O transatlantico em que aportára a Kiato já tinha reparadas as avarias e estava prompto a proseguir a viagem.
King, irresoluto, não sabia si partiria ou si ficaria concluindo o estudo d’aquella gente. Havia corrido toda a Europa, viajado pelas duas Americas, visto povos exquisitos, mas nenhum se assemelhava ao kiatense.
Na vespera da sahida do «The Queen», ainda indeciso, conversava pela manhã com Robert. Trocaram idéas e tiveram confidencias como ainda não haviam tido.
O hoteleiro estava lá havia quinze annos. O imprevisto tinha-o deixado entre aquelle grande povo. Viera a Kiato, num navio inglez, comprar porcelanas e sedas para revender em Londres. Hospedara-se naquelle mesmo hotel, então propriedade de um francez, Paul Bertin.
Dois dias depois, um marinheiro do navio em que viajava, veio a terra, embriagado. O castigo não não se fez esperar; preso e enviado para bordo, foi o navio intimado, por um dos vasos de guerra da marinha nacional, a suspender ferros e deixar immediatamente as agiras do Reino.
— Ignorei o incidente até a manhã do dia seguinte, quando o jornal noticiou o facto, porém sem commentarios — dizia o hoteleiro. Resignei-me, porém, a esperar um navio que me conduzisse á patria. E a convivencia com esta gente me affeiçoou a esta terra. Um acontecimento, tambem imprevisto, fez-me de vez ficar residindo aqui: a morte de Paul Bertin.
Nos primeiros tempos tive saudades de Londres, minha terra natal, dos amigos e dos poucos parentes que havia deixado, mas, a fortaleza desta gente, este meio são, parece que me tonificaram e impediram que fosse atacado pela nostalgia. Eu era novo, tinha quinze annos menos do que hoje.
Pensei em casar, unir-me a uma d’essas raparigas, cujo corpo é são, cujo espirito é forte, não combalido pela civilisação doentia das outras partes do mundo. Já tinha de olho uma rapariga, mas esta não me prestava attenção: passava despercebido aos seus olhos como si fosse um animal de outra especie... Acariciei tal idéa até o dia em que melhor conheci o codigo de Kiato.
Soube, nessa occasião, que, como medida prophylactica, era aqui prohibido o casamento com estrangeiros. Custára-lhes seculos de trabalhos o expurgarem-se d’aquellas hediondas taras, d’aquellas malditas diatheses, que, no transcorrer do tempo, vinham corrompendo gerações e gerações. E não haviam de permittir que voltassem a imperar, por via da união de organismos sãos a organismos portadores do mal.
— Tem razão, disse Paterson. Como se vive aqui, pouco mais ou menos sei; porém, como se morre?
— O kiatense não morre: acaba-se. A medai da vida é de cem annos. O organismo vai-se gastando paulatinamente, como as peças de uma machina, até que, de todo gasto, pára, deixa de funccionar; não, porém, por lhe faltar a força motora, o sopro vital, mas pelos orgãos que, de usados, já não podem funccionar. O kiatense tem uma idéa nitida e perfeita da morte. Considera-a um facto natural e necessario; porém a morte a termo. A vida, chegando ao seu limite, si possivel fôra prolongal-a, seria uma grande infelicidade. A senilidade, com a sua companheira demencia, é profundamente horrivel. Tanto tem de desnatural o homem morrer em plena mocidade, como de natural acabar-se quando o organismo se gastou percorrendo todo o cyclo da vida. Nos paizes de homens embrutecidos pelo alcool, apodrecidos pela syphilis, a morte é um phantasma horrivel, aterrador, porque precoce, e portanto desnatural. Não é mais do que um suicidio. Os obitos aqui são raros e o modo por que são feitos os enterros dá uma idéa perfeita do que esta gente pensa sobre homenagem aos mortos e o além tumulo.
Eu estava aqui, havia mezes, quando se deu o acabamento de um centenario. Passava o enterro: um coche funebre puxado por dois cavallos, sem crepe e sem pennachos, preto, completamente preto, sem um galão de prata ou ouro, sem uma corôa, seguido por um automovel com seis homens velhos, filhos e netos do morto, como depois soube. Estranhei que a força que movia o coche fosse animal e não electrica; soube mais tarde que esta excepção era prova de respeito aos mortos.
Tomei um auto e segui o enterro á distancia. O percurso até o cemiterio, fóra da cidade, fez-se sem attrahir a attenção do publico. Os transeuntes não paravam, nem tão pouco se descobriam. As janellas não se encheram de curiosos, de mulheres desoccupadas, que criticassem a pobreza do caixão ou elogiassem sua riqueza. Era aqui uma cousa naturalissima o homem acabar-se quando não podia mais viver pelo gastamento de seus orgãos.
No cemiterio, foi grande a minha admiração. A cidade dos mortos, dividida como a dos vivos em dois bairros: o antigo e o moderno. Naquelle, viam-se provas significativas da vida d’outros tempos: os grandes e opulentos mausoleos. A vaidade humana estava ali muito bem representada e muito bem vivida a illusão do orgulho, julgando perpetuar-se na memoria dos posteros, com aquelles epitaphios falsos, cada qual digno do respeito humano dos que os escreveram.
O bairro moderno era a synthese do sentir do povo regenerado. Um campo vasio de lousas e de cruzes. Todos eram eguaes. A terra faria, sem conhecer hierarchias, a resurreição da carne, não, porém, como a interpretam os livros santos.
Uma profunda cova foi aberta e o corpo desceu a occupar a sua quieta e derradeira morada. Extranhava que um povo tão adeantado não tivesse ainda adoptado a cremação. Mas, reflecti e achei razão.
O fogo não restituiria á Natureza os corpos simples sem a combinação de alguns; ao passo que os infinitamente pequenos fariam a putrefação completa e perfeita, a resurreição da carne, restituindo á Natureza elementos simples, que entrariam na formação de outros corpos vegetaes ou animaes, conservando assim a eternidade da materia.
Fez-se a inhumação e os parentes do morto ali presentes não derramaram uma lagrima, não tiveram um musculo no rosto que se crispasse de pezar. Chorar por que aquelle ser havia percorrido o cyclo de sua evolução na terra e agora entrava no grande nada de onde viera? Tinham todos as feições calmas, como espectadores de uma scena naturalissima. A imprensa noticiou a morte do centenario como si fosse a sahida de um navio, sem dar pezames á familia, nem fez necrologio... Achei exquisita essa falta de consideração aos que partem para o desconhecido. Acostumado, nos outros paizes, especialmente nos de origem latina, a ler na imprensa lamuriantes nenias, a descripção do enterro, a riqueza do caixão, o numero de corôas com as suas inscripções, cada qual mais fementida, o acto da inhumação, os discursos á beira da cova e por cumulo de reportagem o nome de todas as pessoas que acompanhavam o defuncto, aquella sobriedade de homenagens pareceu-me falta de respeito ao morto.
Julguei que o preito de saudade á memoria do extincto fosse prestado na visita de cova. Enganei-me. Em Kiato, todos os cultos eram permittidos, mas não havia fervor religioso em nenhum. O povo preoccupava-se apenas com a saude do corpo e a hygiene do espirito, cumprindo religiosamente o decalogo. A’s praticas religiosas eram indifferentes, tanto que os officios divinos eram poucos frequentados..
A visita de cova constou de uma missa rezada sem eça e sem encommendação. As eças que, no tempo da decadencia, haviam deslumbrado aquella sociedade corrompida, levando o exagero do luxo até na morte, haviam desapparecido por completo. Que usança ridicula a do catafalco erguido no centro do templo, encimado por um feretro de papelão, coberto de veludo e ouro, cercado de centenas de tochas que ardem, espalhando naquelle ambiente funebre um cheiro de morte, e de cera branca fumegando!...
William Robert, depois de ter dito ao patricio como era pago o direito á morte, passou a relatar como era pago o tributo á vida. O imposto em Kiato era taxado sobre a renda do capital, mas sem fisco. No fim do anno, cada cidadão, julgando-re devedor ao Estado, sommava o que havia rendido a sua industria, o seu capital e deduzia a importancia de vinte por cento para o erario pubiico. Do excedente, tirava ainda trinta por cento, que distribuia entre os que o haviam ajudado a ganhar aquella somma.
Nos primeiros dez dias de janeiro, todos os annos, as portas do Thesouro da Nação estavam abertas para receber o imposto. A Fazenda Publica não chamava por edital os contribuintes ao cumprimento do dever.
Todos sabiam que eram devedores e iam com a melhor vontade satisfazer seus compromissos. O erario publico, em vez de um sem numero de parasitas, tinha, apenas, dois empregados: um thezoureiro e um escripturario. O contribuinte apresentava ao escrevente uma guia, na qual declarava o rendimento que havia tido sua industria ou commercio, deduzida a porcentagem de 20 ojo que entregava ao Thezouro Nacional. O escripturario transcrevia a guia, e escrevia no verso — lançada — e o contribuinte, por sua vez, a levava ao thezoureiro. Este a recebia, como tambem o dinheiro, que recolhia ao cofre — de ferro no tempo da decadencia, inutil agora, pois o furto havia desapparecido.
O fisco existe somente nos paizes interiores — dizia Robert. E’ uma figura que se individualisa muito nas sociedades corrompidas. O fiscal das rendas publicas é quasi sempre um parasita do erario. Mal pago pelo governo, faminto, sem os meios necessarios para subsistir com a familia, fareja as porcentagens das multas, impondo-as sem criterio, como um animal esfomeado por um repasto. Sua fiscalisação não attinge aos grandes contrabandistas, aos furtadores do erario, porque estes são grandes senhores, que se banqueteam com os ministros...
Paterson ouvia maravilhado a narrativa. Sentia-se reviver. Aquelle ambiente, saturado de uma moral tão sã, o viver d’aquella gente, que havia realisado o ideal do homem — a paz do espirito ao lado da saude do corpo, a vida sem dores emfim — prendiam-no a Kiato.
Não foi a civilisação que corrompeu o homem, a sua vida em sociedade, mas os vicios que se desenvolveram com ella. E a prova estava na pureza de costumes daquella gente, duzentos annos depois de ter eliminado de seu seio o factor de todos os vícios e da miseria humana.
— Deixar Kiato — dizia Paterson a Robert — depois de ter vivido na mais liberal das republicas, onde o homem é feliz porque cumpre os seus deveres e respeita o direito dos outros homens, na terra em que o crime era o apanagio de seus habitantes e desappareceu por completo com a reforma radical de seus usos e costumes, deixar Kiato é-me impossivel. Como viver em outra qualquer parte do mundo? Os povos de outras latitudes têm a illusão de que são perfeitos, mas, comparados com este reino, são vis e miseraveis hottentotes.
E Paterson resolveu ficar em Kiato.
Esta obra entrou em domínio público no contexto da Lei 5988/1973, Art. 42, que esteve vigente até junho de 1998.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.