Falemos serio: não comtigo, philosopho esthetico-romantico-progressivo, que não vales a pena d’isso, mas com o povo portuguez, que fala portuguez chão e intelligivel. Falemos serio, porque estas materias de crença e de culto são cousas graves e sanctas. Saber resistir á violencia é forte, mas vulgar; saber resistir á calumnia e aos motejos é maior esforço e mais raro. Envergonhemo-nos do que houver mau e corrupto nos nossos costumes; envergonhemo-nos de muitas vezes não seguirmos na vida practica os dictames do christianismo: não nos envergonhemos, porém, do culto dos sete seculos da monarchia. A lingua e a religião são as duas cadeias de bronze, que unem no correr dos tempos as gerações passadas ás presentes; e estes laços que se prolongam através das eras são a patria. A patria não é a terra; não é o bosque, o rio, o valle, a montanha, a arvore, a bonina; são-no os affectos que esses objectos nos recordam na historia da vida: é a oração ensinada a balbuciar por nossa mãe, a lingua em que pela primeira vez ella nos disse:—­“meu filho!”—­A patria é o crucifixo com que nosso pae se abraçou moribundo, e com que nós nos abraçaremos tambem antes de ir dormir o grande somno, ao pé do que nos gerou, no cemiterio da mesma aldeia em que elle e nós nascemos. A patria é o complexo de familias enlaçadas entre si pelas recordações, pelas crenças, e até pelo sangue. Tomae, de feito, as duas dellas que vos parecerem mais estranhas, collocadas nas provincias mais oppostas de um paiz: examinae as relações de parentesco de uma com outra familia, quaes as desta com uma terceira, e assim por diante. Dessa primeira, que tão estranha vos pareceu á ultima, achareis um fio, enredado sim, talvez inextricavel, mas sem solução de continuidade. Uma nação não é só metaphoricamente uma grande familia: é-o tambem no rigor da palavra.

A oração que consolou nossos avós nos consola no dia da amargura: o gesto com que imploramos a providencia é mais vehemente quando nos foi transmittido por aquelles que pedem por nós a Deus. É por esse meio que os homens apertam mais os laços invisiveis que os unem aos seus maiores; porque o sentimento mysterioso da familia, e portanto da nacionalidade, se purifica e fortalece quando se prende no céu.

Vêde na historia a prova de que a religião póde por si só crear uma nacionalidade mais rapidamente que todos os outros elementos que tendem a compôr as nações. Considerae as cruzadas; essa multidão de homens nascidos em paizes diversos, entre os quaes não ha nenhuma communidade de interesses, antes muitas vezes odios sangrentos e fundos. Lá na Asia, em frente do islamismo, formam um só povo; são irmãos, porque ajoelham todos ante o mesmo altar; combatem todos pela mesma idéa religiosa. Olhae para os mussulmanos: vêde o koran agglomerando, assimilando o beduino e o egypcio, o alarve do Atlas e o negro de El-Sudan. Onde quer que um pensamento grande precisa de toda a energia de uma unidade social para se desenvolver e realisar, lá haveis de encontrar a religião produzindo essa energia.

Se isto é assim, qual culto, entre os de todas as parcialidades christans, será mais efficaz em gerar essa unidade forte do amor patrio, que dá, não tanto a vida activa e exterior, como uma vida intima, escondida, tenaz, que resiste á morte e á dissolução social? Serão essas mil variações do protestantismo, que diariamente se vão subdividindo, e condemnando umas pelas outras; essas crenças incertas, em que o filho já despreza o culto que o pae seguiu, e o neto desprezara o de ambos? Quando e onde, não dizemos na mesma cidade e na mesma rua, mas na mesma familia, em quanto o marido dorme ao som monotono do sermão anglicano, sublime de trivialidade e tedio, a mulher dá representações de Bedlam [1] n’uma senzala de quakers ou de methodistas, póde-se acaso dizer que ahi a religião é laço que impeça a morte do corpo da republica, não nos dias de ventura e prosperidade exterior, em que é facil conservar pelo orgulho a unidade nacional, mas nas epochas de calamidade e decadencia? Parece-nos pouco provavel. Ahi, as prisões moraes da familia são apenas habitos humanos, e não estão harmonisadas e sanctificadas por se prenderem no céu: o primeiro sopro das paixões ou da desventura as reduzirá a pó. A historia tambem no-lo diz, e a historia não é senão a prophecia do futuro.

O protestantismo accusa o catholicismo de se haver afastado da pureza christan antiga, e gaba-se de ter revocado o christianismo ás suas tradições primitivas. O discutir tal materia, em relação ás doutrinas, fôra insensato: os tempos dessa argumentação consummaram-se; tudo por este lado está dicto de parte a parte. Quanto, porém, ás formulas exteriores do nosso culto, são essas que ainda hoje attrahem os insulsos motejos da imprensa protestante; é o culto catholico principalmente que dá origem áquellas graças inglezas, tão agudas como a intelligencia dos habitantes do Bethnal-Green de Londres ou do Winds de Glasgow, embrutecidos pela fome, pela embriaguez e pela immundicie; tão brilhantes e leves como o fumo de carvão de pedra, que constitue a atmosphera britannica. Diariamente são accommettidas as duas nações das Hespanhas nos seus habitos religiosos por homens que empregariam melhor o tempo em estudar os cancros asquerosos que devoram moral e materialmente a classe popular no seu proprio paiz, e em pedir á riqueza, só poderosa, só respeitada, só insolente, mais alguma caridade para com os muitos milhões dos seus compatricios, que lidam, cheios de fome e de frio, cubertos de farrapos e vermes, para accumularem aos pés de bem poucos homens as fortunas incalculaveis e quasi fabulosas que alimentam o luxo desenfreado de Londres, da Roma, ou antes da Babilonia moderna.

Por certo que no culto catholico se tem introduzido abusos, e para isso contribue muitas vezes o proprio clero, menos instruido, menos bem educado, moralmente, que o clero anglicano. Mas em que é culpado o culto da pouca instrucção dos seus ministros, e dessa falta de educação moral, que diversas causas, alheias á religião, têm trazido e trazem ainda? É a igreja que recommenda a ignorancia? São os abusos consequencias logicas das doutrinas catholicas? Eis o que cumpriria se provasse, como não é difficultoso mostrar, que o protestantismo, querendo annullar as pompas e espectaculos, as formulas externas e brilhantes do catholicismo, matou tudo o que a crença do Calvario tinha de uncção, de consolações, de affectos para o commum dos seus sectarios, e converteu a religião n’uma certa metaphysica nevoenta, que foge á comprehensão das almas rudes e vulgares, quebrando todos os esteios, a que nesta vida de tristezas e dores ellas se encostavam para confiarem no céu, e consolarem-se na esperança; porque esses arrimos, necessarios á sua fraqueza intellectual, eram o unico meio de subirem até o throno de Deus, e descerem de lá armadas de resignação para continuarem a luctar com as tempestades da existencia. O protestantismo foi só feito para os ditosos e abastados da terra!

Vêde aquella casinha, tão humilde e só, no meio de um descampado. Lá, sobre camilha dura e rota, delira em accesso febril um filho, unico amparo da mãe idosa, que véla chorando ao pé delle. Na sua solidão e miseria nenhuns soccorros humanos póde esperar a pobre velha, cujas mãos trémulas em vão tentam conchegar as roupas, que o febricitante arroja, murmurando afflicto com o ardor que o devora. Uma lampada de ferro, que allumia frouxa o aposento, arde no canto opposto diante de uma grosseira e affumada imagem da Virgem. A triste mãe volve para lá os olhos embaciados da idade e das lagrymas, e sente que não se acha inteiramente abandonada. Alli está outra mãe que tambem derramou pranto por um filho; pranto mil e mil vezes mais amargoso que o seu. Ella ha-de comprehender-lhe a afflicção e valer-lhe, porque é boa, e poderosa ante Deus. Ei-la, a pobre velha, que trôpega se arrasta, e ajoelha aos pés da imagem, e cruza as mãos enrugadas, e ora; ora com fé viva. Na procella de terrores que a cercam começa a bruxulear uma luz de esperança: espera, porque crê na possibilidade da intercessão e dos milagres; e anima-se, e a tempestade da sua alma asserena-se, e a dor mitiga-se, porque, no meio das lagrymas e das resas, ella pensa lá comsigo que aquella imagem trouxe já muitas consolações a seus paes, a ella mesma, e a toda a familia, e que a Virgem Sanctissima ha-de acudir-lhe ao seu filho, que desde pequenino gostava de ir apanhar as flores campestres para enfeitar a Senhora, e que tantas vezes á noite antes de se deitar ía pôr-se de joelhos alli onde ella estava, e resar uma salve-rainha. E quantas vezes, depois destas orações ardentes, volve Deus olhos compassivos para a morada da miseria e da amargura, e obra, não um milagre inutil, mas o beneficio que faria qualquer medico, se na habitação solitaria houvesse a possibilidade de se buscarem os soccorros da sciencia humana!

Dirá o protestantismo que isto é idolatria? Que! Ignora, acaso, o mais grosseiro catholico que acima dessa imagem está o espirito puro que ella representa, e que acima desse espirito está Deus? O catholicismo no seu culto das imagens, nas suas festas, nas suas visualidades, como vós lhes chamaes, commetteu o grave erro de suppôr que a maioria do genero humano não era composta de philosophos, nem capaz de um espiritualismo absoluto; de abstrahir inteiramente das cousas sensiveis para remontar ao céu. O catholicismo lembrou-se das doutrinas do Christo; accommodou-se á curta comprehensão dos pequenos e humildes. Vós tendes um evangelho mais fidalgo e altivo. O protestantismo convem por isso ao Reino-Unido, onde os quatrocentos mil senhores do solo são tudo, e são nada quinze ou vinte milhões de servos de gleba e de mendigos.

E como deixaria elle de ser exclusivo, aristocratico, orgulhoso? Essa crença, ou antes essa infinidade de crenças, unidas só em guerrear a igreja de dezoito seculos, e que no dia em que lhes faltasse o inimigo commum se despedaçariam mutuamente, não podem deixar de viver de um mysticismo perfumado, de um culto inintelligivel para o povo. Desde que a reforma substituiu á auctoridade e á tradição a sciencia humana, o raciocinio e a discussão, saíu do templo para a eschola; transformou-se de fé em theoria. Então o christianismo deixou de ser uma cousa practica e positiva para todos os homens: os espiritos grosseiros e ignorantes acceitaram-n’o como um costume que acharam no mundo, sem affecto nem má vontade, e as imaginações desregradas fizeram cada qual uma religião a seu modo. Deram uma biblia ao ganhapão, ao porcariço, ao belforinheiro, e por esse facto constituiram-n’o theologo, sancto-padre, e até concilio. Creram ter estendido ao genero-humano a maravilha das linguas de fogo que desciam sobre os apostolos, e ficaram muito contentes de si. As multidões é que ficaram tristes e desconsoladas, porque tinham desapparecido de redor dellas todos os symbolos, todas as imagens, que lhes serviam como de marcos miliarios para buscarem a Deus.

Affigurae-vos, de feito, o exemplo da mãe idosa e miseravel, que vê em transes mortaes o filho, seu unico abrigo; buscae este exemplo ou outro qualquer, porque entre os pequenos não são raras nem pouco variadas as occasiões de asperos infortunios. Lançae-a no seio do protestantismo. Qual refugio lhe offerecerá a religião; refugio immediato, solido, esperançoso? A biblia? Tambem nós sabemos que thesouros encerra a biblia: tambem nós sabemos quantas vezes as suas paginas divinas têm feito dilatar em torrentes de lagrymas as negras aperturas do coração: tambem nós sabemos que dessa fonte inexhaurivel mana a resignação e a paz: a igreja catholica sabia-o muitos seculos antes de vós existirdes. Mas quem vos assegura que a pobre velha achará a passagem analoga á sua situação; que encontrará nas palavras do livro sacrosanto o conforto de que carece, e a esperança do soccorro immediato e sobre-humano de que não menos precisa? Quem vos assegura, emfim, que ella saberá ler? Ou é que no paiz dos quakers a inspiração tambem faz de mestre-eschola, como exercita o mister de mestre de theologia?

E depois, não sabeis que a dor moral do homem do povo tem gemidos e queixumes; é estrepitosa, delirante, sincera? que não se reporta, não se esconde, e vem ao gesto, aos meneios, aos olhos, á voz, como a dor physica! Julgae-la acaso semelhante ao spleen do dandy, ou ao devorar intimo e calado das almas, a quem a educação e a sciencia ensinaram a dignidade das grandes agonias? Estes taes, exteriormente tranquillos, podem encostar-se ao braço, fitar os olhos no livro aberto ante si, e aspirar naquellas paginas sublimes e profundas o halito consolador que dellas espira. Mas para o homem do povo, quasi primitivo, quasi selvagem, cujos olhos nadam em pranto, e que se estorce e brada flagellado pela afflicção, a biblia é nesses instantes inutil, porque é impossivel. Deixae-lhe a imagem do sancto, o crucifixo, o voto, o altar domestico, a lampada accesa ante o vulto do martyr ou da Virgem: deixae-lhe o ajoelhar, o gemer, o resar, o fazer promessas. Deixae os symbolos materiaes da confiança na providencia á imbecilidade da natureza humana, aliás, crendo anniquilar a superstição e a idolatria, não fareis senão matar a vida moral e religiosa do povo.

Se nos dias, desgraçadamente mui communs, das máguas extremas só o catholicismo tem conforto para o homem rude, nos de contentamento só o catholicismo tem festas que convertam para a gratidão e para Deus o seu goso interior, que tende a trasbordar em risos e folgares. O simples repouso do domingo, para o que, condemnado a lavor indefesso durante a semana inteira, compra á custa de suor e cansaço um pouco de pão duro e grosseiro, é uma alegria semelhante á do preso, que, adormecendo em ferros, despertasse livre. Aquelle coração precisa de dilatar-se, aquelles sentidos de recrearem-se, aquelle espirito murcho e triste de se tornar viçoso, de desabrochar de novo ao sol da vida, ao menos n’alguns desses dias reservados ao descanço. É então que o catholicismo lhe offerece as pompas das suas solemnidades; o templo illuminado, os canticos dos sacerdotes, as harmonias do orgão, o espectaculo brilhante das vestes sacerdotaes e dos adornos do altar, os ramilhetes povoando os degraus do sanctuario, ou juncando o pavimento, o incenso embalsamando a atmosphera. E como tudo isto é para as multidões, o culto trasborda do estreito recincto e derrama-se pelas ruas, pelas praças, pelos campos em procissões, em cirios, em romarias, e o povo fluctua, folga, resa, tripudia, esquece-se dos seus destinos de miseria e trabalho, ama a religião que o consola, e voltando ás suas habituaes fadigas, leva para o meio dellas a saudade do dia-sancto e as recordações affectuosas da igreja.

E o protestantismo? O protestantismo despedaçou os vultos dos sanctos, prohihiu os oragos, as procissões e as romagens: esfarrapou alvas, casulas, amictos, pluviaes; apagou as luzes; varreu as flores; assoprou o incenso. Fechou-se na celebração do domingo; e fez bem! bem ao povo, a quem para tedio e tristeza, nos paizes protestantes, sobeja o domingo. E porque fez elle isto? Foi porque essas cousas eram superstições papistas: as imagens idolatria, a agua benta agua lustral, as vestes sacerdotaes indecencias ridiculas, as ceremonias visagens, a missa mentira. Passagens de biblia e compridos sermões ficaram bastando ao culto externo, e se alguma cousa deixaram ainda a este, poetica e attractiva, foi o canto dos psalmos e as harmonias do orgão; porque, como todos sabem, nas agapas dos christãos primitivos cantavam-se os psalmos ao som do orgão!! Os protestantes são indubitavelmente antiquarios eruditos, mas, sobretudo, logicos.

Qual foi o resultado desta reformação insensata de instituições antigas e venerandas? Foi que o culto se tornou n’um habito machinal, n’uma acção que se practíca na impossibilidade de se practicar outra. A policia vigia sobre isso. Deixe ella ao domingo abrir as lojas, os passeios, os estabelecimentos publicos, os espectaculos, as fabricas e as officinas; deixe correr nas veias do corpo social o sangue comprimido, e os templos dos districtos d’Inglaterra mais fervorosos no protestantismo ficarão tão ermos como as igrejas da Irlanda, onde o reitor préga ao sacrista o suado sermão, que ha-de um dia, impresso, allumiar o mundo, emquanto o seu recalcitrante rebanho, á porta do presbyterio solitario, ouve ajoelhado na rua a missa que em altar portatil lhe diz o pobre clerigo catholico, verdadeiro e legitimo pastor, a quem incumbe o consola-los, bem como ao parocho protestante pertence... o que? Fazer predicas ás paredes, e comer os dizimos, sacramento, que, de certo, o puritanismo protestante achou n’algum alfarrabio velho ter sido instituido por Christo!

Temos ouvido lamentar ás pessoas de boa fé excessiva, destas que estudam as nações nas apparencias, e não na vida intima, que o catholicismo não tome entre nós a severidade e decencia exterior do culto anglicano; que o dia consagrado ao Senhor não seja guardado pontualmente; que as nossas igrejas não offereçam na celebração dos officios divinos a gravidade, o silencio, a ordem, o aceio de um templo protestante, nas horas destinadas á oração. No estado actual das sociedades, em que o fervor dos primeiros tempos christãos tem esfriado, em que, tanto entre catholicos como entre protestantes, a religião deixou de ser o primeiro, ou, ao menos, o exclusivo negocio dos homens, o que elles desejam seria impossivel, e se absolutamente um bem, relativamente um grande mal; porque as causas que facilitam esse estado de cousas em Inglaterra são a prova mais clara da morte, se não de uma certa religião vaga, em que os espiritos mais cultivados se alevantam até ao pé do throno de Deus, ao menos da religião positiva, practica, definida, morta e enterrada ha muito na mina de carvão de pedra chamada Gran-Bretanha.

Já dissemos que não é tanto o sentimento religioso que guarda em Inglaterra a decencia do culto, como a admiravel policia ingleza. Quem não o sabe? Quem ignora que naquelle paiz a religião tem a natureza de outra qualquer formula material da sociedade; que é uma cousa como o regimento, a nau de guerra, o workhouse? Ao christão um vigario, uma biblia, e a cadeia se perturbar o officio divino; ao soldado um coronel, uma espingarda, e uns açoutes se mecher a cabeça na fórma; ao marinheiro um commodóro, um posto juncto da amurada, e um mergulho por baixo da quilha se offender a disciplina; ao miseravel que vae cahir no workhouse um director implacavel, uma atafona, e ração curta para aprender a deixar-se estalar á mingua sem pedir esmola. A cada instituição suas condições, sua sancção penal, seus destinos: o regimento serve para provar aos chartistas que a melhor organisação politica possivel é a que faz morrer annualmente milhares de obreiros de fadiga, de fome, e de febres putridas sobre uma pouca de palha fetida e humida, no fundo de subterraneos; a nau serve para civilisar a India pelas contribuições, e moralisar a China pelo opio; o workhouse serve para curar radicalmente os que não têm nem pão nem camisa, do vicio infame da mendicidade; emfim a igreja dominante (established church) serve para sustentar de dizimos muitas familias honradas com as modestas e reformadas prebendas anglicanas, entre as quaes nenhuma excede a vinte mil libras esterlinas per annum, ou, em moeda portugueza, a obra de uns mesquinhos duzentos mil cruzados.

O templo catholico é commummente o symbolo da completa igualdade: lá não ha distincções, senão para os ministros do culto; e quando o orgulho humano, que forceja sempre por invadir ainda as cousas mais sagradas, vae ahi profanamente estender o tapete aristocratico, e collocar sentinellas, o povo murmura, e murmura em voz alta; porque sabe que na sociedade christan só ha um Grande e Poderoso, que é Deus. Os nossos habitos, as nossas idéas são que o mais commodo, o mais distincto logar no templo pertence ao que primeiro o occupou. O catholicismo entendeu que diante da magestade do Creador os vermes cobertos de brocado não o são menos que os vermes cobertos de farrapos. Assim o vulgo dos fiéis precipita-se como torrente através dos umbraes da igreja; estrepita nas lageas do pavimento com os seus sapatos ferrados; roça com o burel grosseiro as finas sedas dos nobres e abastados; afasta com as mãos callosas os grupos alindados dos peralvilhos; esquece-se, emfim, dos respeitos humanos, que se guardam, e devem guardar, cá fóra. Como, pois, obter a ordem, as attenções, o silencio? O nosso povo é rude e mal educado (não o gabâmos por isso; mas o vulgacho inglez leva-lhe, em bruteza, incomparavel vantagem); o nosso povo conserva dentro do templo os habitos ruidosos, inquietos, grosseiros da praça publica. E poderia elle despi-los de subito ao entrar na casa de Deus? Prova acaso o borborinho, que ahi sôa, desprezo pela religião? Examinae os que parecem estar com menos respeito e decencia; os que falam e se agitam: são aquelles entre os quaes o christianismo iria achar os seus martyres, se viessem de novo os tempos em que a crença do Crucificado precisava de ser revalidada pelo sangue dos seguidores da cruz. Que esses pobres tontos, que nos motejam sem nos conhecerem, venham estudar o catholicismo portuguez, se d’isso são capazes, e saberão se nós falâmos verdade.

Nestas consequencias, tão logicas, tão rigorosas do caracter primitivo da religião christan, e do estado das classes inferiores da sociedade, poz cobro a igreja anglicana. É verdade que Jesu-Christo, segundo o Evangelho, na traducção vulgata, chamou principalmente os pobres e humildes; e se no templo ha quem valha mais que outrem, não são por certo aquelles que o Filho de Deus achava mais anchos para entrarem no reino dos céus, do que um camello para entrar no fundo de uma agulha. A igreja reformada entendeu provavelmente que outra era a interpretação do Evangelho; porque é corrente que os catholicos nunca souberam grego, desde S. Jeronymo até Angelo Policiano, ou Ayres Barbosa, para o poderem interpretar bem. Assim, em Inglaterra, aquellas tão formosas e vastas cathedraes da idade média, a que só falta um culto poetico e consolador para serem sublimes, repartiram-se em camarotes de theatro, fechados á chave, e alguns até com todos os requisitos desse comfort, que só os inglezes conhecem bem. As jerarchias do dinheiro e do sangue estão lá rigorosamente guardadas: pelo logar dos stallos, e pelo seu luxo, os espiritos habituados á topographia da Church podem orçar o numero d’avós ou os milhares de libras que possue cada filho da igreja anglicana: o commum dos villãos, empurrados para ao pé da porta, lá perdem em parte os deliciosos periodos do sermão do reitor, encarregado de acalentar... queremos dizer de conservar puros na fé averiguada e decretada pela grande theologa chamada a rainha Isabel, os seus dizimados freguezes.

E o vulgo? Os homens do trabalho, da fome, dos farrapos? Os tres quartos da população ingleza? Esses? Esses lá têm o templo da esperança e do consolo: lá tem o gin’s palace (palacio da genebra), a taberna. Na sua incrivel miseria, os homens que não podem encontrar Deus, porque a igreja anglicana lh’o collocou n’uma atmosphera nebulosa, onde o não descortinam; porque o templo os repelle; porque o priest com seu aristocratico, polido e perfumado sermão, não póde substituir a entidade exclusivamente catholica chamada o missionario, sublime de persuasão, de energia e de virgem rudeza; os miseraveis, dizemos, atiram-se desorientados aos braços da embriaguez, porque a embriaguez tem o esquecimento, tem a sua horrivel alegria. Lá, no gin’s shop, estendendo o braço cadaverico e vacillante para a destruidora bebida, sorvendo-a com phrenesi, essa especie de brutos com fórma humana resumem no seu aspecto e meneios, e na decadencia de todos os sentimentos de pudor, as ultimas consequencias moraes do protestantismo.

Que nos seja permittido citar as proprias palavras de um escriptor moderno, [2] que, melhor talvez que ninguem, pintou o estado presente das ultimas classes em Inglaterra, e que em todos os factos que narra se funda ou nas proprias observações, ou nos documentos officiaes publicados pelo governo inglez. Perfeitamente imparcial a respeito da Gran-Bretanha, o seu testemunho é o que mais a proposito podemos neste ponto invocar.

“A seriedade e o silencio com que este licôr ardente (a genebra) é tragado, fazem arripiar. É como se o povo assistisse a um officio divino. Consummado o sacrificio, vão-se assentando no banco de madeira corrido em frente do balcão, e alli ficam quedos, mudos, como arrebatados em ineffavel extasi. Depois, passados alguns minutos, voltam ao balcão, tornam a beber, e repetem até se lhes acabar o dinheiro. Vae-se assim a ultima mealha. E têm animo de affrontarem o morrer de fome, elles e seus filhos, para se embriagarem. Provou-se pelos inqueritos feitos por causa da lei dos pobres, que as esmolas em dinheiro, dadas pelas parochias, íam cahir inteiras na taberna, e só aproveitavam ao taberneiro. A povoação infima da Inglaterra está de tal modo atolada no seu lodaçal, que não ha ahi caridade que possa desempega-la.

“Sabem todos quão rigoroso preceito ecclesiastico e civil é o guardar o domingo em Inglaterra. A unica excepção da regra é a taberna. Lojas, tudo fechado; logares de honesto ou instructivo recreio, como hortos botanicos e museus, o mesmo. Só o gin’s shop se abrirá de par em par a quem empurrar a porta com o pé. O caso está em que pareça cerrada: duas meias portas solidas, que se fechem por si, fazem a festa: janellas fechadas: dentro lusco-fusco, como em sanctuario, e até sua luz de gaz. Tomadas estas cautelas, plena licença, licença auctorisada para se venderem bebidas todo o dia sem lhe faltar hora. E é neste paiz que os caminhos de ferro estão devolutos por todo o tempo do officio divino, em honra do domingo! Emquanto, em Manchester, eu me espantava das largas que se davam ás tabernas, apresentava-se á camara dos Lords um bill para prohibir o transporte das mercadorias pelos canaes no sagrado dia do domingo! Nesta cidade de Manchester ha jardins zoologicos e botanicos, que o povo frequenta gostoso; mas não se obtem da pontualidade anglicana que estejam patentes no dia sancto; e os bispos, tão escrupulosos no mais, são indifferentes pelo que toca aos gin’s shops, abertos publicamente e frequentados ao domingo. Não é singular que a cousa unica permittida ao povo seja o embriagar-se?”

Não!—­diriamos nós ao auctor do excellente livro que havemos citado.—­O governo e a igreja da Gran-Bretanha sabem que entre a horrivel miseria das classes laboriosas, a embriaguez e o suicidio não ha uma quarta cousa para suavisar a agonia dos tractos que a primeira dá ao homem do povo. A religião, que falava aos sentidos do vulgacho, e por meio delles ao seu espirito, mataram-n’a; e como a morte não tem remedio, o protestantismo, creança de dous dias, mas já sem vigor e esfalfada, encommenda á religião das pipas o salvar os malaventurados obreiros, não do suicidio moral, mas ao menos do physico.

Dir-se-ha que o povo não está entre nós n’uma situação analoga á do povo inglez, para o catholicismo ser posto á prova? Felizmente isso é verdade. Mas já houve tempos quasi semelhantes, posto que ainda inferiores em terribilidade, aos que vão correndo para a gente miuda de Inglaterra. Era quando a peste devastava as nossas cidades e ermava os nossos campos, levando-nos ás vezes mais de um terço da população. Ahi existem innumeraveis monumentos dessas epochas desastrosas: que appareça um só por onde se prove que o desalento popular buscasse conforto no vinho e aguardente. Pois, cá, o remedio não era caro! O que achâmos são as preces, as romarias, as procissões, as lagrymas, os votos, o sentimento exaltado da confiança e da resignação na Providencia. Achâmos a pequena differença que vae de um christão a um bruto.

“E os irlandezes?”—­Oh, bem sabemos que os irlandezes, catholicos como nós, na sua miseria monstruosa têm cahido, se é possivel, ainda mais fundo que os inglezes. Mas, em rigor, esses catholicos na intenção e na crença podem acaso sê-lo no culto que aviventa o espirito? Onde lhes deixou o protestantismo os seus templos, os seus sacerdotes, os seus costumes religiosos? O vulgacho irlandez é o argumento mais dolorosamente persuasivo da necessidade dessas festas, dessas alegrias, dessas fórmas materiaes do culto. Sem ellas, o catholico miseravel embrutece-se como o miseravel protestante; e o seu embrutecimento vem, por outra parte, recordar-nos de que não é possivel achar um nome, que qualifique devidamente o descaro com que o anglicanismo, inquisidor implacavel e tenaz de tres seculos, nos lança em rosto as trinta mil verdades e as sessenta mil mentiras, que, com justissimo horror, se relatam da Inquisição.

Eis o que nós podemos responder aos insulsos dicterios com que é diariamente vilipendiado o catholicismo portuguez: e não dizemos tudo; não dizemos metade. Quanto aos motejos que nos dirigem como nação pobre, pequena, fraca, isso não passa de uma covardia, que só deshonra a quem a practíca. Trabalhemos por levantar-nos da nossa decadencia. Será essa a mais triumphante resposta.

E com estas deambulações de patriotismo religioso saltámos a pés junctos pela historia do padre prior. No capitulo seguinte daremos satisfação plena ao pio e benigno leitor.


  1. Bedlam, como a maior parte dos leitores sabem, é o mais famoso hospital de doudos em Inglaterra.
  2. Buret, De la misère des classes laborieuses (1842), Liv. 2. cap. 4.