Ela foge-me e eu corro atrás de quem me foge. Mas não, isto não há-de ser assim. Foi-se, deixá-la, quer sim, quer não.
Assim se dizia e contradizia a cada instante. Depois mudava de sentido e qualquer coisa o entretinha. Uma das teimas a que mais estava arreigado, era perguntar a todos que se chegavam a ele: — Vossas mer cês querem bem a alguma mulher? Se lhe respondiam que sim, acudia ele muito depressa e muito compadecido: — Peço-lhe que não endoideça por amor dela, não caia na asneira em que eu caí. Se eu me pilhara outra vez com o meu juízo, nem a mais pintada mo havia de fazer perder. Mas, já agora, não tem remédio. Eu perdi-o e não sei onde. Apenas conheço quem mo fez perder. E o mais foi perder o juízo por amor de uma mulher que não tinha nenhum. Ora se há desgraça como esta? Eu agora estou doido, segundo oiço dizer, e ela se está lá divertindo com quem muito bem lhe parece. Olhem: nesta caí eu. Mas nem ela nem mais nenhuma me há-de fazer cair noutra corriola. Mas, a falarmos a verdade, ela sempre era bem linda. Se eu a pudesse ver! Se eu pudesse estar com ela!
Tornava a cair numa melancolia por algum espaço mas depressa se lembrava de outra coisa e muitas vezes de coisas muito alegres que inteiramente o tornavam ao seu ar jocoso. Tinha também outra célebre que era dizer que não estava doido, e o seu fim era prová-lo, para o que dizia:
— Então, em que sou doido? Porque me chamam a mim doido? Há caso como este! Doido era quando todos diziam que eu tinha juízo. É certo que eu agora não durmo, mas é porque não posso, apesar da diligência que faço. E quando eu tinha juízo, que podia dormir, e andava caindo com sono, não dormia porque não queria, só por aproveitar as noites pelas companhias. E então que companhias! Companhias de que eu deveria fugir de dia, quanto mais estar com elas de noite. E, apesar disso, diziam que eu tinha juízo e agora que sou doido. Algum dia gastava quanto dinheiro me vinha à mão em bagatelas e agora nada gasto. Apesar disso, dizem agora que estou doido e que então tinha juízo. Algum dia andava sempre a correr, ora em sege, ora a cavalo, pisando os pobres, sacando o dinheiro aos ricos, quebrando as esquinas, feito um doidivanas de primeira ordem. E, apesar disso, agora sou tolo e então não o era. Algum dia jogava quantos vinténs pilhava, fossem meus, fossem alheios. Hoje nem pilho nada nem jogo. E, apesar de tudo, é que sou doido e então não o era. Todas as extravagâncias que algum dia fazia, eram próprias de um rapaz de muitas esperanças. Hoje, que não faço metade das asneiras que então fazia, hoje é que sou doido. Algum dia andava sempre num pontinho e todos me chamavam asseado, homem da Corte, que conhecia o trato das gentes. Mas era-me preciso muito dinheiro para estes preparos. Hoje, que não estrago nada, que me dura o fato imenso tempo, chamam-me doido. Mas eu nego tal. Não posso saber que sou doido senão porque eles o dizem, porque eu, em mim, não acho coisa em que o seja. Mas como isto há-de ir à vontade dos outros e não à minha, que lhe hei-de eu fazer? Sou doido porque estes senhores o mandam e vejo eu tantos por aí que ainda estão muito piores do que eu, e não os prendem só porque não há um que levante a lebre e diga: Fulano está doido!
Ter paciência é o único refúgio do meu mal.
Desta forma discorria outro bocado e assim levava o seu tempo, ainda que triste tempo! Uma vez ouviu ele dizer a um — Triste tempo leva este doido! Saltou-lhe logo e diz-lhe:
— Nego e provo que o que vossa mercê passa é que é o mais aflito tempo do mundo. E, se não, venha cá, responda-me: Vossa mercê imagina mas não logra. As avessas eu, que possuo quanto imagino. Vossa mercê passa, às vezes, horas e horas pensando no modo como poderá ter sege. Este pensamento nunca chega ao fim, aflige-se por ver os seus cálculos mal fundados e sair-lhe tudo em vão quanto imagina? Mas a mim não me sucede assim. Se uma vez me lembro de querer sege, tenho-a, porque a mim parece-me realmente que possuo quanto imagino. A mim lembrou-me uma vez que estava feito uma coisa muito grande, que governava muitas gentes, que dispunha de muito dinheiro e, com efeito, enchia todas as obrigações do meu cargo, dispunha, mandava, ralhava, dava a uns e tirava a outros e com uma tal satisfação que ainda que ninguém me obedecesse, eu tal não julgava. E como neste mundo tudo é uma quimera, eu me julgava assim feliz. E que mais tem ser feliz doido ou feliz com juízo, se a coisa dura a mesma quantidade? Se a minha felicidade, tendo juízo, durasse mais tempo, então melhor era. Mas tanto uma como a outra acaba em se acabando a cena, quer em parte que seja assim ou que seja assado. E, demais, quero-lhe mostrar que, sendo doido, a minha felicidade é mais real e, se não, diga-me cá: você já teve na sua vida alguma coisa que lhe desse gosto e que esta lhe durasse sem intervalos de pesares nascidos da mesma coisa? Certamente que não. Pois eu, Senhor Papelão, desde que sou doido tem-se-me metido na cabeça que sou muito rico, que tenho grandes negócios, grandes propriedades, que manejo tudo isto sem caixeiros. Apesar desta grande laboração, nunca se me perdeu navio, nunca perdi dívida, tudo me anda às direitas e eu vivo no maior contentamento do mundo, sem jamais vir um desgosto entremeter-se nesta alegria. Veja agora lá quem é mais feliz, se esse que tem isso na realidade, e passa por mil desgostos, sendo o primeiro e o último a deixar cá neste mundo todo esse dinheiro, sem se lembrar que, para ir para o outro, tudo quanto há sobeja? Se eu, que pacificamente logro o mesmo sem ter trabalho em o contar, nem de ajustar contas, nem de enganar companheiros, nem ser enganado, nem sentir desfalque no negócio, nem ter desgosto que me aflija. E, ultimamente, morrer quieto porque não deixo nada. E diz você, muito fresco, que eu passo uma vida muito triste! Tomara você passá-la assim. Mas não se julga doido, sendo talvez tolo, que ainda é pior. O que a mim me faz mal é a lembrança daquela ingrata, daquela... oh, venha você cá, você conhece-a?
Aqui se tornava outra vez a desorientar e a falar em diferentes coisas em que se lhe reconhecia a loucura, porque, tirado desta mania, discorria muitas vezes uma hora, e mais, com bastante galantaria.
Quando estava só, o seu dito favorito era este: — Eu é que tive a culpa! Tive o passarinho na mão, deixei-o fugir. Gastava às vezes nisto um dia inteiro. Mau era que logo pela manhã começasse com ele, porque não acabava senão à noite. Era galantíssimo. Uma ocasião esteve ouvindo uma conversa entre uns amigos em que um deles se queixava de que tinha pilhado um coice de uma besta que por um és-não-és o não tinha mandado para outra vida. Tanto que ele ouviu isto, meteu-se logo de dentro para dar conselhos porque esta era a sua balda, como já disse. E virou para o que tinha levado o coice e disse:
— Vossa mercê é que levou o coice da besta, segundo eu estive ouvindo e eu, que desejo o bem do próximo, quero lhe dar um remédio que tenho para isto. Cumprindo-o vossa mercê à risca, nunca mais há-de levar nenhum, isto é, sendo a besta de quatro pés, porque, para as de dois, é quase impossível havê-lo, pela muita quantidade e porque estão muito domesticadas com a gente. Quando uma pessoa mal se não precata, está com dois no bucho. Com que, se vossa mercê quer o remédio, ele custa simplesmente cinco réis e dura-lhe para toda a vida se tiver cuidado em o não perder porque, nesse caso, tem que gastar outra de cinco.
O homem ficou pasmado de ouvir tão bom arrazoado do doido e, para ver o fim daquela história, e saber qual era o remédio, disse-lhe que sim e que lhe fazia muito favor em o querer livrar, por tão módica quantia, de um mal que, a cada canto, se encontra, ainda que o que ele tinha pilhado tinha sido no meio da rua.
— Pois bem, vá vossa mercê comprar, aí a uma tenda, uma meadinha de cordel de barbante que lhe há-de custar cinco réis e venha aqui num pulo, porque, se eu me enfastio da espera, ponho-me a andar.
Foi o homem buscar o cordel e deu-o ao doido. Ele desembrulhou-o e deu-lhe uma ponta, ficando com a outra, e diz-lhe:
— Vá vossa mercê recuando até se entesar bem este cordel que eu também faço o mesmo.
Tendo cada um deles os dois extremos do cordel na mão, recuaram até mais não poder o que, visto pelo doido, disse para o homem: — Aqui tem vossa mercê o remédio. Pode haver coisa mais insignificante e de menos trabalho? Pois em vossa mercê andando desviado de todas as bestas à distância que marca este cordel nenhuma mais lhe há-de dar coice. Dito isto, largou tudo por mão e botou a correr, deixando ficar o homem como um tolo a olhar para ele.
Dava conselhos aos outros doidos e todo o seu fim era dizer-lhes que não endoidecessem. Em algum doido se queixando de alguma coisa, já ele lhe dava remédio. A um que o perseguia muito uma tosse, lhe disse ele:
— Olha, essa tosse é de frio, é preciso aquecê-la. Se é quente, é preciso esfriá-la. Com que, dize-me tu de que te parece que ela é, que eu ta curo logo.
O outro disse-lhe que lhe parecia ser quente porque sentia o peito como lume.
— Pois bem, abre tu bem a boca que eu te assopro para dentro até que tu a sintas fria. Outro, queixando-se que o perseguiam as frieiras de tal forma que o não deixavam pôr os pés no chão, acudiu ele logo, dizendo-lhe:
— As frieiras são de frio. Em tu as cobrindo de forma que lhes não entre o ar, estão infalivelmente curadas para o que, bota-lhe tu lacre até as cobrires bem e conta-me depois como te achaste. E não te esqueça que o lacre deve estar em chama para que o pingo vá líquido, senão não aproveita o remédio.
Para malignas, dizia ele, que não havia nada como estupores porque tinha conhecido um homem que, estando muito doente de uma maligna e sobrevindo-lhe um estupor melhorou dela e morreu dele. E julgava que era muito melhor morrer por ele que por ela. Perguntando-lhe um sujeito que remédio lhe dava ele para viver muito tempo, respondeu-lhe no mesmo instante: — Fazer tudo a tempo. Outro pediu-lhe que lhe ensinasse como havia de escrever uma carta a uma moça de quem gostava de modo que logo a rendesse, e ele também lhe disse de repente: — Descomponha-a, trate-a mal e verá como cai. Por eu escrever com muitas meiguices a uma que tive, é que ela me deixou e mudou para outro que lhe quebra a sua costela de quando em quando. Mas, ao menos, não é desumano porque não lhe quebra uma senão depois de curada a outra. Um pediu-lhe um dia que lhe ensinasse o modo de saber o que diziam dele, ao que respondeu: — Julgue vossa mercê que todos lhe chamam tolo, como na verdade o é, e tem sabido o que quer. Este nunca mais lhe perguntou nada. Outro disse-lhe que desejava ser invisível só para nas companhias poder estar entre as senhoras que quisesse, ouvindo o que diziam sem ser visto. Ao que ele respondeu, dando uma risada: — Não faria negócio, porque as senhoras não gostam de coisas que não se vejam e, como por natureza são medrosas, haviam de julgá-lo coisa má. Agora se vossa mercê quer ser apontado e fazer figura de Europa no Reino Amatório, não tem mais que meter-se com elas, mas lá de coisas invisíveis, deixe-se.
Encontrou um dia um amigo que lhe disse: — Anda cá, Fulano, não me darás remédio para que todos digam bem de mim, pois que quase todos dizem mal sem eu lho fazer?
— Sim, e não é de muito custo. Toma juízo prudencial e deixa-te do artificial. E quando julgares um homem teu inimigo, não sejas inimigo dele. Numa palavra, vive como teu bisavô e não te lembre como vivia teu avô e nem te importe o que fazia teu pai.
Encontrou numa ocasião um homem de semblante melancólico que, sem levantar os olhos do chão, mostrava pensar em coisa que o afligia. Chegou-se a ele, acordou-o daquele letargo em que o via e perguntou-lhe em que estava considerando. Ao que o homem respondeu: — No que não tenho.
— Pois olhe, lhe tornou ele, há-de gastar menos tempo nessa consideração do que gastam aqueles que sempre estão a pensar no que têm, com medo que lho leve o diabo, porque receiam que o mesmo que lhe fez o carreto para casa, lho torne a levar para fora.
Um a quem ele ouviu queixar que gastava muita tinta em escrever, disse-lhe: — Porque não escreve vossa mercê na areia? Bem o pode fazer, por duas razões: a primeira porque o que vossa mercê escreve, ainda que o desmanche o vento, não se perde nada, antes ganha, para que, ao menos depois de morto, a sua memória não sofra injúria; e a segunda, é porque é asneira escrever não havendo quem leia.
O tal que o quis ouvir disse-lhe que para o que ele escrevia ainda havia muita gente que lesse porque ele escrevia na língua nacional. — Pior, Senhor, pior! Vossa mercê está doido! Pois hoje nada bom se pode escrever nessa língua! Quem se contenta hoje só com uma língua? E, demais, a língua nacional está cediça. Escreva em língua turca, em língua lapónia, em língua de preto porque ainda que vossa mercê não saiba o que escreve e nem eles o entendam, hão-de gabá-lo! Vossa mercê está tonto! Vossa mercê não vê que se faz hoje um vestida custando três mil e duzentos e depois do vestido acabado ainda se gastam dez moedas nos enfeites? Eu vi outro dia uma senhora com umas manguinhas num vestido que por elas se podia recordar aquele antigo ditado: mangas comei aqui, que a vós vos honram e não a mim. E veja vossa mercê se eu não tenho razão. O vestido, que era de cambraia, tinha custado cinco moedas, e as mangas, que eram de renda, lá de uma terra onde não faz muita calma e onde creio que fazem a tal renda de linha, como a de cá, só por ser de lá custaram dezasseis moedas. E é preciso advertir que não cobriam senão uma sesma de braço que, a cobri-to metade que fosse, então eram precisas quatro onças de ouro fino só para mangas.
Com esta mesma senhora sucedeu-lhe um caso galante, porque ela costumava muito divertir-se com ele e fazer-lhe várias perguntas. Nesta ocasião foi uma delas. Perguntou-lhe de repente: — Que te falta? Ao que ele respondeu com a mesma prontidão: — O mesmo que te falta. Se eu quisesse contar as contínuas lembranças deste doido, seria um nunca acabar e faria três volumes só deste objecto. Mas eu tenho tanta cabeça a que acudir que é preciso que passe muita coisa pelo alto e que bem mereciam que não ficassem no tinteiro. Mas vamos acudir ao mais preciso, razão por que vou acabar uma Carapuça que nem bem alinhavada fica, concluindo-a com mais duas lembranças do mesmo. A primeira era ele dizer que no ser doido não achava incómodo nenhum, senão o darem-lhe pouco de comer. A segunda era uma teima em que estava com toda a mulher que via passar, que era dizer-lhe: — A quantos terás tu enganado?
Depois de pouco mais ou menos ter construído bem a cabeça de um doido, andava eu escolhendo nova morada que me contentasse e em que não fosse difícil a passagem. Nada aparecia porque tudo eram doidos ou enfermeiros, que pouca diferença faz. Eu já andava enfastiado do hospital e tinha medo das malignas que me pelava e elas começavam então a picar alguma coisa. Estávamos na força do Verão e eu já não sabia o que havia de fazer para me safar, até que o enfermeiro dos doidos deu ordem para que viesse o barbeiro rapar todos, antes que se minassem mais de bichos. Apenas tal ouvi, não me demorei um instante. Pus-me a andar. E tanto que me vi no chão fui-me pôr ao pé de uma porta por onde o enfermeiro costumava passar, o qual não tardou, nem eu tardei em ir-lhe ao fato. Na cabeça deste enfermeiro é que vai a Carapuça.