento europeu e Barbacena, desde que se esboçou a hipótese da mediação, lembrou a José Bonifácio que juntasse à da Inglaterra a da Áustria, cujo prestígio estava em seu apogeu. O pan-americanismo já constituía porém um instinto, cuja consciência levaria tempo a desenvolver-se.

A Inglaterra, que não visava senão a primazia no globo, que a tinha a bem dizer alcançado com a queda de Napoleão, e que no hemisfério ocidental enxergava um vasto e prometedor campo de lucros, era a primeira a saber que uma aliança das novas nacionalidades que se iam constituindo seria, dado o caso que se formasse, toda em proveito das suas antigas colônias emancipadas nos Estados Unidos. Urgia portanto que ela tirasse vantagem das simpatias que soubera criar-se entre as colônias espanholas e a que se não conservaria alheia a portuguesa, se lhe fosse prestado qualquer concurso.

A neutralidade britânica era nestas condições uma ficção: de fato o governo inglês andava ativamente interessado, e mais o ficou depois que Canning entrou para o gabinete em setembro de 1822, na composição dos problemas da grande seção do mundo que irrompia para a vida independente. A Inglaterra não pretenderia arcar com um continente coligado; mas antes que isto se desse, pretendia ter nos negócios americanos a sua participação e, se possível, a sua preponderância. Para tanto era-lhe indispensável a amizade brasileira, como ao Brasil era por sua vez essencial a coadjuvação inglesa. No terreno em questão pelo menos eram recíprocos os interesses dos dois países. À Grã-Bretanha repugnavam como aos Estados Unidos a recolonização pelas antigas metrópoles e novas conquistas por outras potências européias, cabendo na primeira categoria a submissão do reino ou império brasileiro pelas forças da mãe-pátria, se bem que o móvel do reino português fosse incomparavelmente mais a reconquista comercial do que a política.

Um Brasil aliado aos Estados Unidos não lhe podia contudo sorrir e o regime monárquico por aquele adotado, se não se levantava como um obstáculo a um entendimento como os fatos se encarregaram de demonstrá-lo, sempre traduzia para a Grã-Bretanha uma condição imanente de aproximação, oferecendo ela por garantia sua não identificação, para não dizer seu afastamento da Santa Aliança. Sua convicção de que o Brasil devia permanecer liberal, mas não ir além disso, era porque seria esse o meio de a um tempo manter-se no continente americano uma Monarquia que a designação de exótica já espreitava, de não incorrer no desagrado da Santa Aliança ao ponto de se tornarem incompatíveis e de firmar uma concordância de vistas e de índole com a Monarquia Britânica.

Na ordem da política interna do Brasil as conveniências eram idênticas. Havia que não querer suprimir violentamente a sugestão republicana que já se implantara. Barbacena escrevia a José Bonifácio[13] que "se nas medidas adotadas no Rio de Janeiro depois da reunião dos Deputados houver alguma que não seja liberal, e própria de uma Monarquia Constitucional, ai de nós que sofreremos guerra civil, e desgraças por longo tempo! Se porém tudo for conforme ao espírito público, como espero das luzes de V. Exa., e do gênio do P. Augusto, que nos rege, as províncias dissidentes se envergonharão, e por sua conveniência virão imediatamente prestar obediência. Os portugueses mesmo nos terão inveja, e deitarão por terra seu mau governo".

Se o governo britânico acolhia com agrado um regime constitucional que não fosse entretanto democrático, os outros governos europeus que não os da Península Ibérica mais afastados ainda estavam de toda expressão ultra-liberal, e as informações que José Bonifácio recebia e que corroboravam suas próprias meditações, pesavam sobre seu espírito no sentido de aconselhar-lhe uma prudência política que brigava com seu temperamento vivo e apaixonado, mas não Com sua razão disciplinada pela cultura científica. De Paris escrevia-lhe Barbacena a 20 de agosto que os receios do ministério britânico sobre a torrente democrática no Brasil eram "transcendentes a vários outros gabinetes, e por isso para S. A. Real ir de acordo com eles, e segundo o espírito constitucional de que S. A. Real está animado, é urgente estabelecer a organização política do Brasil sobre instituições monárquicas, que tendendo a consolidar a mesma organização política neutralizem a ação do partido democrático. Para consumar porém esta obra entendem os grandes homens de Estado com os quais tenho falado, que S. A. Real não deixe subordinar sua política às decisões caprichosas da facção regeneradora de Lisboa, mas sim única e privativamente ao que for de interesse do Brasil, e concernente a dar-lhe o merecido realce, porque a todo tempo terá lugar o estipular com o governo de Portugal (logo que ali haja um governo legítimo) as condições decorosas, e razoáveis da união dos dois reinos".

Na atmosfera política européia Barbacena ainda podia julgar possível a manutenção do Reino Unido pelo vinculo pessoal de um soberano comum; mas além-mar já se evidenciara a impossibilidade dessa preservação política e se tornara palpável e até imediata a solução da independência. A questão estava antes, ou melhor dito estava toda na subseqüente modalidade constitucional. As assembléias tumultuárias, anárquicas e tirânicas inspiravam desconfiança e receio. Por isso os "grandes homens de Estado" a quem Barbacena aludia entendiam, como aliás sentia José Bonifácio, que "no estado atual da exaltação do espírito público nesse Reino será imprudente a convocação de todo corpo deliberante mui numeroso, e julgam que para discutir nesta conjuntura quanto diz respeito a organização política do Brasil suficiente fora o Conselho de Estado convocado pelo Decreto de 16 de fevereiro, contanto que se dê a devida importância às suas deliberações".

Barbacena não se descuidara de discretamente procurar influir, como lhe cumpria, para criar na imprensa uma opinião favorável ao Brasil, para isto valendo-se dos seus conhecimentos. Os sucessos por si eram porém sugestivos e diretamente ditavam as apreciações que a diplomacia buscava. Referindo-se aos debates violentos das Cortes de Lisboa, o Times escrevera por exemplo que negócios dessa natureza não se terminavam com argumentos de retórica e de lógica, mas com força física, e quando foi do 13 de maio, isto é, da declaração do Príncipe Regente de aceitar o título de defensor perpétuo, o mesmo órgão, com todo o prestígio que lhe dava a respeitabilidade de que gozou no século XIX, aconselhava Portugal a que não cavasse a sua total ruína, "lembrando-lhe que se Inglaterra não pôde com os Estados Unidos, se Espanha não pôde conservar ao menos uma Província com suas expedições, que fará Portugal com o sistema de guerra?" [14].



Barbacena entrou em negociações diretas para o reconhecimento do Reino do Brasil, antes da proclamação do Império subseqüente à independência, servindo-se dos bons ofícios do encarregado de negócios da Áustria barão Neuman. Ficou previamente entendido que para não haver comprometimento ele falaria como general ao serviço de S. A. Real, sem declarar antes de tempo sua comissão diplomática, isto é, sem assumir caráter político. O barão Neuman prestara-se à mediação mesmo porque acreditava, ou pelo menos julgava adequado que o gabinete inglês se concertasse para tal fim com os outros aliados. De fato porém tal reconhecimento por parte da Grã-Bretanha, com a subsistência bem entendido da suserania de Dom João VI nos dois hemisférios, teria sido pronto se apenas o Brasil se houvesse desde logo prestado a abolir o tráfico dos escravos.

Canning esquivava-se ao reconhecimento de uma independência integral porque esta o obrigaria moralmente a reconhecer as nações neo-espanholas da América, o que ainda era considerado prematuro nesse momento. Também Canning se recusava a admitir o estado de cativeiro do monarca português porquanto, a admiti-lo, teria que retirar seu ministro de Lisboa e quiçá interromper as relações comerciais com Portugal. Não deixava entretanto de dar razão às queixas do Brasil contra a antiga metrópole e na atitude do reino americano só tinha que censurar sua obstinação em prolongar o tráfico negreiro. À vista das esperanças que sobre o assunto lhe deu o agente brasileiro, Canning mostrou-se tão conciliador e tão simpático à causa ultra-marina que conveio até em receber ministro e cônsules do Brasil, alegando-se para Portugal o interesse britânico de não interromper suas relações mercantis [15].

Tendo Canning solicitado de Barbacena uma exposição escrita de motivos, objetou este que só em caráter público o poderia fazer, mas o secretário de Estado dos negócios estrangeiros advertiu que o objeto do seu pedido era precisamente apresentar ao conselho de ministros as razões para o reconhecimento da categoria diplomática do enviado, pelo que concordou Barbacena em continuar a agir como militar tão somente.

A pedido de Canning, Barbacena suprimiu da exposição que primeiro mandou quanto se referia à coação real, insistindo apenas, pela recomendação do mesmo, nas injustiças cometidas por Portugal contra o Brasil e nos méritos do Príncipe Regente para resistir às Cortes de Lisboa. O agente brasileiro observou com intenção que muito estimariam os portugueses que não fosse a Inglaterra a primeira potência a praticar esse ato de justiça internacional, para poderem fomentar intrigas no Brasil contra os negociantes ingleses. Canning não era entretanto homem que se deixasse levar por argumentos que não fossem muito positivos e voltou por sua parte ao ponto que mais tinha a peito prometendo até o reconhecimento da independência se Dom Pedro de seu lado prometesse abolir o tráfico de escravos.

Respondeu Barbacena que nela ele, nem ninguém poderia na Europa garantir que o príncipe faria isto ou aquilo; pois que dependia das circunstâncias em que entravam a exaltação nacional, os agravos dos regeneradores e a indiferença ou simpatia dos soberanos aliados. Tudo isto pesava mais no espírito do príncipe do que seus próprios sentimentos, os quais eram indubitavelmente filantrópicos e concordavam aliás com a razão, pelo que não duvidaria Barbacena apostar que, feito imediatamente o reconhecimento, cessaria em quatro anos o nefando comércio, máxime se a Inglaterra admitisse o consumo do açúcar brasileiro.

Barbacena era da escola dos que tratam logo de tirar o maior número de vantagens e já nessa ocasião (16 de novembro) tinha informação, posto que não oficialmente confirmada, do 7 de setembro. Nesse mesmo dia 16 teve ele nova entrevista com Canning, nela reclamando o estabelecimento com reciprocidade da representação diplomática e a exigência pelo governo britânico, como medianeiro em Lisboa, da suspensão de novas expedições contra o reino americano e retirada das tropas portuguesas da Bahia. Assim sendo estaria o governo brasileiro disposto a favorecer as relações comerciais com a antiga metrópole. Era portanto uma transação o que ele propunha, ou pelo menos a correspondência de uma promessa a um ato positivo de benevolência, mas no tocante à questão dos negros, Barbacena estava longe de querer comprometer-se igualmente com a Inglaterra, sob pretexto de que os brasileiros eram gente que "por generosidade e gratidão farão tudo, mas por ameaça coisa nenhuma".

O reconhecimento da independência puro e simples, sem condição alguma, mas acompanhado de uma intervenção para acabar com as hostilidades entre Portugal e Brasil -, eis o que o agente brasileiro esperava do governo britânico, o qual por si apenas exprimiria o desejo de que no Rio de Janeiro se soubesse dar valor a essa política generosa, cimentando a amizade das duas nações com uma medida francamente abolicionista. Barbacena ajuntou para reforço da sua argumentação na conversa com Canning que "perderia a cabeça" se o príncipe Regente procedesse diversamente, não deixando entretanto de ponderar para lá [16] que "pouco importa que eu perca a cabeça uma vez que o Brasil consiga o que deseja". É de justiça acrescentar que pessoalmente Barbacena opinava pela abolição do tráfico.

Canning e lord Liverpool, que era o primeiro ministro, não se entregaram à diplomacia de Barbacena, alegando que reconhecimento e mediação deviam ser resoluções conexas com a abolição, porque de outro modo o gabinete se sujeitaria a graves ataques parlamentares; pois que continuando suspenso o reconhecimento dos países de origem espanhola que tinham extinguido o tráfico de escravos, assim catando a simpatia inglesa, seria pelo menos ilógico, senão iníquo, que se reconhecesse precisamente o país que persistia em fomentar tão horrendo comércio.

Além disso à oposição parlamentar britânica os liberais portugueses não podiam ser antipáticos, porquanto professavam a doutrina constitucional em forma embora extremada, ao passo que o Príncipe Regente do Brasil era por eles denunciado como despótico. As negociações fracassaram neste ponto e por esse motivo, com grande desapontamento de Barbacena que por si admitiria a condição - ad referendum como não podia deixar de ser - porque estava persuadido de que o Brasil não lograria resistir à pressão moral, mais ainda do que material, que sobre ele se exerceria para que se enfileirasse na cruzada humanitária que o interesse econômico de alguns países urgia associado com o adiantamento dos tempos. Quando não fosse senão para castigar o Brasil, embora prejudicando Portugal com o conseqüente atraso da agricultura brasileira pela falta do braço escravo, as Cortes tomariam partido pela Inglaterra à menor indicação de Londres.

Hipólito José da Costa, que era um arguto jornalista e conhecia perfeitamente a política do seu tempo, pensava exatamente como Barbacena sobre o assunto e seu parecer lhe estava de antemão assegurado: Barbacena, porém, do que mais se arreceiava era de que entretanto, com a nova regência nomeada em Lisboa e composta de gente moderada, a Bahia, cansada de lutar e de gastar, pois que a luta só trazia gastos às classes sobre que recaía o seu ônus, desse mostras de acomodar-se e se deixasse levar pelo oferecimento de anistia e pela perspectiva de lucros próximos que lhes compensassem os prejuízos já sofridos. Longe do teatro da ação e portanto sem uma noção completa do desenvolvimento dos acontecimentos, Barbacena não acreditava muito na eficácia ou sequer na possibilidade dos socorros do Rio, e argumentava do seguinte modo escrevendo a José Bonifácio [17]: "Se a Esquadra do Rio fugiu de navios mercantes armados em guerra, ousará ela aparecer havendo na Bahia nau, charruas, e Fragatas?".

O agente brasileiro deliberou aceitar a proposta do gabinete britânico, mas teve que esperar pela resposta de Lisboa à sugestão de mediação que Canning formulara no sentido de evitar ainda a separação, a qual seria fatal se continuassem as coisas como estavam. A Inglaterra achava-se resolvida a conservar-se em paz com ambos os reinos e agia debaixo do princípio de serem os dois independentes, apenas com um só soberano. Era tanto ou mais do que hoje têm o Canadá e a Austrália. A sugestão estava de resto de acordo com as declarações oficiais do Príncipe Regente e por si só teria o efeito de sustar qualquer expedição militar, compreendendo Portugal que "ficará só na contenda".

Sobreveio contudo a notícia do rompimento do Brasil e Canning mostrou-se dela mais surpreendido do que de fato se sentia, porque desse acontecimento queria tirar partido para a sua política abolicionista. "Como entender isto sr. General? perguntava ele a Barbacena a 30 de novembro, mostrando-lhe o edital da câmara do Rio de Janeiro com o anúncio da aclamação imperial. Como contar com qualquer ajuste, ou asserção do ministério do Rio, quando nos atos de maior ponderação mostra freqüente mudança de principios?" [18]. E a Barbacena o que se lhe deparava melhor para responder era que a fermentação no Brasil era tal, que o Príncipe Regente nem sempre podia fazer o que entendia mais acertado e devia por vezes ceder à torrente que as medidas violentas das Cortes de Lisboa faziam avolumar.

Barbacena invocou também os decretos, que qualificou de absurdos, das Cortes para justificar a aclamação imperial, posto que esta se lhe afigurasse contraditória com o manifesto de 6 de agosto aos soberanos estrangeiros. Neste sentido escreveu para uso de Canning um arrazoado atribuindo a iniciativa da separação "ao povo, e tropa em massa que se dirigirão a S. A. Real aclamando-o Imperador, e pedindo que os defendesse das injustiças, hostilidades e ultrajes cometidos pelos facciosos de Lisboa contra o Brasil" [19]. Dom Pedro vira-se, no dizer de Barbacena, impotente para sufocar a exaltação pública que ameaçava desintegrar o Brasil se lhe não fosse dada satisfação.

Era um novo Estado que assim se constituía pelo que muito depois se haveria de chamar self determination, e que desejava ardentemente firmar amizade eterna com a Grã-Bretanha e receber franca e liberalmente os seus produtos, abrindo todos os seus portos à navegação britânica uma vez que fosse reconhecido seu status de soberania absoluta, não só a larga autonomia ou antes a virtual independência que propusera o citado manifesto com o qual S. M. Britânica se conformara e de harmonia com o qual pretendia agir, tendo insinuado para Lisboa que do mesmo modo procedesse S. M. Fidelíssima.

Tanto Barbacena como Gameiro (futuro visconde de Itabaiana), que era o outro agente diplomático que o novo império então mantinha na Europa e que fora a Verona procurar admissão nos conselhos dos aliados, menos feliz porém do que Cavour em Paris, em 1855, quando conseguiu alistar o Piemonte entre as potências ativas e deliberantes, não tinham grande confiança num reconhecimento imediato por parte da Santa Aliança, que então dominava a situação, já por causa do título imperial assumido por Dom Pedro, já pela consagração na modalidade constitucional das doutrinas de soberania popular.

Barbacena, que volvera a ser belicoso e com mais ênfase porventura do que sinceridade expressava o voto que o deixassem acabar a vida com a espada na mão defendendo os direitos do seu soberano e os de todo o Brasil [20], escrevia para o Rio que se não devia contar "com o socorro de ninguém" [21]: o que melhor defesa assegurava ao Brasil era o tratar-se de fatos consumados.

Notas editar

  1. Carta particular e secretíssima a José Bonifácio em 7 de novembro de 1822.
  2. Carta de Londres ao barão de S. Amaro em 2 de abril de 1822.
  3. Carta de 1.º de maio de 1822.
  4. Carta cit. de 1.º de maio de 1822.
  5. Memorando para José Bonifácio de 4 de maio.
  6. Carta a José Bonifácio de 7 de junho de 1822
  7. Carta cit. de 1.º de maio.
  8. Barbacena sugeria um Parlamento exclusivo do Brasil e a suspensão das relações políticas, mas não das comerciais, enquanto outras Cortes não repusessem o Rei Constitucional da Nação Portuguesa o gozo dos seus direitos. Toda a obra das cortes usurpadoras seria considerada nula e, enquanto durasse a coação do soberano, o Príncipe Regente trataria diretamente com os governos europeus.
  9. Carta de Paris a José Bonifácio de 20 de agosto de 1822.
  10. Carta a José Bonifácio de 7 de junho de 1822
  11. Na carta-memorando que dirigiu a Canning a 14 de novembro de 1822, Barbacena refere que ao voltar para Portugal em 1821, Dom João VI "teve a previdência de recomendar ao Príncipe Real no momento da despedida, que por nenhum caso desamparasse ao Brasil, a fim de que esta melhor parte da Monarquia não fosse presa de algum aventureiro."
  12. Beresford dizia a Barbacena que, como o ministério inglês não pode concorrer para o estabelecimento de um Governo tal como o de Espanha, e Portugal, aonde a autoridade real é menor do que a do presidente dos Estados Unidos, convém que o Príncipe Regente esteja bem seguro de que os brasileiros hão de fazer o que ele promete". (Carta de 7 de junho de 1822).
  13. Carta de 17 de junho de 1822.
  14. Carta de Londres de 30 de julho de 1822.
  15. Carta de Barbacena a José Bonifácio de 12 de novembro de 1822.
  16. Carta de 17 de novembro a José Bonifácio.
  17. Carta de 28 de novembro de 1822.
  18. Carta a José Bonifácio da mesma data da entrevista.
  19. Memorando de 14 de dezembro de 1822, no vol. VII das Publicações do Arquivo Público Nacional.
  20. Carta de 7 de dezembro de 1822
  21. Carta de 19 de dezembro de 1822.