XXV

A mula sem cabeça


A mula sem cabeça!

Pedrinho estremeceu. Nenhum duende das florestas o apavorava mais que esse estranho e incompreensivel monstro, a mula sem cabeça que vomita fogo pelas ventas! Muitas historias a seu respeito tinha ouvido aos caboclos do sertão e aos negros velhos, embora dona Benta vivesse dizendo que tudo não passava de crendice.

A galopada aproximava-se; já se ouvia o estalar dos arbustos que em seu desenfreado galopar a mula sem cabeça vinha quebrando. Subito, parou.

— Vai mudar de rumo! murmurou o saci com cara mais alegre.

E de fato foi assim. A mula retomou a galopada mas em outra direção, e embora passasse por perto não chegou ao alcance dos olhos do menino.

— Que pena! exclamou ele. Tanta vontade que eu tinha de conhecer esse monstro...

— Que pena? repetiu o saci. Que felicidade, deve você dizer! A mula sem cabeça é o mais sinistro duende que ha no mundo; tem o dom de transtornar a razão de todos que a vêm. Por isso é que tive medo — não por mim, mas por você...

— Mas qual é a origem dessa mula?

— Uma historia muito velha. (Dizem que antigamente houve um rei cuja esposa tinha o misterioso habito de passear certas noites pelo cemiterio, não consentindo que ninguem a acompanhasse. O rei incomodou-se com isso e certa noite resolveu segui-la sem que ela o percebesse. E lá no cemiterio deu com uma coisa horrenda: a rainha estava comendo o cadaver de uma criança enterrada na vespera e que por suas proprias mãos, cheias de aneis, ela desenterrara! O rei deu um grito. Vendo-se pilhada, a rainha deu outro grito ainda maior — e imediatamente virou nessa mula sem cabeça, que desde aquele momento nunca mais parou de galopar pelo mundo, sempre vomitando fogo pelas ventas.

E foi assim que Pedrinho perdeu a unica oportunidade que teve de ficar conhecendo pessoalmente o estranho monstro que tanto impressiona a imaginação dos nossos sertanejos.

Ela corre sem cessar, espalhando a loucura por onde passa. Não existe criatura, seja bicho do mato ou gente, que não prefira ver o diabo em pessoa a ver a tal mula sem cabeça. E’ horrenda!

— Mas como será que vomita fogo pelas ventas, se as ventas estão na cabeça e ela não tem cabeça?

— Tambem não entendo; mas é assim, disse o saci.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.