A quem não tem succedido nas horas de solidão, no silencio da noite em que não póde dormir, ou no pino de dia calmoso, ao atravessar o bosque cerrado e sombrio, onde só se ouve o zumbir e o ferver dos insectos; a quem não tem succedido engolfar-se n’uma vaga meditação, e, por assim dizer, tombar de pensamentos em pensamentos, presos por fio tão tenue, tão imperceptivel para a consciencia, que, depois dessa especie de devaneio, pretender remontar da ultima á primeira idéa seria baldado empenho, por falta de transições naturaes e logicas? E todavia, a alma, que, nessa situação, como que perde o sentimento da vida externa lá achou, no seu incessante cogitar, uma ponte invisivel para transpôr os abysmos que a fria, coixa e orgulhosa razão humana suppõe existirem, quasi a cada passada, no mundo da intelligencia. Quando o espirito se desata dos corpos; quando a imaginação, depurando o senso intimo, o faz repellir a materia, fechando-se, como a mimosa pudica, á acção grosseira dos sentidos externos, o homem alevanta-se até o viver de além da morte, a luz dos anjos allumia-lhe as profundezas mais obscuras do universo ideal, e elle sabe quaes os caminhos e valles que unem as suas cumiadas brilhantes, unicos pontos que se podem enxergar da terra. O primeiro que disse “em tudo está tudo” teve uma destas revelações da imaginação pura, revelação completa do ideal, que não é mais do que a fusão da variedade absoluta e infinita na infinita e absoluta unidade.
Mas estes momentos, em que somos illuminados pelo sol da vida celestial, passam rapidos: o espirito cahe logo dentro dos limites da sua existencia de provança e desterro, e recordando-se confusamente daquellas inspirações passageiras, sorri-se e chama-lhes sonhos, abusões, desvarios. É que a pobre e suberba razão, myope advogada do lodo e do crepusculo, rejeita com horror as cogitações puras e luminosas, que Deus faculta ás vezes ao miseravel ente, creado quasi anjo por elle, e a quem o primeiro raciocinio que se fez na terra converteu em insensato e precíto.
E a que vem estas metaphysicas aqui? De que utilidade são ellas para a historia do parocho da aldeia, e da festa do orago, ha tanto tempo interrompida, e que até agora não tem passado de divagações por objectos sem ligação com a vida e costumes do reverendo padre prior?—“Venha o padre prior: venha a festa—dirão alguns—e deixemo-nos dessas metaphysicas modernas, que escorregam por entre os dedos, e não passam de feixe de maravalhas ao pé daquellas grandes philosophias dos ideologos, que até um sapateiro era capaz de estudar batendo a sola e apertando o ponto; philosophia de pão pão, queijo queijo; philosophia substancial; philosophia d’ouvir, vêr, cheirar, gostar, e apalpar, roliça, atoucinhada, confortativa. Se era necessario algum troço da sciencia do atqui e ergo para atar estes capitulos ou capituladas da chronica aldeian, porque não recorrer ao clarissimo Condillac, ao bis-clarissimo Tracy? Para que parafusar em entes de razão impalpaveis, em armadilhas que trescalam ás parvoices germanicas, quando estava ahi á mão a philosophia do senso commum, que é o senso patagão e russo, tupinamba e sueco, chim e dinamarquez, emfim o senso de todo o mundo?”
Ai, leitor, que ahi bate o ponto! Quem me dera isso! Quem me dera poder explicar por um capitulo tantos, paragrapho tantos, daquelle sancto homem de Locke, o que me succedeu ao escrever esta famosa historia, e lançar na balança da tua inflexivel justiça uma desculpa de obra grossa dos meus rodeios, desvios e viravoltas na ordem e disposição destes importantes estudos! Por mais que scismasse, por mais que afferisse pelos bons principios ideologicos o meu trabalho, sabia-me tudo torto: era querer levantar uma bóla com um gancho, ou firmar a taboa-rasa do philosopho inglez sobre uma das pontas de um dilemma. Como ageitar a minha narração deambulatoria pelas regras do methodo? Impossivel, impossibilissimo! Fiz então como Constantino Magno. Não achando escapula nem esperança na religião da materia em que me crearam, fugi para a religião dos espiritos, e por uma theoria de abstracção subjectiva expliquei, como Deus me ajudou, as minhas, aliás inexplicaveis, divagações. Encostado a ella como a uma columna de basalto (de basalto, porque as de marmore e de bronze estão muito safadas do uso quotidiano) rir-me-hei do mais abalisado doutor, que venha perguntar-me qual é a ordem logica das minhas idéas. A resposta está no que expuz: pontes intellectuaes, invisiveis, inappreciaveis pelas regras ordinarias do methodo; pontes que unem o branco ao preto, o circular ao anguloso, o proximo ao remoto. Fecho-me nisto. A imaginação que assim o fez, é porque assim devia ser: está muito bem feito, ao menos no mundo da idealidade pura. Foi lá que eu passei de um veneravel parocho d’aldeia, portuguez velho em costumes, em linguagem, em crenças, vulto poetico e sancto, para um inglez impertigado, monosyllabico, iconoclasta, libertador de pretos alheios, escravisador de saxões e irlandezes brancos; n’uma palavra galgei de um a outro pólo da humanidade. Foi lá, que eu pude tombar, rolar, precipitar-me do catholicismo suave, consolador, festivo, ameigador dos miseraveis, despresador dos poderosos suberbos, symbolisador, no seu culto, da igualdade ante Deus, para o anglicanismo perfumado, espartilhado, casquilho, tezo, aristocratico, nevoento, dizimador, intolerante, enxotador dos mendigos, camaroteiro dos templos; pude tombar, rolar, precipitar-me do vertice brilhante, d’onde derrama a sua eterna claridade o puro espirito do christianismo, no charco onde o mergulhou e affogou a vontade de um tyranno devasso do seculo XVI, e a van presumpção de sua filha, a pura, generosa, e sábia Isabel, especie de concilio Niceno de carne e osso para o protestantismo inglez. Dou vinte annos a todos os ideologos para explicarem por outro systema a transição monstruosa e incomprehensivel, que fiz a semelhante respeito nestes gravissimos estudos. Idealisei um inglez (foi façanha!), idealisei o meu bom prior, e no mundo da razão pura lá achei que havia entre essas existencias, infinitamente oppostas, uma affinidade: qual, não sei eu dizer, porque o esqueci: e ainda que me lembrasse, não saberia exprimi-lo. Dada esta explicação aos pechosos, vamos ás promettidas duas palavras sobre a festa.
Era um dia ardente de julho, a 27, cousa certissima para o leitor, em consequencia das minhas profundas investigações chronologicas. O sol ia alto: a igreja parochial, involta no manto tricolor—branco, amarello, e vermelho—cal, ochre, rôxo-terra—parecia rir no seu jubilo. Um moço do Bartholomeu da Ventosa, rapazote de quinze annos, quatro mezes, vinte quatro dias, e vinte tres horas e tres quartos completos (por ter nascido a uma segunda-feira, á meia noite menos um quarto, de dous para tres de março) neste grande dia do orago pilhára ao moleiro duas graças a um tempo, a de deixar em descanço o seu tonel das Danaides, a implacavel joeira, e a de poder assistir á festa e ouvir a missa cantada e o sermão, em vez de ir acabar o pesado somno da madrugada á missa das almas. Gabriel, que assim se chamava o rapaz, ou antes Graviel, segundo a mais euphonica pronuncia saloia, vestiu logo pela manhan as suas calças e jaqueta de bombazina em folha, e o seu colete vermelho, engenhado de um do patrão a trôco de dous mezes de soldada, calçou as botifarras novas, e enterrou o barrete azul e encarnado na cabeça, derrubando-o para traz, e sem fazer caso do almoço (pois era uma açorda que os anjos a comeriam) desandou, outeiro abaixo, pela volta das sete e trinta e cinco minutos da manhan, caminho da parochia. Via-se que um grande negocio lhe occupava o espirito, por isso que levava os olhos cravados no campanario, e sem fazer caso das trilhas, cortava por entre as restevas, escorregando, aqui, nas pedras soltas, levando-as, acolá, diante dos bicos agudos das botifarras. Chegou. O sacristão, que estava á porta da igreja, apenas o lobrigou poz-se a rir, porque logo entendeu o verso. Gabriel era um dos maiores pimpões em repicar sinos que havia entre a rapaziada do logar, mas desde que entrára para casa do tio Bartholomeu, nunca mais puzera pés no campanario. Nos meneios, no gesto, no olhar lhe revia a sêde, a ancia, a saudade das harmonias risonhas, doudas, estrugidoras de um repique desenganado. Vinha tão cégo, que só viu João Nepomuceno (assim se chamava o sacristão) quando deu de rosto com elle. Estacou embatucado; tirou o barrete, e começou a coçar a região occipital, olhando de revez para o sacristão, que se encostára á hombreira, com as mãos cruzadas atraz das costas, assobiando o Veni Creator.
“É-lé Graviel!—disse este por fim com um sorriso.—Você hoje campou. O patrão é festeiro; fica o moinho a dormir! Heim? Galdére; não é assim? Mas, cos dianhos! não sei como não vieste cá dormir. Bota os olhos acolá para o arraial. Vês? Duas bolaxeiras, e a tia Sezila com queijadas; e disse. Ainda nem sequer o Chico appareceu para começar o repique. Pois para isso não é cedo, que a missa da festa é ás dez em ponto. Já o padre Chaparro e frei José dos Prazeres estão na sancrestia, e dizem que não tarda ahi frei Narciso, que vem servir de mestre de ceremonias.”
“Oh sô João de Permecena!—acudiu o saloio, que tornára, ao ouvir o nome do Chico, a enterrar o barrete na cabeça, mas desta vez á banda—com a sua licença, ha-me de perdoar: não sei o que fez em chamar n’um dia destes aquelle jimento do Chico para tocar os sinos. Aquillo!? Ora, deixa-me rir. Ha-de-a fazer bonita; não tem duvida? Olhe, sempre lhe digo...”
“Não digas nada: bem sei. Mas que dianho querias tu com uma cravella de doze que dá a menza da irmandade, e nicles? Mesmo o Chicho, deu-me agua pela barba para o resolver. Se aquillo são uns dianhos d’uns fonas!”
“Pois se vocemecê quer—interrompeu Gabriel, em cujos olhos se accendia o desejo, o deleite, e a esperança—eu lá vou. Hoje o patrão deu-me licença até ás trindades. Salto na torre, e vae tudo raso. Toco até aquella cantiga de Lisboa, que dizem que canta um tal Catragena em S. Calros: ... totro, trão-balão, re-pim, piri-pim-pão.”
Enthusiasmado, o moço do moleiro cantarolava, imitando os sons de um sino, ou antes de um tacho, a musica horrendamente aleijada, esfarrapada, assassinada do dueto de Assur e Semiramis: La sorte piu fiera. Se Rossini alli chegasse de subito, ou não a conhecia, ou enganava-se. O sacristão estava enlevado.
“Homem!—disse elle quando Gabriel parou—bom era isso: mas o Chico está ajustado; e já agora.....”
“É que o Chico é o seu padagoz: ha-me de dar licença que lho diga, senhor João de Permecena!—interrompeu o moço do moleiro, vendo apagar-se a luz que lhe illuminára o espirito.—Pois eu tocava ahi a desbancar ainda por menos: bastava que me pagasse um arratel de bolaxas e dous berimbáus.”
“Eu cá não tenho padagozes, homem! Cos dianhos!—replicou o sacristão.—Se elle não estiver aqui ás oito, dou-te a chave da torre, e são hoje teus os sinos. Quando quizeres terás as bolaxas e os berimbáus.”
A proposta de Gabriel penetrára como um balsamo suave na alma do sacristão: fazia a despeza com seis e meio, e economisava o resto para a igreja, isto é, para si, como representante della.
Gabriel saltou acima do parapeito do adro e poz-se a olhar para o lado onde morava o Chico. Batia-lhe o coração com força. Ás oito horas devia nascer para elle um dia de gloria e contentamento, ou de desdouro e zanguinha. Deram as oito.—“Viva!—bradou, saltando ao terreiro, e correndo ao sacristão.—Venha!—proseguiu, lançando mão da chave da torre com tal violencia, que João Nepomuceno por um triz não foi a terra. Ia-lhe quebrando um dedo.
“Dianho!... Safa, alimaria! Forte doido!... Oh Graviel! Ouve cá, Graviel! Olha que está passada a corda da garrida...”
Qual Gabriel, nem meio Gabriel! Tinha desapparecido, semelhante a um foguete. O sacristão levantou os olhos para o campanario e viu já as cordas a bambearem e a desembaraçarem-se, como as tranças da nobre dama nas mãos subtis de aia geitosa. Gabriel era, sem a menor sombra de duvida, a flor e nata da rapaziada curiosa da aldeia.
Uma pancada retumbante e sonora no sino grande, a qual se repetiu lentamente algumas vezes, foi como um mensageiro, despedido por montes e valles, a annunciar um dia de repouso e folgares para o homem do campo, curvado sob o sol ardente nas ceifas e mais trabalhos ruraes do estio, durante os longos dias de trabalho. Era como o romper de uma vasta symphonia. Gradualmente os outros sinos misturaram as suas vozes argentinas com a do primeiro, e a atmosphera esplendida vibrou ondeando em tempestade de notas que se cruzavam, cortavam, interrompiam, luctavam em barbara harmonia. A principio Gabriel, pausado e lento, lançava successivamente uma ou outra mão a esta ou áquella corda: pouco a pouco os seus movimentos tornaram-se mais rapidos, e os sons que transudavam por todas as aberturas, pelos minimos poros da torre, começavam a assemelhar-se ao granizo do noroeste, que de instante a instante se torna mais espesso, ao passo que a nuvem corre mais perpendicular. Era, por fim, um remoinho, um delirio, uma furia sonorosa. Gabriel estava tomado de campanomania; mãos, pés, dentes, tudo repicava. Ennovelado, como um gatinho que quer agarrar e ao mesmo tempo repellir um dixe que colheu ás unhas, o bom do rapaz, com os olhos faiscantes e desvairados, parecia possesso: trepava, bracejava, careteava, tropeava, agachava-se, torcia-se, pulava, volteava, como se estivesse recebendo por todos os lados e a cada instante descargas electricas. Insensivel á matinada infernal, que lhe estrepitava nos ouvidos, Gabriel dirigia palavras de amor, d’ameaça, de incitamento aos sinos, como se elles podessem ouvi-lo. Queria communicar-lhes o seu ardor e enthusiasmo de dilettante; e como se o entendessem, dir-se-hia que, no contínuo vaivem, elles oscillavam tremulos de prazer, e tentavam desprender da pedra os braços robustos e voarem, como as aves que tambem soltavam livremente as suas harmonias pela amplidão dos ceus.
No fim de duas horas de lida a natureza recuperou os seus direitos. Alagado em suor, perdido o alento, esgotados os brios e as forças, Gabriel affrouxára pouco e pouco. A estrepitosa e horrenda caricatura do duetto de Semiramis fôra o canto do cysne. A viveza doudejante do repique converteu-se n’um tocar lento e solemne, que ora imitava o dobre de finados, ora os tres signaes melancholicos que indicam o fim do dia que expira.
Tambem era tempo. No seu banco parte dos festeiros, cubertos de fitas e medalhas, esperavam já impacientes que o prior, o padre Chaparro, e frei José dos Prazeres saissem da sacristia para começar a missa. No coreto as rebecas chiavam cada vez com odio mais figadal entre si, ao passo que os virtuosos faziam todas as diligencias possiveis para as pôr de accordo comsigo mesmas e com os outros instrumentos. A gente, não só da aldeia, mas tambem dos casaes e logares vizinhos, affluindo de contínuo, enchia a igreja, e o apertão, que ía a maior, principiava a avariar os chapeus, os schalls e os vestidos das aldeans mais opulentas, que tinham obtido transfigurar-se horrendamente com os trajos das peralvilhas da capital, os quaes harmonisavam tão bem com aquelles corpos mal acepilhados e robustos, com aquelles rostos morenos e rosados, como os instrumentos da revoltosa orchestra se afinavam entre si.
Era um escandalo, profundo escandalo, para as beatas da freguezia, para as almas repassadas de patriotismo saloio vêr as novidades de vestuarios, que as corruptoras influencias de Lisboa íam exercendo nos antigos costumes, viciados por essas escusadas louçainhas. A honestidade das raparigas, entendiam aquellas matronas de virtude tão solida como as suas sapatas, tinha ido por ares e ventos involta nos farrapos das humilhadas saias de baeta vermelha, das abandonadas roupinhns de panno azul, e das pyramidaes carapuças. A devassidão, embrulhada nos vestidos de chita, de lan e de seda, e mettida entre o forro dos chapeus de palha, penetrára no seio das familias. Tudo estava perdido, e a moral ía cada vez a peior, diziam ellas com a philosophia macissa que o judicioso Horacio já gastava ha dous mil annos, e que é a mentira mais trivial, mais velha e mais tola que se conhece no mundo. Nas suas reflexões piedosas as respeitaveis decanas da aldeia esqueciam, ou antes ignoravam, o unico motivo serio que havia para lamentar aquella transformação. Era que esses trajos tornavam contrafeitas as raparigas aldeians; matavam a poesia campestre; associavam ao idyllio a walsa e o whist, e como que impregnavam a atmosphera, pura, brilhante e livre, dos miasmas repugnantes que povoam o ambiente pesado e abafadiço de tertulia cortesan.
Mas, antes de proseguirmos nesta gravissima historia, é necessario que trepemos áquella encosta que fica defronte do presbyterio, e que vejamos o que é feito de um nosso conhecimento antigo, roda indispensavel para o andamento da machina de successos que vamos tecendo. Quem não vê que falâmos do nosso jovial e praguejador Bartholomeu, sancto velho, se não fosse um desalmadissimo avaro? O moleiro, desde que o filho casára, andava-lhe tudo á medida dos seus desejos. Era ganhar dinheiro como milho, e o futuro da familia dos Ventosas surgia brilhante no horisonte. O Manuel estava de feito aposentado na azenha do Ignacio Codeço, e com uma labutação de por ahi além. As peças do padre prior tinham feito o milagre sonhado por Bartholomeu, e ainda haviam sobejado algumas, que o honradissimo moleiro associára ás do seu mealheiro para arranjar o casal dos Caniços, de cuja venda já lhe dera palavra seu irmão Barnabé, a quem elle, havia dous mezes, não deixava de dôr d’ilharga para que lhe tornasse as suas vinte moedas, que lhe eram indispensaveis, dizia o matreiro saloio, para pagar uma divida contrahida com um usurario de Lisboa por causa do casamento do seu Manuel, que se víra obrigado a arrumar. E como Barnabé, que tambem era saloio e manhoso, lhe objectasse que só vendendo o casal dos Caniços lh’as poderia pagar de prompto, e que era uma de seiscentos achar comprador que désse o que elle valia, Bartholomeu, acceso em amor fraterno, lhe declarou que o maldicto usurario dera a entender, que, se elle Bartholomeu tivesse umas terras que lhe empenhasse, esperaria pelo dinheiro com quaesquer cinco por cento ao mez; que por isso, vendo-se naquelles apertos e afflicções, faria o sacrificio de lhe tomar o casal pelas vinte moedas e mais o que fosse justo, que iria pedir ao mesmo usurario; porque—accrescentava elle, quasi chorando—vão-se os anneis e fiquem os dedos. Que ficaria arrasado, e a bem dizer a pedir esmola; porque, como elle Barnabé lhe affirmava todas as vezes que lhe ía pedir o seu dinheiro, as excommungadas das terras apenas davam para o fabrico. Emfim, tão despejadas mentiras pregou ao irmão, tanto o atenazou, taes artes teve de lhe converter as sétas em grelhas, que as bichas pegaram, e Barnabé deu o sim, a risco de estourar os ossos á tia Vicencia, sua respeitavel consorte, á minima pegadilha, ou de rebentar de paixão como um satanaz alguma noite na cama, se não desabafasse daquella grande magua com uma boa massada na mulher, consolação que para um verdadeiro saloio é nas afflicções o supra-summum dos prós e precalços matrimoniaes.
A Providencia temperou as cousas deste mundo de modo que se podem symbolisar todas as felicidades delle n’uma ameixa saragoçana. Doçuras, succo, belleza externa, sim-senhor; tudo quanto quizerem: mas, no fim de contas, travo e mais travo ao pé do caroço. É o que explica, pê á pá sancta Justa, a theoria das compensações d’Azaís. Mais um caso, para mostrar as carradas de razão que Azaís tinha na sua grande cenreira a este respeito, é o que succedeu ao moleiro, no dia em que Barnabé acabou de se resolver sobre o casal dos Caniços. Tinha sido justamente no dia da festa pela manhan, que Barnabé fôra com a sua Joanna á missa das almas, e viera pelo moinho almoçar com o irmão, que não lhe mostrou a melhor cara a principio, mas que até mandou fazer uma fritada de meia quarta de linguiça e tres ovos (um botou-se fóra, porque estava gôro) quando soube ao que elle vinha. Bartholomeu não cabia em si de contente: obrigou a sobrinha a levar atados no avental obra de dous arrateis de farinha para fazer umas raivas, pondo lá o assucar e os ovos, e mandando-lhe metade dellas; e por mais que pae e filha se escusassem de acceitar o seu favor, embirrou, e não houve torcê-lo. Estava naquelle dia capaz de lhes dar de presente metade da sua fortuna, e mais era, dizia elle, um pobre de Christo. Logo que se foram, Bartholomeu deitou a correr para casa, fechou-se no seu quarto, abriu, umas após outras, as vinte gavetas de um contador, mecheu e remecheu em todas ellas, tornou a fechar, e fazendo contas de cabeça, começou a passear de um para outro lado do aposento, com as mãos cruzadas nas costas, e entregue ás suas cogitações.
Os adornos ou guarnição do quarto consistiam em um leito de casados de pau-sancto de pés torneados e cabeceira redonda, thalamo nupcial, agora enluctado pela sempre chorada morte da tia Genoveva da Ventosa, mãe de Manuel da Ventosa, e mulher que fôra do honrado Bartholomeu da Ventosa, que, para falar como os poetas, solitaria rolla (ou rollo ou rolho) naquelle ninho silencioso se encouchava triste nas longas noites de inverno, ai, outr’ora tão felizes! O contador ficava defronte, e ao lado um bofete, e sobre o bofete um oratorio forrado de damasco amarello com sanefa encarnada. Sete sanctos povoavam o larario da defuncta moleira: S. Servulo, Sancto Onofre, S. Miguel, S. Sebastião, S. Gregorio, Sancto Antonio, e S. João Baptista; este ultimo no centro e em peanha mais elevada; Sancto Antonio á sua direita, com um cordão de ouro lançado ao pescoço e dando multas voltas ao redor do corpo. Como supplemento, por cima da cabeceira da cama, uma lamina da Senhora da Conceição, e dous registos, um de Sancta Barbara, outro de Sancta Rita; no tardoz da porta uma cruz de S. Lazaro pregada com massa. Uma arca da India, com ferrolho de correr e pregaria de grandes cabeças chatas de duas pollegadas de diametro, e quatro cadeiras de costas e assentos de couro lavrado completavam a mobilia do aposento. No canto do bofete, quasi á borda, estavam cravados um cruzado-novo e um tostão falsos, memorias dolorosas de um mono que pregára certo padeiro de Lisboa ao moleiro, na compra de uns saccos de farinha, historia, que, se eu a contasse, havia de fazer arripiar o pello aos leitores mais do que as novellas de Anna Radcliffe.
“Dez centos de mil réis! Chumba-lhe!”— dizia o velho esfregando as mãos, como um botecudo esfrega dous páus de que quer tirar lume, e passeando com passos curtos e rapidos de um para outro lado.—“É isso! cem peças, sete centos e meio; quatrocentos pintos, dous centos menos oito; fazem nove centos e meio menos oito: duzentas cravellas de doze, meio cento menos dous: oito e dous dez: dez centos menos dez: oitenta de seis fazem duas moedas: duas moedas dez mil réis menos um cruzado: oito meios tostões quatro tostões: quatro tostões com ... justamente, dez centos. Ah sô Barnabé, quer setecentos? Heim? Com vinte moedas que já lá andam a juro, parece-me....! Quer ou não quer?”—“Homem, isso é muito pouco...”—“Pouco?! E doze moedas foro?”—“As terras dão bem para isso: só a Abrunhosa...”—“Pois se dão, homem, paga-me as vinte moedas. Ah, embatucas? Oh, oh, ih, ih, ih!..”
E Bartholomeu ria a bom rir daquelle dialogo que phantasiava travar como irmão. De repente, porém, as feições contrahidas pelo riso se lhe immobilisaram diante de uma idéa fatal. Barnabé podia dar com a lingua nos dentes ácerca do negocio, n’alguma noite em que fosse para a tenda do Agostinho jogar a bisca a vinho, segundo o seu costume, e sair um atravessador a picar-lhe o lanço; o Bento Rabixa, por exemplo, que tinha muito caroço, e que era um dos da tripeça da bisca. Vinham-lhe calafrios com tal pensamento. Uma palavra, uma allusão perderia, talvez, tudo. Era verdadeira agonia a sua. Costumado a implorar o céu nas grandes afflicções, Bartholomeu por uma daquellas subtilezas moraes dos avaros, que sabem conciliar a devoção com o seu vicio hediondo, ajoelhou diante do oratorio, e com lagrymas e fervorosas suplicas começou a pedir a S. João Baptista fizesse com que Barnabé não tugisse nem mugisse a similhante respeito. Nas suas orações passou-lhe, talvez, pela cabeça a idéa de um estupor na lingua de Barnabé. Desconfio: não o affirmo; porque não gósto de cousas dictas no ar. O que é certo é que procurou dar a entender ao sancto que teria duas vélas accesas e uma esmola para a sua festa, se as cousas lhe saissem a geito, exprimindo-se, todavia, por tal arte que não ficasse absolutamente preso pela palavra, e podesse roer a corda depois de se pilhar servido.
Em quanto o moleiro se debatia nestas tempestades de ambição, passava-se no presbyterio a scena que já descrevi entre João Nepomuceno e Gabriel. A principio Bartholomeu, embebido nos seus calculos, temores e rogativas, nem sequer ouvíra os repiques variados e harmonicos, com que o rapaz do moinho rompêra o seu grande e festivo concerto; mas pouco a pouco o motim dos sinos crescêra a ponto, que só os defunctos do cemiterio poderiam ficar indifferentes a tão retumbantes bellezas musicaes. Na aldeia já ninguem se entendia no meio dessa procella de sons, que, trepando pelos outeiros ao redor, e precipitando-se para os valles além, iam levar o ruido da festa e a gloria de S. Pantaleão ás povoações vizinhas. Penetrando pelos ouvidos do moleiro, aquellas vibrações desalmadas fizeram-n’o despertar do extasi de sovinaria devota que o arrebatava. Ergueu-se, chegou-se á janella, alçou a adufa, poz-se a mirar o relogio de sol do campanario, piscando os olhos e fazendo com a mão uma especie de pala para os defender da luz, e depois de se affirmar por um pedaço, deixando cahir de golpe a adufa, correu á arca, murmurando:—“nove horas! Já mais de nove horas! Esta só por trezentos milheiros de diabos! E ainda tenho de me vestir! Com seiscentos diabos! D’aqui a nada estão lá os outros. Ora o diabo!..”
Estas imprecações em razão descendente, que o moleiro tinha sempre na bôca por um mau habito, que todas as prégações e remoques do padre prior não haviam podido fazer perder áquella lingua damnada de Bartholomeu, nasciam de uma circumstancia na verdade séria. A funcção d’igreja devia de começar ás dez horas, e elle era um dos festeiros. O padre prior tantas voltas dera que o obrigára a sê-lo, e a esportular uma moeda para as despezas. Devemos acreditar que nunca o teria alcançado, se não fosse o dote de Bernardina, sobre o que o moleiro tremia que o velho clerigo deixasse escapar alguma palavra. Elle aproveitára habilmente o caso para passar por bom pae e generoso, e ao mesmo tempo para se esquivar ao menor acto de beneficencia o resto da sua vida, affirmando que se empenhára até os olhos para comprar e reparar a azenha do Ignacio Codeço e estabelecer lá o seu rapaz, quando a verdade era que, comprada e reparada a azenha, posta a casa aos noivos, adquiridos seis machos, paga a soldada de tres mezes a dous moços, provída a dispensa, e deixadas algumas moedas para as despezas diarias, ainda um certo numero de louras do padre prior tinham ido cahir, como já disse, no escaninho onde jaziam sem ver sol nem lua aquellas que o moleiro acabava de contar. Obrigado por semelhante consideração, e á força de rogativas do parocho e das picuinhas de outros irmãos da Irmandade do Sanctissimo, que se tinham mettido no negocio, o moleiro achava-se elevado a uma situação que estava longe de ambicionar. Perdida a moeda, que elle havia de chorar toda a sua vida, importava-lhe não perder a consideração e valia na festa, que por tão alto e raivado preço comprára; era o risco que via imminente, ao menos em parte, se não estivesse a ponto de saír da sacristia para a capella-mór no prestito dos festeiros.
O dia começára bem; mas ía-se tornando aziago.
Apesar de velho, curto e barrigudo, o moleiro, não vendo nenhum outro meio de esquivar o contratempo que receiava, apressou-se o mais que pôde em se adornar com o aceio e pontualidade que requeria o acto. Do fundo da arca saíu o arsenal completo para os dias de vêr a Deus. Era respeitavel pela antiguidade! Monumentos de mais felizes epochas, os arreios esplendidos de Bartholomeu constavam de uns calções de gorgorão côr de tabaco, de um colete de veludo verde, e de uma casaca azul de abas largas e gola estreita (isto passava ha bem dezoito annos) antipoda da casaca peralvilha dos casquilhos daquelle tempo. As menudencias do trajo diplomatico do moleiro compunham-se de um chapéu armado, de um pescocinho com bofes, de umas meias de algodão brancas, e d’uns sapatos de entrada abaixo, ensebados de novo, com fivelas de prata, que batiam quasi na vira de um e outro lado. Assim vestido era um principe. Não; que lá isso é verdade; mettia respeito! Apressado, vermelho, suando com a calma, bufava como um touro encaminhando-se para a igreja. Os moços dos seus collegas, os de tres padeiros que havia no logar, e os de cinco lavradores a quem costumava comprar os trigos, passando por elle desbarretavam-se até baixo; a outra saloiada, espécada pelo arraial, fazia menção de cortezia com o barrete: dos mendigos que começavam a apinhar-se para o lado do presbyterio ao cheiro do bodo, uns, que não o conheciam por virem de longe, estendiam-lhe a mão e davam-lhe senhorias, tudo em vão; outros, que eram dos arredores, rosnavam e praguejavam-no. Mas dessas rosnaduras e pragas ria-se elle. Na auréola de gloria que o cercava já, que o ía cercar ainda maís brilhante, Bartholomeu estava tanto acima da maledicencia daquelles madraços, como os homens d’estado de qualquer partido costumam estar acima das ferretoadas, sovinadas e lambadas da imprensa periodica do partido contrario, segundo affirmam os da sua parcialidade: vide jornaes de todas as côres e cambiantes, passim. Como os politicos, o moleiro podia dizer, pondo a mão no coração—a minha consciencia—a minha honra—a opinião publica—os meus serviços—a nação—a posteridade:—e depois tossir e escarrar grosso, e seguir ávante sem se embaraçar com aquelle rosnatorio despeitoso e zangado; porque, como bem disse um poeta de philosophia ancha:
O premio da virtude é a virtude:
O castigo do vicio o proprio vicio.
E foi o que Bartholomeu fez: e com razão. Não eram os respeitos dos moços dos outros moleiros e dos lavradores seus freguezes, e os dos pobres que o avaliavam pelo secio dos trajos, a prova cabal e indestructivel da sua popularidade? Eram. Que caso devia, pois, fazer dos zums-zums de meia duzia de farrapilhas? Nenhum. Eu cá, pelo menos, sou de opinião que fez bem proseguindo no seu caminho, tranquillo com o testemunho de uma voz intima, que o certificava de que era um homem de importancia, e digno por todos os titulos de representar o papel de festeiro a que fôra chamado.
Mas a nobre altivez do moleiro, e a firmeza que mostrára para não deslizar um apice do caracter grave e sobranceiro, proprio da sua situação, tinham de ser postas a mais dura prova. O momento em que chegou ao adro foi aziago. Ahi viu e ouviu cousas que o fizeram saír da gravidade e compostura que até então guardára. O que o negocio deu de si vê-lo-ha o leitor no proseguimento desta historia, que poderá ter mil defeitos, mas que (não é por me gabar) tenho levado com toda a pontualidade na chronologia e na averiguação dos mais miudos factos que possam illustra-la.