Lembra-me aquele de quem falava Gil Brás a quem Deus ajudara tanto que, tratando de pobres ficou rico. Pois o meu enfermeiro não sei se lhe sucedia isto mas, ao menos, sucedia-lhe que tratando com doidos tinha juízo. Ele é que tinha a incumbência de lhes mandar fazer o seu comer e era tão cheio de caridade a este respeito que, com receio de que lhe não deitassem veneno no comer, ele é quem o provava primeiro. Então cuidam vossas mercês que provava qualquer coisa? Não, Senhores, era dose de matar. De cinco arráteis de arroz que lhe dessem para um jantar de doidos, comia ele, muitas vezes, três arráteis e muitas vezes mais, se era de carne. Tinha tanta fé com as dietas que se algum adoecia e não queria beber o caldo ou comer a galinha, não teimava com ele pelo não afligir e porque estava crédulo que a dieta, por si só, era capaz de curar a moléstia. Se algum parente do doido lhe levava um fatinho, não lho dava porque tinha medo que o rompesse. E se era coisa de comer, comia-a ele e dizia que era melhor comer um que tratava de doidos do que um doido que não tratava de ninguém e que, às vezes, nem mesmo de si cuidava porque tudo quanto lhe davam pisava a pés. Se entrava algum doido recomendado e que alguma coisa rendia, levava menos pancadas. Vejam que força tem o dinheiro que até para isto serve! Em tudo que era do seu serviço, servia-se deles como se fossem negros e tinham-lhe um respeito que nem os olhos levantavam diante dele. Tinha muito pouco ordenado mas os emolumentos do ofício rendiam quadruplicado. Todavia, pouco durou a tolina. Entrou um homem cheio de probidade e humanidade a governar a casa e limpou-a, em cuja classe entrou o meu enfermeiro que foi posto na rua sem ter tempo de dizer adeus aos doidos. E levou uma saudade deles que lhe durou toda a vida e esteve em vésperas de enlouquecer o que eu desejava que lhe acontecesse, só para ir com ele a ver a festa que os doidos lhe fariam e vê-lo levar a sua meia dúzia de açoites, como um homem. Mas não tive esse gosto. Saiu para a rua e foi comendo alguns vinténs que tinha trazido. Mas como quem o tira e não o põe, depressa lhe vê o fim, acabou-se o dinheiro e eu, como todos o iam deixando, também lhe queria fazer o mesmo, para o que andava à espreita de cabeça. Ia todos os dias jantar a uma taberna, conhecimento seu muito antigo. O taberneiro era mais talhado para vinagre que para vinho. Mas eu quis também saber-lhe a vida e fui-lhe ao casco o que faz a Carapuça.