Dom Pedro partiu para São Paulo com uma mui pequena comitiva: acompanharam-no Luís de Saldanha da Gama, depois marquês de Taubaté, filho do conde da Ponte, veador da Princesa Real, e que lhe servia de secretário político, como na viagem a Minas Gerais Estevão Ribeiro de Resende; o gentil-homem da câmara Francisco de Castro Canto e Melo, irmão da que foi mais tarde marquesa de Santos e toda poderosa favorita; o já infalível Chalaça - ajudante Francisco Gomes da Silva - que tantos dissabores acarretou a seu amo pela impopularidade que o cercava, e os criados particulares do Paço, João Carlota e João Carvalho. Na Venda Grande juntaram-se ao séquito o tenente-coronel Joaquim Aranha Barreto de Camargo, que o príncipe fez em caminho governador da praça de Santos, e o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, de Minas Gerais, muito seu confidente e diz o barão de Pindamonhangaba que mesmo seu mentor [1].

A princesa Dona Leopoldina ficava empossada da regência, isto é, incumbida de presidir o conselho de ministros para despacho do expediente ordinário das secretarias e outrossim o conselho de Estado, podendo conjuntamente com o gabinete "tomar logo todas as medidas necessárias e urgentes ao bem e salvação do Estado", tudo sujeito naturalmente à aprovação e ratificação do príncipe. Cabia igualmente à regente dar no lugar do seu esposo audiências públicas. José Bonifácio, cabeça do gabinete, era o primeiro a não regatear à augusta senhora a confiança política que nela era assim depositada. Sua nova gravidez fora a principal razão da sua permanência na capital, quando Dom Pedro decidiu ir em pessoa pôr ordem na província que constituía a pedra angular do sistema nacional.

A autoridade régia, superior às facções políticas, aparecia-lhe e ao seu principal conselheiro como justamente indispensável para a coesão dos esforços patrióticos e para a manutenção da ordem pública. As dissensões paulistas não eram entretanto, na opinião de Mareschal [2], de natureza política, antes meras rivalidades de famílias ou de indivíduos por motivo de colocações administrativas. Dava-se mais ou menos caso idêntico em todas as províncias, "onde as juntas são geralmente compostas de parentes e de amigos, sendo de esperar que o abuso e o descontentamento que dai resultara permitam em breve tempo ao governo substitui-las por pessoal da sua escolha" - escrevia o diplomata austríaco, querendo dizer delegados diretos da autoridade executiva.

Uma certa centralização era na verdade necessária e segundo o agente de Metternich a condição da Bahia, reflexo da política das Cortes, servia de salutar espantalho contra a anarquia em que podia cair todo o Brasil e essa política anti-brasileira, por um lado reacionária e pelo outro demagógica, verdadeira política de Jano em que se convertera pela fatalidade das circunstâncias a regeneração liberal, impelia para a solução monárquica o espírito democrático da colônia americana e congregava as simpatias em redor do príncipe. Na frase de Mareschal ele era nessa ocasião "adoré de son parti et craint de ses ennemis" e com ele se achava identificada a corrente popular. Esta expressão escapou seguramente no correr da pena ao diplomata da Santa Aliança.

O aniversário da resolução constitucional portuguesa - 24 de agosto, data do movimento do Porto - fora nesse ano de 1822 apenas celebrado por uma salva de artilharia: não houve cortejo, nem beija-mão. As coisas podem dizer-se que iam correndo antes feição para o partido brasileiro e para o seu real porta-voz apesar da situação não ser de todo calma, não falando já na Bahia, onde o choque estava para cada minuto e a cidade de São Salvador já entrara a ser abandonada pelos próprios negociantes desde que o general Madeira começara a aplicar aos gastos imprescindíveis da defesa que lhe fora confiada os recursos dos bancos. Em São Paulo o ciúme dos Andradas emprestava simpatias republicanas a Francisco Inácio e a Costa Carvalho (futuro marquês de Monte Alegre), unindo-os à causa portuguesa, ao que Dom Pedro ia obstar com sua presença.

Em Minas pelo contrário as coisas tinham francamente retomado um aspecto regular: o antigo governador Dom Manuel de Portugal fora reeleito presidente da junta e a população acolhera-o favoravelmente. Em Pernambuco Gervásio Pires Ferreira, que representara uma corrente disfarçada de autonomia, tanto sentira fugir-lhe o terreno debaixo dos pés que embarcou para o Rio de Janeiro com o filho. Mal lhe foi contudo a retirada porquanto portugueses de Pernambuco, que se tinham refugiado na Bahia por se não julgarem ali seguros, reclamaram por vingança seu desembarque e, não obstante ser inglês o paquete que o transportava, fez-se sua entrega às autoridades locais.


O ex-presidente da junta pernambucana foi recolhido preso à fortaleza de São Pedro, no meio de uma grande escolta e seguido "de muitos taberneiros e caixeiros portugueses, com archotes acesos, entre vozerias insultos e apupadas e não o espancaram, por ir com ele o comandante de policia tenente coronel Antônio José Soares" [3]. A razão dada pelo desembargador Francisco Carneiro de Campos secretario da Junta provisória baiana, no ofício que dirigiu ao cônsul britânico Pennel sobre o assunto, foi o receio que nutriam aqueles emigrados portugueses, no tocante aos seus direitos e bens, do prosseguimento da viagem até o centro político do país de quem os havia compelido a deixarem o meio onde exerciam sua atividade; também, como é pretexto costumeiro em casos semelhantes, declarava-se querer pô-lo a recato de "qualquer sinistro acontecimento, à vista da efervescência em que se acham os ânimos dos que exigem essa medida" [4].

Deu-se isto a 25 de setembro de 1822 e a prisão de Gervásio na Bahia foi muito curta, sendo remetido para Lisboa, onde chegou em começos de dezembro e onde foi acusado nas Cortes por todos os seus atos reputados favoráveis à regência do Rio de Janeiro e portanto contrários à política constitucional portuguesa, do que ele se defendeu em publicações. Em setembro de 1823 já Gervásio se achava no Rio: a contra-revolução absolutista de 5 de junho, encabeçada por Dom Miguel, suspendeu seu processo e restituiu-lhe a liberdade.

O governo da regência brasileira mais se arreceava, antes de proclamada a independência, da reação portuguesa que se poderia desdobrar em Pernambuco, como que ligando a Bahia ao Maranhão, do que da renovação de quaisquer veleidades de separação republicana tanto assim era que pensava em fazer para lá regressarem os soldados de 1817, então levados para Montevidéu [5], onde a regência bem quisera poder logo desembaraçar-se das tropas portuguesas. Diz-se que ela deixava até o general Lecor sem dinheiro para pagar suas soldadas a fim de forçar-lhes o embarque. Os transportes já se achavam fretados, faltando, no entanto, navios de guerra para comboiá-los.

A negativa oposta ao pedido de Saldanha de ir do Rio Grande do Sul para Montevidéu, privava contudo as forças rebeldes de um chefe destemido e prestigioso que poderia causar grandes trabalhos. O perigo nessa ocasião não era porém tanto

interno como externo, constando que em Portugal se preparava uma forte expedição, tendo a Companhia dos Vinhos do Alto Douro oferecido ao governo de Lisboa um milhão de cruzados para esse fim pelo que seus fundos e depósitos no Rio de Janeiro foram postos sob embargo [6]. O espírito de resistência nacional estimulara-se com tais rumores e o governo da regência dela se aproveitava no intuito da defesa, vigiando de perto os agentes portugueses e não só adestrando a tropa regular e miliciana, como organizando batalhões de voluntários com os isentos da primeira e segunda linha. A capital era o foco da política patriótica e as dificuldades por vencer serviam para consolidar a autoridade e a popularidade do príncipe.



Dom Pedro fez a viagem pausadamente, vencendo em 10 dias as 96 léguas de distância entre o Rio e São Paulo, pernoitando em fazendas, recebendo no caminho homenagens e obséquios e não perdendo o ensejo de testemunhar seu descontentamento aos adversários dos Andradas. Em Santa Cruz encontrou-se com o presidente Oyenhausen, a quem negou audiência, intimando o futuro marquês do Aracati a seguir sem demora para seu destino, que era a corte. Em Lorena, a 19 de agosto, expediu um decreto dissolvendo o governo provisório de São Paulo, cujos emissários não foram recebidos em Mogi das Cruzes, até onde se tinham adiantado, e recusou a guarda de honra de 32 praças - todas oficiais de milícias e comerciantes - formada por Francisco Ignacio, dando na portaria a razão de não haver para isto sido tirada licença.

A chamada guarda de honra compunha-se todavia de pessoal muito mais numeroso e Dom Pedro não a dispensou, antes se cercou sempre dela durante a sua feliz excursão. Era um destacamento dessa guarda de capacetes de dragões e botas à l'ecuyère que o acompanhava de Santos para São Paulo ao ser proclamada a separação, e o pintor Pedro Américo a fixou na atitude teatral de cavalgada heróica que melhor servia a idealização artística do momento histórico que marca a transição da colônia brasileira para a nação independente.

Outras pessoas gradas da capitania tinham ido aumentando a comitiva, entre elas o capitão-mor de Guaratinguetá e o coronel Manuel Marcondes de Oliveira Melo, que foi depois o barão de Pindamonhangaba. A entrada em São Paulo teve lugar a 25 de agosto, recebendo-o, a mandado seu, a câmara que servia antes da bernarda de 23 de maio. No cortejo que imediatamente se celebrou tratou o príncipe com desagrado o coronel Francisco Inácio e o intendente de Santos, Sousa Pinto, negando-lhes a mão a beijar e mandando-os retirarem-se para o Rio de Janeiro.

Na pequena cidade de então, a que alguns conventos emprestavam a única feição arquitetônica de vulto ainda que sem estilo, a visita do regente pusera uma nota ruidosamente festiva: eram as salvas de artilharia, os repiques dos sinos, as girândolas de foguetes. O palácio do governo, onde Dom Pedro se hospedou, já era então no antigo colégio dos jesuítas. Do cimo da calçada do Carmo, onde ele se apeou da montaria e onde passou por baixo de um arco triunfal "de estofos e festões de flores" em que figuras alegóricas disputavam o prêmio da ingenuidade aos dísticos poéticos, caminhou o Príncipe debaixo do pálio, cujas varas sustentavam os notáveis da cidade, até a Sé para o Te-Deum celebrado pelo prelado octogenário que, paramentado de pontifical, fora ao seu encontro. Das janelas decoradas de colchas choviam pétalas de flores sobre o docel, atiradas pelas senhoras que, debruçadas, aclamavam o moço herói, esteio do Brasil". Outro arco, fronteiro a Sé, fingia ser de granito e a Minerva posta sobre a cimalha e ladeada de estátuas simbólicas escudava as armas do Reino Unido que estava prestes a ser despedaçado por aquele cujo nome, segundo a imaginação dos versejadores da terra,

... hombreará co'a eternidade.

Há quem pense e porventura com razão que não foi alheio ao espírito de José Bonifácio, ao insistir com Dom Pedro para ir pacificar os espíritos em São Paulo, como o estavam reclamando várias das câmaras municipais da capitania, o desejo de ver a independência ali proclamada e portanto mais intimamente associada, consubstanciada mesmo, com sua terra natal, à qual era particularmente afeiçoado. A união brasileira só poderia derivar um acréscimo de força dessa circunstância que roubava ao centro, senão a iniciativa do momento, pelo menos a honra do acontecimento que o culminava.

Quando o príncipe empreendeu a sua jornada, a separação estava teórica e praticamente deliberada, restando apenas a formalidade do seu anúncio, isto é, a ocasião que qualquer nova pressão devia produzir. A circular de José Bonifácio ao corpo diplomático estrangeiro, em 14 de agosto, dia da partida do príncipe, transmitindo às legações o manifesto de 6 do mesmo mês, já é virtualmente uma participação da independência. Nem este vocábulo falta no documento, embora atenuado pela ficção da união nominal sob um só soberano, que mais tarde justificaria o título imperial reconhecido a Dom João VI no tratado de reconciliação [7]. O motivo que se aguardava para o rompimento definitivo, o impulso necessário para esse instante decisivo, foi fornecido pela chegada ao Rio de Janeiro, a 28 de agosto, do brigue Três Corações, trazendo notícias de Lisboa até 3 de julho.

Não se tratava portanto apenas de boatos aterradores, como o da reconquista a ser intentada por um golpe direto contra o Rio de Janeiro mediante um desembarque em Itaguaí - plano mencionado por Porto Seguro - mas de notícias muito positivas acerca das resoluções das Cortes, que só foram, no entanto, oficialmente transmitidas em datas posteriores, pelas cartas régias de 1.º e 2 de agosto. O Príncipe tinha que escolher entre a desafronta pela rebelião e a humilhação pela submissão: passar nesta segunda hipótese de regente autônomo a delegado temporário e passivo das Cortes, e só nas províncias onde já exercia autoridade efetiva, porque nas outras deveriam ser instaladas as juntas de governo subordinadas ao Soberano Congresso; com secretários de Estado nomeados em Lisboa [8], para onde era transferida a sede real do governo do Brasil; ficando sem efeito mesmo a convocação no Rio de Janeiro do conselho de procuradores e sendo responsabilizados quantos tivessem procedido em contrário à política das Cortes.

Reunido o conselho de ministros sob a presidência da regente, assentou-se sem discussão ter chegado a hora precisa e almejada e foi despachado para São Paulo o correio Paulo Emílio Bregaro, com a recomendação de José Bonifácio, que bem traduz a impaciência que o dominava, de arrebentar quantos cavalos quisesse para o mais depressa possível alcançar lá o príncipe, sob pena de perder o lugar. Aos papéis oficiais de Lisboa, entre os quais vinha também uma carta de Antônio Carlos de 2 de julho, muito desanimada com o andamento dos negócios pela atitude hostil das Cortes e da população, juntou José Bonifácio uma carta sua e juntou a Princesa Real outra que Drummond conta haver lido e que diz ter agido poderosamente sobre o espírito de Dom Pedro.

As próprias notícias trazidas da Bahia por Drummond tendiam a provocar a resolução que o Príncipe não hesitou em tomar quando, depois de galgada a serra do Cubatão montado numa besta baia gateada e envergando a fardeta da polícia [9], lhe foi entregue aquela correspondência na colina junto ao ribeiro Ipiranga, à vista de São Paulo, pelas 4 e 1/2 horas da tarde, pelo major Antônio Ramos Cordeiro, também vindo do Rio com Bregaro. Nesse momento supremo como que lhe foi preparado o tempo para uma última reflexão sobre o jogo do seu destino, tão breve e tão agitado.

Sabendo por Canto e Melo, que tinha de São Paulo, da chegada dos emissários do Rio, os quais de perto seguiam o gentil-homem da câmara, Dom Pedro adiantou-se ao seu séquito a receber os despachos que lhe foram apresentados pelo oficial portador. Distanciando-se porém de novo da sua guarda de honra, que entretanto o alcançara e que mandou seguir adiante enquanto ele se atrasava um pouco, foi encontrá-la passada meia légua no ponto doravante memorável em que cavalgada pousara. Comunicando então à comitiva que as Cortes queriam "massacrar" o Brasil, arrancou o tope de fita azul claro e encarnado (as cores constitucionais portuguesas antes do azul e branco) que ostentava no chapéu armado, lançou-o por terra e, desembainhando a espada, bradou - "É tempo!... Independência ou Morte!... Estamos separados de Portugal...".

A guarda e os demais circunstantes repetiram o brado, que foi o juramento de honra de perene liberdade da nova nacionalidade criada nesse instante e que ecoou pela campina deserta, talvez até do carreiro que o pintor ali colocou para um feliz efeito de contraste. De roldão galoparam então todos em direção à pacata cidade que a notícia alvorotou, dando origem a manifestações de júbilo diante do palácio onde o príncipe entrementes desenhava num papel a legenda - Independência ou Morte, mandando Canto e Melo levar o molde a um ourives por nome Lessa, para que sem perda de um minuto lhe fizesse uma braçadeira com que pudesse aparecer no teatro. Os demais exibiram nessa ocasião laços de fita verde, que é a cor da Casa de Bragança.

Como Rouget de Lisle a sua inspiração de melomano, aliada ao seu ardor político que fazia brilhar aos próprios olhos sua auréola de libertador, trasbordou num hino à independência, que nessa mesma noite se executou a meio de uma ovação estrondosa e a par de um entusiasmo retórico de que podem dar a medida os dois versos seguintes da poesia recitada pelo alferes Tomás de Aquino e Castro:

Será logo o Brasil mais que foi Roma Sendo Pedro seu primeiro Imperador!...

O príncipe gostou tanto que mandou chamar o alferes ao camarim para felicitá-lo e dizer-lhe seu agrado. As poesias não se cifraram nessa: uma mesmo correu como de lavra de Dom Pedro, o qual tomou parte na execução do seu hino juntamente com algumas senhoras [10].

No decorrer do espetáculo o cônego Ildefonso Xavier Ferreira vitoriou Dom Pedro como "o primeiro rei brasileiro" ao passo que o lirismo militar de Tomás de Aquino o consagrou como o "primeiro Imperador". A questão ia ser finalmente decidida no Rio de Janeiro, em assembléia maçônica, na própria noite da chegada do príncipe, que fez o percurso de volta na metade do tempo que empregara para a ida, a saber, em cinco dias, partindo na madrugada de 9 e alcançando São Cristovão ao lusco-fusco de 14, apesar das chuvas torrenciais, dessas que, no dizer de Mareschal, "l'on ne conoit qu'entre les tropiques" [11].

O governo paulista ficava confiado a uma junta composta do bispo, do ouvidor geral e do marechal de campo governador das armas e o príncipe, antes de partir, publicou uma proclamação recomendando união e reiterando a afirmação da independência, sobre a qual ia providenciar na corte com os seus ministros.

Conta o encarregado de negócios da Áustria que Dom Pedro trazia um laço de fita verde no braço esquerdo, acima de um ângulo de metal dourado com o lema gravado da Independência ou Morte. O laço verde começou então a ser usado por todos e no dia 21 apareceu o decreto de 18 fazendo-o de rigor para os do partido nacional, os quais começaram também a arvorar nos chapéus o tope verde e amarelo [12].

Boletins em estilo mais do que enfático, pomposo, entraram simultaneamente a circular agregando ao título de defensor perpétuo o de imperador constitucional com que o Príncipe entrou a ser brindado em público, no teatro e nas praças, e que aliás não constituía novidade pois que desde outubro de 1821 - quase um ano antes - fora o povo convidado por aquele meio a aclamá-lo numa dignidade que parecia mais consoante com a enormidade do país, com a relevância do fato e com a identificação da nação com as instituições que ela livremente escolhia, conservando a dinastia porque, nas palavras de Ledo em uma das referidas proclamações, "o grande Pedro nos defende: os destinos do Brasil são os seus destinos".



É uma puerilidade ou antes uma perversidade querer tornar José Bonifácio estranho à direção do movimento da independência e à sua orientação para a modalidade adotada, atribuindo-lhe um papel senão de comparsa, secundário, e concedendo a primazia a outros; e como nenhum se depara com envergadura bastante para assumi-la sozinho, repartindo tal primazia entre José Clemente Pereira, a maior influência eleitoral da capital, Ledo e Januário, paladinos indefessos da propaganda pela imprensa e nas lojas maçônicas, onde a emancipação política do Brasil foi de fato em grande parte tramada e vazada no seu molde por esses instigadores infatigáveis da integral liberdade americana.

José Bonifácio nunca visou outro objetivo: com o que se não achava de acordo, era com a subalternação do monarca à Assembléia, exarada na fórmula do compromisso constitucional por antecipação. Ele tinha na memória o exemplo da Convenção francesa e diante de si o do Soberano Congresso de Lisboa, impondo ao Rei toda classe de vexames, indo ao ponto de tirar-lhe a administração dos bens da Casa de Bragança mandando que os seus rendimentos fossem recolhidos ao erário para ser oportunamente entregue ao Príncipe Real o que lhe competisse, e de anular as promoções de marinha, os títulos e as mercês com que se manifestara a régia munificência na viagem de regresso do Brasil para celebrar o dia 24 de junho, do santo do nome do soberano.

Bastava ao ministro da regência como garantia democrática tornar-se o príncipe imperador por unânime aclamação do povo, não só ou não tanto pela graça divina. Seu maior empenho era isolar a Coroa nas inevitáveis discussões doutrinárias e pessoais, da próxima Constituinte. Segundo Rio Branco [13] foi José Bonifácio quem conseguiu eliminar da cerimônia da aclamação o incondicional juramento prévio, forçando a câmara municipal do Rio a desistir dessa exigência demagógica, mas com isto inimizando-se de vez com o grupo de Ledo. Chegou esta facção um instante a preponderar na simpatia do jovem soberano, do que é reflexo a ordem de suspensão da devassa sobre a bernarda paulista, assim se explicando que José Bonifácio fosse levado a solicitar demissão no dia 23 de setembro. Tal foi a data do decreto de suspensão ou melhor dito de anulação do referido inquérito, com que Dom Pedro quis "corresponder à geral alegria desta cidade pela nomeação dos deputados para a assembléia geral constituinte e legislativa, que há de lançar os gloriosos e inabaláveis fundamentos do Império do Brasil".

Ledo fora dos contemplados pelo sufrágio nessa eleição ocorrida no dia anterior - 22 de setembro - apesar de toda a cabala dos amigos dos Andradas, sendo o quarto votado na lista de oito, composta mais do barão depois marquês de Santo Amaro, Dr. Agostinho Goulão, Sousa França, Nogueira da Gama (depois marquês de Baependi), Pereira da Cunha (depois marquês de Inhambupe), Silva Coutinho (bispo do Rio de Janeiro) e Dr. Jacinto Furtado de Mendonça. Martim Francisco só conseguiu ser eleito suplente não obstante ser ministro da Fazenda; ele e J. J. Carneiro de Campos (depois marquês de Caravelas) foram os mais votados desta classe, e substituíram Ledo e Goulão, que não tomaram assento.

Data igualmente de 22 de setembro a inserção num número extraordinário do Correio da ordem de 18 sobre o distintivo patriótico a ser ostentado, anunciada na noite de 21 ao som de trombetas [14]. De 18 é também o decreto relativo ao escudo de armas do reino do Brasil e à bandeira nacional [15], cuja publicação foi contudo posterior pois que o encarregado de negócios da Áustria escrevia a 25 de setembro que não tinham ainda aparecido as respectivas disposições.

Entre os dois grupos, desde então em franca oposição, havia por certo um antagonismo suscitado por antipatias pessoais, mas havia também e mais que tudo uma divergência de princípios, não só de ambições, que se fora gradualmente agravando. Dentro de um regime monárquico, como dentro de um regime republicano, cabem entretanto um partido avançado e um partido conservador e pelo correr dos tempos até se verificou e não raramente, na Inglaterra como no Brasil, cujo regime imperial foi nos países de civilização ocidental o que mais de perto seguiu o parlamentarismo britânico, que os conservadores, sob a pressão da opinião nacional, realizaram no poder e nem sempre com as salvaguardas que seriam de esperar, as medidas primeiro aventadas e defendidas pelos liberais. Assim aconteceu com a reforma eleitoral inglesa e com a abolição brasileira da escravidão.

Para a superioridade partidária, isto é, para a efetividade da autoridade, o favor do soberano valia então ainda tanto ou mais do que o prestígio popular, e por isso as duas facções se disputavam no Rio de Janeiro o valimento do príncipe a quem queriam servir, servindo ele próprio os ideais diferentes desses dois grupos de conselheiros que tinham rivalizado nos seus esforços pela libertação constitucional do reino americano.

Em Lisboa, onde as Cortes tinham excelentes informações sobre o que se passava no Brasil pelo intercurso do pessoal político e pelas idas e vindas de personagens em evidência, não nutriam os regeneradores ilusões sobre o papel primacial desempenhado por José Bonifácio nos sucessos de além-mar. Ele era o alvo das objurgatórias e dos ressentimentos. Por ocasião dos famosos decretos de 23 de julho de 1822, os membros da junta provisional paulista que assinaram a representação ao príncipe Real do 24 de dezembro do 1821 e os membros da delegação paulista recebida por Dom Pedro a 26 de janeiro de 1822, foram os únicos mandados submeter a processo, portanto os únicos expressamente considerados culpados. "Contra nenhuma outra pessoa - rezava o decreto - além das indicadas no artigo primeiro, se procederá pelos documentos que nele se referem, e fatos a que nele se aludem". Ao ministério do Rio de Janeiro, por motivo da convocação do conselho de procuradores, só se mandava verificar a responsabilidade, e bem assim por quaisquer outros atos da sua administração. As Cortes destarte faziam partir todo o movimento tendente ao rompimento da iniciativa paulista, o que quer dizer de José Bonifácio.

Os agentes diplomáticos estrangeiros julgavam-no sem discrepância a alma da regência e na peça política a que o Brasil estava servindo de tablado, se Dom Pedro fazia o galã e a nação era a ingênua, a José Bonifácio coubera encarnar o centro dramático, o que no teatro francês se chama o Père noble. Nestas condições e pelas exigências da sua visão política, não pelas da sua idiosincrasia, sua ação exercia-se num sentido moderador e dele seria com efeito a inspiração da resposta imperial de 12 de outubro, que conciliava a susceptibilidade dinástica com o melindre popular, declarando o soberano que aceitava a investidura porque tal era o voto das câmaras municipais, células do organismo político. Nas suas conversações com aqueles agentes estrangeiros, de monarquias associadas numa aliança reacionada, a habilidade diplomática do ministro que todos eles respeitavam, empenhou-se em fazê-los acreditarem que ele considerava prematuro e mesmo mal maquinado (pris dans de mauvaises formes na expressão de Mareschal) o desfecho que ia ser dado à desavença sobrevinda no Reino Unido.

A popularidade de que momentaneamente se achavam gozando os ultra-liberais entre os partidários da independência e que José Bonifácio admitia nas citadas confabulações de chancelaria, mesmo porque lhe era isto de proveito como argumento, provinha do impulso que pela sua atitude intransigente tinham incontestavelmente dado à emancipação em andamento, agora em conclusão. Essa popularidade tenderia porém a desaparecer, na opinião de José Bonifácio, quando os ultra-liberais pretendessem entrar em conflito com os direitos do trono. Era-lhe por isso mister imolar suas preferências doutrinárias à conveniência superior de não abandonar o príncipe nas mãos dos democratas que o queriam assoberbar e pôr na sua dependência, para o que não tinham aliás força bastante.

No entanto - e aí se descobria o patriota sob o manto do diplomata - José Bonifácio não podia dissimular aos representantes europeus que os "votos verdadeiros" do Brasil eram bem esses: separação completa de Portugal e a fundação do Império do Brasil. Nem em rigor havia nisso matéria para surpresa, acrescentava (263), porquanto o Rei Dom João VI fora saudado com esse título ao abordar na Bahia e desde então muita gente se servia freqüente e intencionalmente da expressão - império, ao referir-se ao reino ultramarino. Datavam de um ano atrás os versos, pecos mas expressivos, com que um poetastro anônimo traduzira o seu sentimento nacionalista e liberal e que apareceram afixados nas esquinas da capital brasileira:

Para ser de glórias farto
Inda que não fosse herdeiro,
Seja já Pedro Primeiro
Se algum dia há de ser quarto.
Não é preciso algum parto
De Bernarda, atroador;
Seja nosso Imperador
De Cortes, franco e leal
Mas nunca nosso senhor.

Por sua vez fazia Mareschal diplomacia para Viena, onde seu mestre Metternich dava o devido valor ao tom de desolação com que o encarregado de negócios jurava que a Princesa Leopoldina estava presa de uma "juste e profonde affliction" perante o desenlace da crise que ela pelo contrário ajudara poderosamente, com muita discrição, mas com muito critério, para que fosse consoante a lógica dos fatos e a fatalidade histórica. Comunicava ao mesmo tempo Mareschal que Dom Pedro resistira quanto pudera à corrente, o que ele bem sabia não ser exato, pelo menos desde o Fico, e que apenas cedera aquilo que fora levado a julgar uma necessidade absoluta, declarando-se pronto a restituir as rédeas do governo às mãos paternas no caso de Dom João VI voltar para o Brasil.

Entretanto dizia o mesmo diplomata em seu ofício que fora ao Paço no dia 23, mas que Dom Pedro não lhe dera nessa ocasião o ensejo, antes o evitara d'une maniêre marquée, para que ele apresentasse respeitosamente as suas advertências com relação ao passo que o príncipe ia dar contra a legitimidade. Mareschal apenas pôde formular suas razões na audiência especial que lhe foi concedida a 25. O encarregado de negócios da Áustria fazia sobretudo questão do título de legitimidade, não querendo que houvesse menoscabo dos direitos majestáticos do soberano do Reino Unido. Que o príncipe muito embora se proclamasse imperador, ou melhor dito proclamasse o império, mas que, ao colocar sobre a própria cabeça a Coroa Imperial, não desfizesse o laço pessoal com Dom João VI, neste continuando a. subsistir a união política por ele fundada dos reinos sobre que se estendia igualmente sua autoridade suprema.

Mareschal, admitindo o império, ia pois de encontro à opinião daqueles que se arreceavam que as maiores potências da Europa achassem demasiada a pretensão do Brasil querer irmanar em categoria com a Áustria e com a Rússia. José Bonifácio dissera aliás um dia (264) diante do representante inglês, Chamberlain, que o Brasil não havia de consentir em que os demais governos interviessem nos seus negócios internos, sendo esta uma humilhação a que se não submeteria o reino americano. A forma da independência cabia essencialmente no número dos assuntos nacionais, se bem que também tivesse o seu aspecto internacional. Mareschal não ignorava contudo ser impossível transmudar-lhe a substância, pois que informava para Viena que tropa e povo nem queriam esperar pelo dia 12 de outubro para aclamarem Dom Pedro imperador e que só se conformaram em aguardar até essa data, que era a do aniversário do novo monarca, tão somente brasileiro, que o país ia pôr à frente dos seus destinos, porque a câmara Municipal do Rio de Janeiro fizera pública a 21 de setembro uma proclamação fixando o referido dia 12 de outubro para a realização dos desejos da nação [16].

Do grêmio da comunidade independente eram apartados e mandados sair do país, no prazo de quatro meses das cidades do interior e no de duas das cidades marítimas, os dissidentes da vontade dos adeptos da libertação e constituição à parte da nova nacionalidade, contra cuja independência não se atentaria sem incorrer nas penas de alta traição com processo sumário e castigo rigoroso. Concedia-se entretanto anistia geral para todas as passadas opiniões políticas, manifestadas até a data do decreto, excluídos dela apenas os que já se achassem presos e respondendo a juízo. O fundamento da resolução do governo era que "não devia participar com os bons cidadãos dos benefícios da sociedade, todo aquele que não respeitasse os direitos da mesma e, ou por crassa ignorância, ou por cego fanatismo pelas antigas opiniões [17], espalhasse rumores nocivos à união e tranqüilidade de todos os bons brasileiros, e até mesmo ousasse formar proselitos de seus erros".



As condições de segurança do Império que ia tomar lugar entre as nações soberanas sem partilha, não eram completamente auspiciosas se a mãe-pátria resolvesse atacá-lo ou antes se dispusesse de forças para tanto. O espírito de insubordinação lavrava entre a marinhagem, já de se pouca, sendo escasso seu viveiro local, e a maior parte dela portuguesa, sem o sentimento portanto de nacionalidade e sem qualquer entusiasmo profissional, porque em grande parte fora recrutada contra a vontade. Refere Mareschal que numa rebelião a bordo da esquadrilha de Labatut, a fragata União esteve em grande perigo, tendo a oficialidade que se agrupar toda na popa, só conseguindo dominar o motim com a ajuda de 40 galés napolitanos, aos quais foi prometida a liberdade em troca do serviço que deles se reclamava.

Entre as forças de terra também o elemento lusitano não podia inspirar confiança e facilmente se amotinava, sendo contínua a repressão da sua indisciplina, que contagiava o elemento nacional, mas mais facilmente se explicava. Como é natural numa quadra como essa, de constante agitação e sem os meios de informação e de observação hoje existentes, os boatos terroristas fervilhavam, embora fossem mais tarde desmentidos e confirmados outros mais tranqüilizadores. Amiúde se falava por exemplo em navios de guerra portugueses, que cruzavam aqui e acolá, em velas que se avistavam vindo da Europa. O próprio governo tinha certo interesse em que essas notícias se propalassem para melhor poder reforçar os meios de defesa, adotando providências que de outro modo poderiam ser ressentidas. O apelo ao elemento estrangeiro impunha-se porém especialmente na marinha.

Nem é de surpreender que reinassem tantos rumores pessimistas quando de Londres escrevia Felisberto Caldeira a José Bonifácio [18], em 5 de julho de 1822, que "um amigo intimo de Sarmento (Encarregado dos Estados Portugueses em Londres) acabava de lhe participar que ele recebera aviso de estar feito um tratado de aliança ofensiva, e defensiva com Espanha, o que as gazetas francesas haviam já anunciado no mês passado, e que um dos artigos é dar Espanha 12.000 homens a Portugal para a expedição do Brasil: assim conta o tal Sarmento que irão 20.000 sendo 8.000 portugueses, o que subjugará completamente o Brasil. Eu não sei qual das duas Nações está mais pobre, e mais fraca, mas propendo a crer que a Espanha ainda pode dispor menos de 12.000 do que Portugal dos 8.000. Entretanto convém preparar para o pior dos acontecimentos".

O português estava gradualmente passando a ser o inimigo, cuja exaltação podia ser avaliada de uma forma indireta, mas sugestiva, pela atitude tatuada na Bahia pelas autoridades inglesas quando anuíram à entrega de Gervásio Pires Ferreira, protegido pelo pavilhão britânico, somente pelo receio de que os súditos britânicos ali estabelecidos sofressem violências. Beresford, que conhecia de dentro os assuntos do Reino Unido de Portugal e Brasil e privava numa longa familiaridade com a administração portuguesa, tendo sido comandante em chefe do exército português e lorde protetor da junta de regência, era o primeiro a admitir perfeitamente a hipótese das Cortes levantarem dinheiro com enorme usura e continuarem a mandar tropas para a Bahia, estendendo-se a guerra civil às outras províncias, chamando o partido mais fraco os negros em seu favor, revoltando-se estes depois contra os brancos [19] Se entre os portugueses crescia o despeito, entre os nacionais subia paralelamente tanto o entusiasmo que o prestígio dos Andradas diminuía sensivelmente, pode pelo menos dizer-se apreciavelmente, com se propalar que eram eles avessos às soluções extremas e dispostos a contemporizar com as tradições do passado, aconselhando ao Príncipe respostas ambíguas às aclamações populares, em vez de proclamar um rompimento absoluto, não só com Portugal como com o que se veio a chamar o sistema europeu.

Dom Pedro, ao acalmar as desconfianças do diplomata austríaco sobre o seu próprio radicalismo dinástico, prometera "uma resposta ao povo que satisfaria toda gente, aqui e lá", concordando seu parecer com o do seu ministro e com o daquele agente estrangeiro. A idéia de Mareschal, que este se mostrava persuadido de que era também a idéia do governo, parecia sumamente hábil pois que consagrava o princípio da legitimidade e desacreditava as Cortes, sem entretanto ir de encontro ao sentimento nacional brasileiro. O príncipe assumiria com o título de Imperador a efetividade dos poderes soberanos de que era até então delegado e usufrutuário; mas não o faria pela investidura popular e sim em virtude do seu caráter de herdeiro da coroa e da prerrogativa régia, pelo fato de achar-se o monarca privado deles e cativo das Cortes.

Para José Bonifácio o essencial era que a independência se consumasse e para este caso valia a substância mais do que as formas. A resposta de Dom Pedro sobre que se estribava a diplomacia de Mareschal no tocante à citada harmonia de vistas entre as antigas monarquias do Velho Mundo e a jovem monarquia do Novo Mundo, prometia contudo revestir uma aparência antes evasiva. José Bonifácio, tendo que guiar o barco da nacionalidade, que se constituía, entre o escolho reacionário e o escolho demagógico, entendera mesmo conservar em segredo a fórmula pela qual, no momento da aclamação, o Imperador acolheria a expressão dos desejos do povo.

No conselho de Estado não foi essa questão discutida, como o não fora a questão do título, real ou imperial, porque dada a sua composição, não se chegaria porventura a uma resolução serena e que pudesse permanecer sob sigilo até o último momento. A impressão de muitos era que a autoridade de Dom João VI não seria completamente eliminada, antes se veria respeitada na hipótese, aliás pouco favorável, do seu regresso ao Brasil. O ministro da regência queria muito salvaguardar a independência do trono, sem sacrificar entretanto a independência da nação, e visava a que a invasão por um elemento da esfera de atribuições e regalias do outro não produzisse uma confusão prejudicial à estabilidade política e social.

O problema era difícil, pela atmosfera, carregada de preconceitos democráticos, em que se agitavam as aspirações nacionais, mas não era impossível de resolver. Haveria para isso que moderar a altanaria das câmaras municipais, que se achavam muito inclinadas a assumir o papel do Terceiro Estado na Revolução Francesa e, sem ir de encontro à sua influência, canalizá-la para aproveitar a sua indispensável colaboração na organização dos destinos pátrios na Assembléia Legislativa que compartilharia constitucionalmente com a coroa a soberania nacional e executariam ambas, intimamente associadas, uma tarefa ordeira e construtora e não dispersiva e anárquica. No consórcio projetado caberia porém ao Imperador o ser a cabeça do casal: neste ponto é que concordavam Dom Pedro, José Bonifácio e Mareschal. As circunstâncias levariam pouco depois os Andradas a darem maior consistência ao seu patrocínio dos direitos da nação, mas era neles ingênito e foi sempre acentuado o amor do princípio da autoridade.

Com as responsabilidades da administração do Estado a seu cargo, José Bonifácio e seus colegas de gabinete sabiam que os recursos do Brasil se achavam numa condição de fraco aproveitamento pela situação geral dos negócios públicos do país, e que o erário carecia positivamente de dinheiro, o qual somente na Europa se poderia levantar entre os banqueiros ingleses em quantidade mais avultada, comparativamente ao que podiam fornecer os negociantes da praça. Aqueles banqueiros não se mostrariam naturalmente muito dispostos a emprestar seus capitais a terras alvoroçadas, onde as autoridades não dispusessem de eficiência e de prestígio. Era igualmente por isso preciso que a aclamação, a qual se apresentava em suma ainda como uma separação não amigável, se realizasse com as cautelas ou antes as reservas próprias a não abolir a confiança indispensável ao fortalecimento do Império.

Daí a atitude passiva do governo, parecendo alheio aos preparativos do grande dia da emancipação definitiva. Tomar ostensivamente sua direção, seria comprometer o conceito adquirido junto a vários fatores, de fora sobretudo, que eram de índole a embaraçar o movimento se vissem que este tomava um rumo radical, não só integral, o que já por si representava um obstáculo, dado o particularismo histórico das províncias. Felisberto Caldeira, escrevendo de Londres a Gervásio Pires Ferreira [20] e supondo-o, como toda a gente o supunha, republicano e autonomista, exprimia sua convicção de que cada uma das províncias brasileiras "havia de ter sua particular administração" e comentava a propósito: "A revolução de 1817 fez persuadir a toda gente que os pernambucanos desejam fazer de sua Província uma República independente, e supondo isso possível que consideração política teria no mundo? Para os ignorantes não há razão que baste, mas V. Exa. de certo conhece as vantagens de um Estado que abrange do Prata ao Amazonas, e por isso espero em Deus que por todos os meios a seu alcance se esforçará por conservar a integridade do Brasil".

Renunciar à participação nos festejos que se organizavam, o que eqüivalia a não intervir e até a desprezar os sucessos que se desenrolavam, seria contudo um contra-senso à vista dos precedentes e apenas daria ensejo a animarem-se os adversários de dentro, que já especulavam tanto com a calculada frieza patriótica do governo que o apodavam de aristocrático. O Correio do Rio de Janeiro estava na primeira fila dos que reclamavam não só princípios, como atos democráticos. A Londres chegara havia meses o eco dessas divergências e desses embustes. "A intriga trabalha por todos os modos, para o príncipe escreve-se que não se fie nos brasileiros que o não amam, que fazem dele escudo para vencer aos portugueses e que uma vez seguros o rejeitarão porque são todos democratas: para os brasileiros escreve-se V. Exa. é um Aristocrata que quer restabelecer o despotismo etc. Conseguida a divisão entre os brasileiros qualquer força portuguesa irá subjugando as Cidades Maritimas" [21].

Notas editar

  1. Descrição da viagem do príncipe do Rio de Janeiro a São Paulo, feita pelo gentil-homem da sua câmara Francisco de Castro Canto e Melo e carta do barão de Pindamonhangaba a Melo Moraes.
  2. Ofício de 19 de agosto de 1822.
  3. Melo Moraes, Brasil-Reino e Brasil-Império.
  4. Melo Moraes, ob. cit.
  5. Em 1821 voltara a estabelecer-se em Pernambuco a maçonaria, varrida na ação de 1817. Tinham-se fundado as lojas Caridade Olindense e Seis de Março de 1817. Esta última, que ainda existe, quando perseguida a maçonaria brasileira por Dom Pedro I, procurou filiar-se na maçonaria norte-americana e confederou-se com a Grande Oriente do Brasil quando ele ressurgiu em 1832, depois da abdicação. Em 1821 também se instalou a jardineira ou keroptica, plantando-se o primeiro jardim e ramificando-se por toda a província. Transplantada de Coimbra, visava a reformar a maçonaria, "assim como os frades antoninos e barbadinhos o tinham reformado os franciscanos, e os turoneses e marianos reformado os carmelitas, observantes".
  6. Correspondência de Mareschal.
  7. A circular dizia assim: "Tendo o Brasil que se considera tão livre como o reino de Portugal, sacudido o jugo da sujeição e inferioridade com que o reino irmão o pretendia escravizar, e passando a proclamar solenemente a sua independência, e a exigir uma assembléia legislativa dentro do seu próprio território, com as mesmas atribuições que a de Lisboa, salva, porém, a devida e decorosa união com todas as partes da grande família portuguesa e debaixo de um só chefe supremo, o senhor D. João VI, ora oprimido em Lisboa por uma facção desorganizada e em estado de cativeiro, o que só bastava para que o Brasil na» reconhecesse mais o Congresso de Lisboa nem as ordens do seu executivo, por serem forçadas e nulas por direito..."
  8. A escolha recaiu no desembargador Sebastião Luís Tinoco da Silva para o reino e justiça; Dr. Mariano José Pereira da Fonseca (futuro marquês de Maricá) para a fazenda, tenente-general Manuel Martins do Couto Reis para a guerra e vice-almirante José Maria de Almeida para a marinha. Era um gabinete em tudo caso composto de nacionais.
  9. Estes pormenores constam das reminiscências pessoais do barão de Pindamonhangaba.
  10. Descrição de Canto e Melo. As variantes entre as narrações das testemunhas de vista ou de ouvido são inevitáveis, ocorrendo em todas as ocasiões em que a elas se faz apelo. Ninguém vê ou se recorda das coisas exatamente como os outros, havendo que proceder por uma seleção criteriosa. Este caso porém é um dos raros em que as variantes são mínimas e sem importância.
  11. Ofício de 25 de setembro de 1822.
  12. É de 20 de setembro o decreto mudando para verde a casaca da farda dos criados da casa real do Brasil. A 6 de dezembro foi mudada para verde a farda azul dos diplomatas do império, conservando-se o bordado do padrão antigo.
  13. Notas à História da Independência de Porto Seguro
  14. Correspondência de Mareschal.
  15. O decreto determinava que o escudo fosse em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de 19 estrelas de prata em uma orla azul, e firmada a coroa real diamantina sobre o escudo, cujos lados seriam abraçados por dois ramos das plantas de café e tabaco, com emblemas da sua riqueza comercial, representados na sua própria cor e ligados na parte inferior pelo laço da nação; e outrossim que a bandeira nacional fosse composta de um paralelogramo verde, e nele inscrito um quadrilátero romboidal, cor de ouro, ficando no centro o mencionado escudo. A cruz deste rememorava "o primeiro nome dado ao país na ocasião do teu feliz descobrimento" e as estrelas correspondiam às províncias "compreendidas entre os grandes rios que são os seus limites naturais, e que formam a sua integridade". Nas 19 contava-se a Cisplatina, mas não ainda o Paraná e o Amazonas, desdobramentos respectivos de São Paulo e do Pará.
  16. O edital firmado por José Clemente Pereira rezava: "O senado da câmara faz saber ao povo e tropa desta cidade que, tendo previsto que era vontade unânime de todos aclamar Imperador Constitucional do Brasil a S. A. Real o Príncipe; desejando acautelar que algum passo precipitado apresentasse com as cores de partido faccioso um ato, que a vontade de todos o Brasil requer, e que por esta razão, e pela importância de suas conseqüências, deve aparecer à face do mundo inteiro revestido das fórmulas solenes, que estão reconhecidas por enunciativas da vontade unânime dos povos, tem principiado a dar as providências necessárias para que a aclamação de S. A. Real se faça solenemente no dia 12 de outubro, natalício do mesmo Senhor, não só nesta capital, mas em todas as vilas desta província, e tem justos motivos para esperar que a maior parte das províncias coligadas pratiquem outro tanto no mesmo fausto dia. E porque será muito importante a causa do Brasil, muito glorioso ao acerto com que este vai dirigindo a grande obra da sua independência, e de muita admiração, finalmente, para os povos espectadores, se no mesmo dia 12 de outubro for S. A. Real aclamado Imperador Constitucional do Brasil solenemente em todas, ou quase todas as suas províncias, roga o mesmo senado ao povo e tropa desta cidade que suspendam os transportes do seu entusiasmo até o expressado dia; e ao mesmo tempo os convida para que, unindo-se a ele, o acompanhem a fazer solene, grande e glorioso tão importante ato.
  17. Rezava o decreto que "cumpria imperiosamente atalhar ou prevenir o mal, separando os pérfidos; expurgando deles o Brasil para que as suas ações, e a linguagem das suas opiniões depravadas, não irritassem os bons e leais brasileiros a ponto de se atear a guerra civil que o Príncipe Regente sempre se esmerara tanto em evitar, desejando no entanto aliar a bondade com a justiça e com a salvação pública, suprema lei das nações".
  18. Cartas sobre a Independência, 1822-1823, no vol. VII das Publicações do Arquivo Público Nacional.
  19. Na carta citada de Felisberto Caldeira, referindo-se ao desígnio do "partido europeu de formar uma zona de união com Portugal desde a Bahia até o Pará, dá ele conta do estado de confusão em que se achavam algumas das províncias do norte onde crescera o ódio contra os portugueses, sendo raro o dia em que algum não era assassinado ou roubado e não escapando mesmo os brasileiros simpáticos a Portugal. "Tudo isto é horroroso, escrevia Felisberto a José Bonifácio, e pior ainda que seja dirigido pelos negros e mulatos".
  20. Carta de 11 de junho de 1822.
  21. Carta de Barbacena a José Bonifácio de 17 de junho de 1822.