CAPITULO XIV
O CENTENARIO


IÁ fazer duzentos annos que o povo de Kiato começara a sua regeneração. Essa data, a maior para uma nação, maior mesmo do que a do seu descobrimento, pòr isso que a da sua independencia, como seria festejada pelos cidadãos do Reino?

King Paterson disse a Robert que lhe era impossivel sahir de Kiato sem assistir ás festas do centenario. Não sabia de que maneira um povo tão original commemoraria a maior data da patria. Não podia imaginar quaes seriam as demonstrações de contentamento d’aquelles cujo sentir era tão differente do dos outros povos da terra.

Havia assistido a coroação de reis, em que as festas deslumbravam pelo esplendor. Formaram milhares de soldados para fazer continencia ao soberano, que subia ao throno; cantaram-se te-deums em todas as cathedraes; salvaram as fortalezas e a esquadra; tocaram todas as bandas de musica da cidade, no momento solemne em que se fazia a coroação. O mundo official trajava uniforme de gala. O povo enchia as ruas e praças para assistir á passagem do cortejo, ao desfilar das tropas, para ouvir musica. Era-lhe indifferente a ascenção de um rei ao throno. Seria sempre o eterno tributario, o antigo servo da gleba.

Paterson relembrava em soliloquio o jubileu da rainha Victoria, celebrado em Londres, em que se gastaram milhões esterlinos.

Que a rainha havia feito para tantos louvores? Cumprido o seu dever, em um longo periodo de cincoenta annos. Aquelles milhões, gastos em festas sumptuosas e attrahentes, activaram a germinação da semente do socialismo.

A rainha passou em seu trem de gala e o povo descobriu-se, aclamou-a com delirio — manifestação falsa como falso é o criterio da multidão. A mesma gente que gritava — «God save the queen» — mudaria em um instante de pensar e gritaria — «Ao cadafalso a rainha». — Sempre foi e será assim o julgamento dos homens.

Contou Robert os preparativos da grande festa, que seria um acontecimento visto pela primeira vez em todo o mundo. Commemoração nacional, na qual tomaria parte o Reino inteiro, seria organisada por uma commissão de nove sabios, executadas as obras por uma turma de cem engenheiros.

Annunciada que foi a subscripção nacional para a commemoração do centenario, começaram a chegar esportulas de toda a parte. A Nação podia fazer as despezas, o rei podia fazel-as, mas não exprimiriam o pensar de todos, a manifestação não seria popular. As quantias enviadas á commissão de sabios montaram, em poucos dias, a milhares de contos de réis.

— A commissão de engenheiros trabalha ha cinco annos, com milhares de operarios, nas construcções que se fazem nos suburbios da cidade. E’ uma Babel. Imagine você uma grande villa toda de tendas leves, para agasalhar cada uma cinco ou seis pessoas, e terá visto a edificação. São feitas de papelão comprimido, especialidade muito superior á que se usa nos Estados Unidos. Nós admiramos lá aquellas construcções pela resistencia. Aqui têm dobrado valor. Basta dizer que a maxima espessura do papelão é de dois millimetros.

As informações de Robert despertaram em Paterson o desejo de ver os commodos que se estavam preparando para hospedar metade da população do Reino. No dia seguinte, dirigiu-se ao lugar indicado, fóra de portas.

Paterson pensou ir a pé, porque ignorava que o primeiro serviço foi a construção de uma linha ferrea para o transporte de materiaes e, depois, dos hospedes nos dias da festa.

Em cada trem, um vagão para passageiros. Tomou o primeiro trem. Minutos depois estava na cidade em construcção. Muito antes de chegar, já lhe atroava os ouvidos um ruido surdo, cavo, que não era somente o do rolar do trem; era de um timbre mais alto, e ao mesmo tempo abafado como o de um trovão que muito longe ribombasse no espaço.

Apeou-se no centro das obras e teve immediatamente a noção precisa da monumental empreza. Em uma area de centenas de kilometros, espalhava-se um formigueiro humano. No ar vibravam sons de todas as alturas e timbres, desde o deslisar suave do pincel nas fachadas das tendas, até o grito estridente das limas nos dentes do serrote. Naquella amalgama de ruidos, não se percebia vóz humana. Os obreiros pareciam mudos. As ordens eram transmittidas pela sineta ou pelo apito. O engenheiro trabalhava ao lado do operario. Não se conhecia, pelo traje, o profissional. A roupa era do mesmo tecido para todos, grandes e pequenos; só variava na côr. E isso para todas as classes, desde a capital até a ultima aldeia do Reino.

Faltava menos de um anno para ser commemorada a maior data da patria e muitas mil tendas já estavam promptas. Paterson foi visitar algumas concluidas; ver todas era impossivel. Tinham uma pequena sala, alcova, cosinha a electricidade, latrina sanitaria e banheiro. Sobre o peitoril da janela, lugares que seriam occupados por jarros de flores. O kiatense não sabia viver sem flores. O mais pobre tinha sua roseira.

Os dias iam-se passando e a imprensa continuava muda sobre o programma da festa, o que intrigava Paterson.

Dizem que o povo inglez é excentrico, porém, comparado com o de Kiato, é em extremo communicativo.

No jubileu da rainha Victoria, relembrava, o «Times» publicava tres mezes antes o programma das festas e até o «menú» dos banquetes. Todos os dias inseria uma nota sobre os festejos. Não podia imaginar como aquella gente commemoraria o maior dia da patria.

Nos paizes que tinha visitado, a America do Sul, por exemplo, os festejos, com raras variantes, constavam de comes e bebes, rethorica, officios divinos, musicas, foguetes e luminarias. Em Kiato — reflectiu — não haveria banquetes. Um povo que comia o sufficiente para não morer de fome; sobrio até mais não poder, não mostraria a sua satisfação, a sua alegria, empanturrando-se como a besta num capinzal. Si fosse em outra qualquer terra, aquella data que povo algum já tivera a ventura de commemorar, seria motivo para grandes comesainas e colossaes bebedeiras. A humanidade é a mesma em todas as latitudes: sem alcool não ha contentamento. Não se comprehende banquete sem o vinho de Champagne nem este sem o brinde da pragmatica, como preceitúa o protocollo da civilisação. Seria muito insulso, selvagem mesmo, sentarem-se á mesa algumas duzias de convivas para festejar um facto glorioso de sua patria, e levarem todo o tempo com os maxilares em movimento, triturando iguarias, engulindo-as até ficarem como ruminantes no periodo da segunda digestão.

O banquete da civilisação é uma pantomima, mas não ha somente a mastigação prosaica da besta; ha alguma cousa espiritual, embora burlesca. Começa o ridiculo pelo «menú», palavra exotica, importada da França, com umas tantas cousas que vão introduzindo e afrancesando as Americas.

Paterson philosophava:

— A França diz a meio mundo como deve vestir e o que deve ler. Dita-lhe o «menú», o protocollo das festas. O baptismo dos pratos é cousa divertida. Si é em terras em que a lingua que se fala é a portugueza, é uma algaravia insuportavel. Vêm «le petit pois, le foie gras, le dindon roti a Silva Gomes, la tainha escabeché, le bijupirá á bresilienne, goiabé»,

O «menú» e a sua escripta agradam aos futeis, que vão empanturrar-se naquelle repasto, fazer o chylo de giboia farta ouvindo os brindes da pragmatica, a rethorica encommendada. Se o banquete é politico, então, reveste-se de mais solemnidade, de mais etiqueta. E’ á noite, pela razão de todos os gatos serem pardos. Seria muito despudor afrontar o dia, quando se vai glorificar um nullo. Ao espoucar do champagne, phrase typica, ergue-se um dos convivas e faz a apologia do homenageado, ordinariamente um imbecil sem valor, que a politicagem enthronisou. Ouve este os elogios atirados á queima roupa, em plena veronica e levantando-se, muito commovido, agradece aquella prova de sincera estima e confiança de seus amigos, aos quaes hypotheca sua eterna gratidão — diz no dia seguinte a imprensa...

Passavam-se os dias e a imprensa não publicava o programma das festas do centenario. Paterson não se conformava com semelhante silencio. O povo de Kiato não tinha nervos, e si os tinha eram de tempera differente dos da outra gente da terra. Em qualquer outra parte, os jornaes se teriam occupado immensas vezes dos festejos, fazendo do reclamo uma fonte de receita. A cidade em construcção estava a acabar e nada mais havia de preparativos.

Uma manhã, King Paterson, já sem esperanças de novas, notou do lado oriental da cidade, engenheiros e operarios da ultima construcção. Nivelavam e limpavam uma planicie baldia, na extensão de cinco a seis kilometros.

Quiz informar-se do que se ia fazer ali. Reflectindo, viu que a resposta não satisfaria á sua curiosidade. Os operarios talvez ignorassem. Havia de adivinhar a obra a executar.

Todos os dias lá ia, logo pela manhã. Um formigar de gente empregada em diversos mistéres.

Tres dias depois da primeira visita, Paterson comprehendeu o que se ia fazer. Um renque de columnas de madeiras alinhava-se nas bordas da extensa rua, dando a entender que se levantaria ali um extensissimo salão.

Não se illudiu. A’ medida que o trabalho avançava, individualisava-se o genero de architectura.

O material era o papelão comprimido. Encimando as columnatas, capiteis em um estylo novo, mais elegante do que o dorico, jonico, corynthio e outros.

Faltava menos de um mez para a commemoração do centenario e não se sabiam como seriam as festas. Uma noite Paterson disse a Robert que a originalidade d’aquelle povo tocava ao absurdo.

Robert protestou:

— Nós, os outros habitantes do globo, não temos competencia nem criterio para julgar gente tão perfeita. Nos outros paizes, por exemplo, a emancipação da mulher dá uma perfeita idéa do progresso, da liberdade, da grandeza, da cultura espiritual do povo. Aqui, quem fosse julgar a mulher pelos cargos que occupa, pelos direitos politicos que exerce, tinha de consideral-a unica e simplesmente um animal que se reproduz. Puro engano. A mulher de Kiato está no seu verdadeiro papel, preenche perfeitamente os fins para que foi creada.

A mulher no lar, cuidando da educação dos filhos, da formação do caracter d’elles nos moldes da sã moral, da sua educação physica, presta mais serviços á patria, ao genero humano do que no parlamento ditando leis. O exercicio de profissões liberaes está em completo desacordo com o seu organismo. Ha periodos na vida em que todo exercicio lhe é interdicto. E si ella sacrifica os deveres de mãi aos deveres de sua profissão, a humanidade será fatalmente prejudicada.

Robert era hoje mais kiatense do que inglez.

Paterson, depois de ouvil-o, oppoz-lhe algumas contraditas. A mulher, disse, ficou estacionaria em Kiato. A sua acção social era ali completamente nulla. Dotada dos mesmos attributos intellectuaes que o homem, com mais resistencia ao soffrimento, por que a privaram aqui de concorrer para a obra do progresso, em que se empenha toda a humanidade?

Robert comprehendia o valor das objecções de Paterson. Eram theorias das sociedades que se afogam na decadencia, conscientes de sua degradação, impotentes para um acto de energia procurando salvamento.

A kiatense vivia recolhida ao lar, entregue aos trabalhos domesticos, formando cidadãos para a patria, cultivando nelles os bons sentimentos, a sã moral; não era somente um animal que se reproduzia com prodigalidade, como a chamavam os que pregavam a emancipação da mulher, até o amor livre, nos outros paizes corrompidos pelo alcool e pela syphilis. Os que accusavam a fecundidade da mulher de Kiato, eram os mesmos que, pela fraude, por manobras criminosas, impediam o crescimento do genero humano. E quando falhavam os meios de impedir a fecundação vinha o crime — o infanticidio.

No tempo da decadencia, dizia Robert, havia no Reino todas as miserias dos paizes civilisados do mundo. A mulher era emancipada para todos os effeitos. Meretriz ou adultera, era livre. Hoje, porém, verdadeira mulher emancipada é a de Kiato. Chegou a libertar-se do jugo da carne pela purificação da propria carne.

O que se vê nos paizes, em que a mulher está de todo emancipada, é a glorificação do vicio, é a decadencia da especie humana. A perfeição, porém, está na fraternidade humana. A virtude assiste onde os homens se amam. A virtude não circula em meios que o vicio corrompeu.

Em Kiato, a noção que se tem da vida é perfeita. A mulher exerce o magisterio emquanto solteira. Casada que seja, isso lhe é interdicto. Como harmonisar os devees de mãi de família com os de professora? Perdia a humanidade ou perdia a instrucção publica. Defeso ensinar ás casadas, tudo estava harmonisado.

Que é a vida senão a eterna lucta do homem pelo seu bem estar? Desde as primeiras agremiações, o homem lucta pelo progresso do machado de pedra, que foi o inicio da industria humana. Si o ideal da vida é a conquista do bem estar, a saude do corpo e do espirito, o kiatense o realisou. Elle conquistou o mais elevado lugar nas artes, nas industrias, nas sciencias, nas letras. Aperfeiçoou o que era conhecido e descobriu o que era ignorado.

A electricidade servia em Kiato para tudo. Conheciam-lhe os segredos, como povo algum da terra. O raio X não era descoberta local, mas o seu aperfeiçoamento foi uma de suas maiores conquistas.

Com a optica, haviam realisado milagres. A microscopia foi até os limites do possivel. Levaram as investigações ao mundo dos infinitamente pequenos, até o derradeiro elo, que une as duas cadeias da vida. Não era o augmento estupendo do diametro do corpo, era a illuminação deste. Via-se a «monera», aquelle argueiro, uma celula somente, do tamanho de uma pulga, fazendo evoluções.

Com o telescopio, chegaram a escalar o infinito, a aproximar-se dos outros mundos, mais do que todos os astronomos do globo. Tão perto chegaram, que lhes parecia ouvir a musica harmoniosa das espheras. Da lua, nosso mais proximo visinho, chegaram quasi á fala... Viram-lhe as montanhas nuas, mediram a abertura das crateras de extinctos vulcões, quasi ouviram a melopéa das vagas de seus mares, viram o relevo da crosta do planeta, despido por completo de vegetação.

A geologia dos outros mundos, perdidos na profundez do espaço, muitos dos quaes a tal distancia que não ha algarismo, como bem disse Monsabré, que a represente, o sabio kiatense a conhece. Para medir estas distancias incommensuraveis, quando se exgotaram os numeros da arithmetica, a sciencia tomou por unidade a luz, que caminha oitenta milhões de leguas por segundo. A luz que vem de astros tão distantes traz a nós a constituição mineralogica do astro de que emanou. A’s vezes, a luz que nos chega, diz o abbade, vem de mundos que são desapparecidos. E que distancia nos separa d’elles? Uma distancia que a razão humana não concebe! Pode por ventura o homem, com a razão, com a intelligencia e os sentidos que tem, comprehender o infinito, a eternidade?

Não, porque é um mysterio.

A espetrocopia está em Kiato tão adeantada, que determina não só os corpos simples como tambem os compostos. São delicados tons das cores fundamentaes apresentadas pelo espectro, que chegaram a ser conhecidos depois de longa e paciente observação.

Tudo que acabo de lhe dizer — continuava Robert — é para provar que o kiatense não estacionou quando se lhe purificou a carne; seu espirito alou-se a regiões, que jamais attingirão os outros povos da terra, emquanto não se purificarem tambem. Paterson, está você ainda com o espirito imbuido de idéas retrogradas. A felicidade é, para os povos em decadencia, escravos do alcool, da syphilis e do tabaco, cousa toda relativa. O homem aqui não tem que se comparar, tem que se considerar.

Pergunte ao cidadão de Kiato si é feliz; responderá que sim. Em todos os outros paizes da terra, a resposta seria condicional, a da lenda do homem sem camisa.

Passadas que foram as primeiras impressões, você, King Paterson, devia ter sentido as revoltas que tambem experimentei. Fiquei aqui, como já lhe disse, por um accidente. Eu era commerciante e, como tal, tinha uma cultura mediocre. Na impossibilidade de regressar de prompto a Londres, comecei, para matar o tempo, a frequentar a bibliotheca. A leitura me foi interessando, abrindo horisontes, que meu espirito desconhecia, illuminando-me emfim. Chegou um periodo de verdadeira ancia de aprender. Li por espaço de dez annos e, então, pude comprehender a felicidade deste grande povo. Eu me havia privado de habitos inveterados como o uso do alcool e do tabaco. Nos primeiros tempos, as saudades dos meus algozes foram taes que me fizeram soffrer penas iguaes á separação de entes que me fossem muito caros.

Eu era novo, em plena virilidade, e a continencia forçada da carne fazia explosões que me levavam ao desespero. Eram sempre sonhos eroticos que determinavam essas crises, a revolta da carne palpitante de desejos contra a castidade que não era a virtude monachal imposta, mas devida á falta absoluta de mulheres livres. Soffri muitos annos mas adaptei-me ao meio, que me purificou das miserias physicas e moraes.


O pavilhão que estavam construindo achava-se quasi prompto. Paterson notou que davam a ultima demão á obra. O salão media cerca de seis kilometros, com dois andares de archibancadas. Observou admirado uma rede de fios metalicos que se tecia do começo ao fim do pavilhão. No principio da galeria erguia-se um estrado de dois metros de altura a que se tinha accesso por escadas nas faces lateraes. Para que seria aquelle lugar erguido do solo, aquelle palanque? Para ser occupado por pessoas gradas, os nove sabios? Não, ali não havia hierarchias, todos eram eguaes. Seria para o rei e a familia? Não era possivel; si o fosse, outra devia ser a ornamentação, dizia Paterson comsigo mesmo.

Faltavam oito dias pata a commemoração do centenario, quando a imprensa o amnunciou assim:

«A festa da comemoração do centenario, a emancipação physica e moral de Kiato, constará de uma sessão civica, na qual o rei lerá uma mensagem, a historia fiel do Reino, desde o tempo da decadencia até hoje. A sessão começará todos os dias a uma hora da tarde e durará o tempo necessario á leitura do documento historico.

A festa terminará por uma romaria civica, uma visita aos maiores vultos da humanidade, perpetuados em estatua nas praças da cidade».

Paterson não podia comprehender como a palavra do rei chegaria ao fim das archibancadas, em uma distancia de seis kilometros. Seria testemunha de mais um milagre d’aquella gente.

Tres dias antes da festa, começára o serviço de transporte do pessoal do interior para a capital. O movimento de trens era constante. Entravam uns e sahiam outros. Kiato era cortado de estradas de ferro em todos os sentidos, e todas movidas a electricidade.

Aquella gente, que trazia sempre o riso nos labios, parecia ainda mais contente. A população da cidade, podese dizer, estava nas estações das vias ferreas a receber os parentes e os amigos que chegavam. Cada habitação da cidade hospedaria o maior numero de pessoas que lhe fosse possivel. O excesso iria para a «cidade-hospedaria», onde não faltariam aos recem-vindos, commodos e conforto.

Pela madrugada do dia da festa, ainda chegaram trens.

O dia da commemoração do centenario amanheceu como outro qualquer dia. Nem uma demonstração de regosijo! Nem repiques de sino, nem alvoradas, nem foguetes. As fabricas abriram-se, os operarios foram para o trabalho, a vida continuou como nos outros dias.

Paterson exasperou-se e dizia a Robert:

— Dizem que o inglez é frio; mas este povo tem a frieza do cadaver. Como é o sentir desta gente?

— Nós não podemos julgal-a; deante d’ella, somos animaes inferiores. O seu contentamento é todo espiritual. Os seus sentidos estão aperfeiçoados. Nella nada mais existe do aborigene. Os repiques de sino, a musica de pancadaria, os foguetes, enthusiasmam a plebe, a burguesia mesmo, mas aqui não existem degradados. Tinha que ver este povo á frente de uma banda de musica, a fazer piruetas! Isso é para os paizes decadentes...

Paterson sahiu a ver a cidade: vivia a sua vida normal. Os bondes trafegavam, as fabricas trabalhavam, nas ruas o movimento de todos os dias. Foi ao pavilhão, queria vel-o antes da sessão. Estava prompto o salão de seis kilometros. Não o ornavam bandeiras nem festões. Nas columnas, enredavam-se virentes trepadeiras. De espaço a espaço, nas archibancadas, jarros de fina porcelana de Lizerna, com roseiras e tulipas, lyrios e jacynthos. Ao lado do estrado em que, provavelmente, se sentaria o rei, um apparelho, differente, mas parecido com gramophone, o qual, pensou, seria para reforçar a vóz do rei e transmittil-a até a derradeira bancada. Conhecia o microphono de Hughes; tinha lido alguma cousa sobre o megraphono, mas, ao seu ver, o som embora reforçado não chegaria a tão grande distancia. De semelhante povo tudo era de acreditar.

Não aperfeiçoaram o raio X, a ponto de ver o organismo humano funccionando sob nossos olhos, como o machinismo de um relogio?

Não estaria longe a verdade.

Paterson voltou ao hotel, almoçou e, pouco depois de meio-dia, dirigiu-se ao pavilhão.

As ruas formigavam de gente, que caminhava na melhor ordem. Paterson esperava que a multidão se azafamasse, se acotovelasse, procurando occupar no pavilhão os lugares junto ao rei. Enganou-se. Iam entrando a passo tardo, em silencio, enchendo a archibancada. Cheia uma fila, enchiam outra e assim até a derradeira.

Paterson foi occupar um dos ultimos lugares, para poder avaliar o valor do apparelho que lhe levaria a mensagem.

Precisamente a uma hora da tarde, entrou o rei acompanhado somente dos seus dois filhos varões. Trajava, como elles, roupas leves, eguaes ás de seus concidadãos. E a familia do rei, a mulher e as filhas?

A ausencia completa da mulher na festa deu-lhe a comprehender a falta do elemento feminino real na sessão.

Logo que entrou descobriu-se, como tambem os filhos, e fizeram juntos uma profunda venia á multidão que enchia as archibancadas.

De repente, aquelles milhares de homens se perfilaram, descobriram-se, e todas aquellas cabeças se inclinaram ao mesmo tempo, como si fossem de um só homem, correspondendo á saudação real. O silencio era tumular. A mudança de posição de muitas mil pessoas apenas produziu um deslocamento no ambiente, um cicio brando. Outro som não se percebeu. Ali estavam milhares de macrobios que se ergueram, lepidos como os moços; não se ouviu o ranger das articulações, ainda bem lubrificadas, não enferrujadas pela velhice.

Aquellas cabeças pretas e louras faziam um todo, salpicado de raros pontos brancos, as cans dos centenarios. Não se via uma cabeça calva, nem tão pouco velhice prematura. No kiatense os primeiros cabellos brancos apontavam aos oitenta annos.

Começou a sessão.

O rei, figura mascula, viril como todo o homem de Kiato, perfilado, lançou um golpe de vista para o auditorio e começou a leitura da mensagem, em vóz cheia, forte e de um timbre sonoro.

Suas palavras reforçadas pelo apparelho, eram levadas até o fim do pavilhão, onde estava Paterson, absorto inteiramente, não só pela maravilhosa invenção, como pelas palavras criteriosas e sabias.

A mensagem era uma photographia nitida do viver do povo desde as primeiras edades. Em estylo claro, conciso, sem uma palavra ambigua, eram narrados todos os acontecimentos, desde a fundação do Reino. Era uma noticia completa e perfeita das industrias, das artes, do commercio, das lettras, da sciencia e dos factos politicos.

Narrava, não commentava.

Paterson supportou de pé a primeira hora, a segunda. No fim, a sua gota intimou-o a mudar de posição. Do joanete do pé direito, dores fulgurantes irradiavam-se pela perna acima, indo ao coração. Resistiu.

Ainda uma hora devia estar de pé, e já as pernas lhe tremiam, zumbiam-lhe os ouvidos, as palavras do Rei se afastavam, a vista tinha eclipses, que se amiudavam; a vertigem estava proxima. Teimou em ficar de pé. A vista não voltou, o rosto cobriu-se do suor frio da morte, foi arreando o corpo, até sentar-se.

Os visinhos olhavam-no e viram que era extrangeito, um degenerado, devastado pelo alcool e pela syphilis, que nem de pé podia estar por algumas horas, sem que cahisse como morto.

Paterson, passado o atordoamento, não se atreveu a levantar-se.

Concluiu-se a sessão ás cinco horas da tarde. A multidão sahiu como entrára, em ordem, em silencio. Não houve um encontrão, nem se ouviu um ruido forte. Apenas o rumor dos passos, que se fundia com o som suave da deslocação do ar.

A’ noite, conversando com Robert, contou-lhe Paterson o seu fracasso. As palavras do rei muito o haviam agradado; não perdeu uma só, até ficar atordoado. Pasmou ante o poder do apparelho, que reforçava a vóz á altura de ser ouvida até no fim do salão. Extranhou a falta da mulher em tão importante cerimonia.

Justificou-a Robert, dizendo que no lar era o seu lugar, que os deveres domesticos a prendiam á casa. Quando os maridos e hospedes voltassem da sessão, não seria melhor acharem a mesa posta, prompta a refeição? Assistiriam melhor á sessão lendo a mensagem, do que ouvindo-a. Nos paízes em decadencia a mulher masculinisa-se e assiste a todas as festas. Nas sessões scientificas ou literarias comparece, não para aprender, mas para mostrar a «toilete», as joias. Aqui, a mulher não usa joias, nem tem as orelhas furadas. Não tem «toilete» a mostrar, nem olhares a trocar. A mulher raramente entende os discursos: ou não presta attenção ou não entram nos seus ouvidos as palavras proferidas.

Da mensagem, a parte qne mais agradou a Paterson foi a que se referia a Pantaleão I. Niel, seu neto, fez-lhe a psycologia com mão segura, expondo em toda a hediondez o facto criminoso, narrando-o, porém sem commentarios. Os dias que se seguiram ao crime, com as noites de pesadelos pavorosos, o acordar do criminoso, os primeiros instantes conscientes, eram descriptos com tão vivas imagens, que se tinha a idéa de assistir á cruciante angustia do desgraçado rei. Relatou as lutas dos primeiros tempos, para impor novos moldes á vida d’aquelle povo completamente transviado pelo alcool.

Occupou-se depois de Pantaleão II, seu pai, de como reinou e dos serviços que prestou á patria. Governo sem agitações, deu combate a syphilis e, todo entregue á saude publica, fez prosperar o reino.

Ao occupar-se de seu reinado, disse apenas ter continuado a obra de seu pai e de seu avô. Achando o caminho desbravado, limitou-se a conservar o que estava feito.

Cinco dias durou a sessão cívica commemorando a regeneração de Kiato, Na ultima sessão estava reservada a Paterson uma surpreza.

Ao chegar á sua cadeira encontrou um livro grosso, nitidamente impresso, encadernado em couro, com o titulo «As festas do centenario» — livro a ser distribuido aos que tinham vindo á sessão e aos cidadãos de Kiato que não tinham comparecido.

Terminada a leitura da mensagem, Niel fixou a vista no auditorio e exclamou:

«Concidadãos, continuae a cumprir os vossos deveres, a respeitar os direitos dos vossos semelhantes e a paz reinará comvosco até a consumação dos seculos».

E após o conselho convidou os circumstantes a acompanharem-no a saudar os grandes bemfeilores do genero humano, perpetuados no bronze das estatuas nas praças da cidade.

O prestito partiu acompanhando o rei. Nunca uma procissão civica teve tão grande realce e maior valor.

Milhares de creaturas caminhavam em silencio, no maior recolhimento, tendo nalma a imagem querida da patria e em mente a homenagem que iam prestar aos maiores vultos da humanidade.

A primeira estatua em frente da qual pararam foi a de Jesus Christo.

O rei descobriu-se e ajoelhando-se disse:

— Descobri-vos e ajoelhae-vos deante do homem que pregou, ha seculos, a fraternidade humana.

Toda a multidão prostrou-se descoberta, ao mesmo tempo, como si fosse um só homem. Niel, ajoelhado, recitou o decalogo. Levantou-se depois e o cortejo seguiu.

Adeante paro o prestito deante da estatua de Pasteur. O rei descobriu-se e ajoelhou-se. A multidão imitou-o. Niel leu a inscripção do pedestal, ergueu-se e seguiu, acompanhado do prestito.

A terceira estação foi em frente á estatua de Pantaleão I. O neto descobriu-se, mas não se ajoelhou. De pé, leu a legenda do pedestal e seguiu.

Já no fim da cidade, parou o cortejo deante do vulto que a gratidão do kiatense havia perpetuado — William Jenner. Niel descobriu-se e leu o pensamento nacional sobre aquelle iluminado, eseripto na peanha de bronze.

Os focos electricos começavam a illuminar a cidade quando se dissolver a procissão.

Estava acabada a primeira festa verdadeiramente civica que a humanidade já havia feito desde que se civilisou.








(Concluido no dia 16 de Junho de 1920, no Alto da Bonança — Ceará).

Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.