Tudo o que é pequeno é galante, à excepção dos piolhos porque comem mais e aborrecem mais mas escapam melhor de serem apanhados. Eu não sou dos mais pequenos mas também não sou dos maiores e tenho-me visto em bastantes perigos, como tenho contado e contarei por diante. Mas é certo que na cabeça desta criança tive bastantes sobressaltos, porque tinha uma avó que sempre lhe andava com as mãos em cima. E enquanto não percebi que a velha não via bem, mamei grandes sustos. Mas tacto tinha ela como a fortuna. Em pondo o dedo, ainda que fosse em cima de uma fava, percebia logo que tinha debaixo alguma coisa. O rapaz, por si, nunca se coçava e a maior desesperação que tinha era quando o queriam catar. Primeiro que o resolvessem a isso, chorava as suas três horas, de forma que a mãe e o pai, que eram muito seus amigos, consentiam em quanto ele queria. O rapaz andava doente de mimos que lhe faziam. E, certamente, nem mais mimoso nem mais malcriado havia outro. Podia ele ter o desvanecimento de que nenhum rapaz do seu tempo lhe chegava aos calcanhares. Era uma das crianças mais engraçadas que eu tenho conhecido porque não abria a boca que todos da casa se não rissem. Eu conto a vida que ele passava, para que vejam e julguem que tal eu a levava.

Tinha ele sete anos e meio. Dormia na cama com a mãe e, por gosto, se podia dormir com o rapaz de Verão, porque no discurso da noite mijava as suas três ou quatro vezes. E por mais que o pai ralhasse com ele, não se emendava e a mãe e a avó não lhe queriam dar porque ele estava muito magrinho e tinham medo que, se o amofinassem, morresse tísico. Ora isto, de Inverno, dava bastante incómodo, mas como era o menino que o fazia, paciência! Que remédio se lhe havia de dar? Era seu filho, tinham obrigação de o aturar. A avó, em o vendo chorar, todo o seu medo era que quebrasse. E só por que ele se calasse, andava muitas vezes com ele às cabritas e o pequeno metia-lhe um alfinete por um ombro para que ela andasse mais depressa. Mas isto não é coisa que se estranhe, por isso o conto, que avó é mãe duas vezes. E quando ela não lhe tivesse amor, e não lhe fizesse a vontade, quem lha havia de fazer? O pequeno era bonito, merecia tudo. E a tentação que ele tinha com a loiça inteira? Enquanto a não via quebrada, não descansava. E tudo fazia com tanta graça que sempre davam vontade de rir as suas travessuras. A respeito de guloso, isso era um nunca acabar. Mas a mãe respondia a isso, quando o pai ralhava com ela: — Deixá-lo, deixá-lo fartar! Sabe Deus o tempo a que ele chegará! Enquanto eu for viva e puder deixá-lo viver à sua vontade, hei-de satisfazê-lo. Tempo virá em que pague tudo e passe bem amargurada a vida.

O pequeno, com estes amens, continuava a missa e cada vez se ia fazendo mais endiabrado e a avó cada vez o achava mais esperto. Quanto a mim, eu passava bem, porque além de o rapaz se não deixar catar, não era senhor de pôr a mão na cabeça que não lhe acudissem logo todos: — Tira a mão da cabeça, malcriado! Como se a cabeça de uma pessoa não fosse traste que pertencesse às mãos. O certo é que tudo anda conforme o uso. Os Leitores agora hão-de perdoar-me, que eu quero fazer aqui a minha reflexão na forma do meu costume.

Eu não sei que haja diferença de pôr a mão na cabeça ou a cabeça na mão. Mas, apesar disso, vejo e oiço que quando uma pessoa vai com a mão à cabeça, chamam-lhe porco e malcriado. E se um homem descansa a cabeça na mão, não lhe dizem nada. Desenganemo-nos, Senhores, que o tempo e as circunstâncias é quem faz tudo. Sabe Deus se ainda virá tempo que se coma um piolho, assim como hoje se come uma perdiz. O caso está que haja um Médico que diga que é substancial e saudável. Ou uma personagem daquelas que apenas solta uma asneira, todo o mundo se ri louvando a sua discrição, que diga também que gosta deles e lhes acha sabor. Numa palavra: os séculos mudam tudo. Eu lembro-me muito bem do tempo em que o chá só servia para dores e hoje conheço pessoas que usam dele como ceia. E, na verdade, é uma dor vê-los cear chá. As laranjas da China foram veneno e hoje são cordiais. Um pássaro numa gaiola, no meio de uma casa, é bonito. Uma aranha com uma grande teia num canto da mesma, é feio. Sabem porquê? Porque desde que principiamos a ter uso da razão nos ensinam a ter medo das aranhas e a gostar dos pássaros. E eu confesso a minha culpa. Tenho tentação com eles.

Vamos agora analisar a coisa. A aranha tem mais que admirar do que o pássaro e mesmo é mais útil. E em chegando o tempo que elas se usem, já nos hão-de parecer feios os pássaros.

Um pássaro, para se criar, é preciso comprar-lhe gaiola e alpista e limpá-lo todos os dias. E apesar de tanto cuidado, em pilhando a gaiola aberta safa-se. Porque ele bem conhece que nasceu para voar à sua vontade, de ramo em ramo.

Os homens, só pelo gosto de oprimir, privam-se até mesmo do que gostam. E eu o provo. Se tu, dono do pássaro, gostas de ouvir cantar pássaros, não andam eles à roda de ti, cantando? Quantas vezes te fazem eles os ninhos mesmo debaixo das janelas e te cantam logo de madrugada, sem tu fazeres despesa alguma com eles? Deixa-os na gaiola do mundo que é a tua mesma! Dize-me cá! Se te meterem na gaiola do limoeiro, cantarás tu tão bem como se estivesses na gaiola do mundo? Pois então deixa os pobres pássaros e deixa também as pobres aranhas que nenhum mal te fazem. Elas sustentam-se com a sua indústria, fazem a sua casa pelo seu trabalho, ensinam as mulheres a ocupar o tempo nas suas teias. Se te passam por cima do corpo, deixam-te uma vertueja que agita e livra de dores aquele sítio. Uma aranha é o mesmo que uma escova de escovar o corpo, é o mesmo que...

É a minha balda! Entrei a declamar, esqueceu-me a Carapuça de que tratava e meti-me com mil arengas de que mesmo eu não saberei sair, se não for de repente, sem dar a razão nem por que entrei nem por que saí. Vamos ao fio e ao começo que não há outro remédio. E ainda haverá pedaço de asno que diga que isto é tradução? Isto, pelos destemperos, bem se deixa ver que é original. Mas ele há tais que tanto entendem os originais como as traduções, assim como há tolos originais e traduzidos. Hei-de falar destes tais em alguns dos meus folhetos. Mas agora não quero perder tempo com eles. Estes amigos tratam-se como se tratam os monos a quem se dá uma pitada de tabaco para eles fazerem as macaquices. Vamos à nossa criança e deixemos estas.

Enfim, eu era senhor da cabeça da tal criança muito à minha vontade, porque a ele não o deixavam coçar e não se queixava que tinha bichos só pelo não catarem. Eu andava tão gordo que parecia um toucinheiro. Já me não mexia de um lugar. Mas para que nada vá à vontade da gente, entrou o pequeno a ter uma febrezinha. Uns diziam que era sarampo e outros bexigas. No fim de tudo, era uma biliosa. Ver agora o cuidado com que o pai, mãe e avó mataram o pequeno à força de remédios e de cuidados! Quando vinha o Médico, juntavam-se todos para ouvir o que ele dizia e o que deviam fazer ao doente. E quando chegava a ocasião de lhe darem o remédio, era uma confusão tal que se não entendiam. Porque a mãe dizia (se, por exemplo, eram cataplasmas) que o Médico as tinha mandado botar no estômago. A avó teimava que não, que era nos olhos. O pai dizia que se enganavam, que havia de ser nos joelhos. E, por fim de contas, nunca o remédio ia no seu lugar.

Se o pequeno dormia, acordavam-no porque estava em sonolência. Se estava acordado, afligiam-se porque não sossegava. Se estava quente, estava ardendo com febre. Se frio, estava moribundo. Não havia meio termo! De forma que era obrigação infalível o rapaz morrer, ainda que não fosse da moléstia. Por acabar com ele: morreu o rapaz. E a avó, que era uma mulher de setenta anos, que nunca lhe deixou um minuto a cabeceira, nem um instante de tomar-lhe o pulso, foi a cabeça que eu escolhi para a seguinte Carapuça.