XXXI

A Iára


VAMOS á cachoeira onde mora a Iára, disse. Essa rainha das aguas costuma aparecer sobre as pedras nas noites de lua. E’ muito possivel que possamos surpreende-la a pentear os seus lindos cabelos verdes com o pente de ouro que usa.

— Dizem que é criatura muito perigosa, murmurou Pedrinho.

— Perigosissima, declarou o saci. Todo o cuidado é pouco. A beleza da Iára dói tanto na vista dos homens que os céga e os arrasta para o fundo d’agua. A Iára tem a mesma beleza venenosa das sereias. Você vai fazer tudo direitinho como eu mandar. Do contrario, era uma vez o neto de dona Benta!...

Pedrinho prometeu obedecer-lhe cegamente.

Andaram, andaram, andaram. Por fim chegaram a uma grande cachoeira cujo ruido já vinham ouvindo de longe.

— E’ ali, disse o perneta apontando. E’ ali que ela costuma vir pentear-se ao luar. Mas você não pode ve-la. Tem de ficar bem quietinho, escondido aqui atrás desta pedra e sem licença de espiar a Iára. Se não fizer assim, ha de arrepender-se amargamente. O menos que poderá acontecer é ficar cégo.

Pedrinho prometeu, e de medo de não cumprir o prometido foi logo tapando os olhos com as mãos.

O saci partiu, saltando de pedra em pedra, para logo desaparecer por entre as moitas de samambaias e begonias silvestres.

Vendo-se só, Pedrinho arrependeu-se de haver prometido conservar-se de olhos fechados. Já tinha visto o Lobishomem, o Capora, o Curupira, a Cuca. Por que não havia de ver a Iára tambem? O que diziam do poder malefico dos seus encantos com certeza era exagero. Além disso, poderia usar um recurso: espiar com um olho só. Se ficasse cégo, ficaria cégo de um olho só. O gosto de contar a toda gente que tinha visto a famosa Iára valia bem um olho!

Assim pensado, e não podendo por mais tempo resistir á tentação, fez como o saci: foi pulando de pedra em pedra, seguindo o mesmo caminho por ele seguido.

Subito, estacou, como fulminado pelo raio. Ao saltar a uma pedra mais alta do que as outras, viu, a cincoenta metros de distancia, uma ninfa de deslumbrante beleza em repouso numa pedra verde de limo, a pentear com um pente de ouro os longos cabelos verdes côr do mar. Mirava-se no espelho das aguas, que naquele ponto formavam uma bacia de superficie parada. Em torno dela centenas de vagalumes descreviam circulos no ar, formando a corôa viva da rainha das aguas. Joia bela assim, pensou Pedrinho, nenhuma rainha da terra jamais possuiu. A tonteira que a vista da Iára causa nos mortais tomou conta dele. Esqueceu até do seu plano de olhar com um olho só. Olhava com os dois, arregaladissimos, e cem olhos que tivesse com todos os cem olharia.

Enquanto isso, ia o saci se aproximando da Mãe d’Agua, cautelosamente, com infinitos de astucia para que ela nada percebesse. Quando chegou a poucos metros de distancia, deu um pulo de gato e nhoc! furtou-lhe um fio de cabelo.

O susto da Iára foi grande. Desferiu um grito e precipitou-se nas aguas, desaparecendo.

O saci não esperou por mais. Com espantosa agilidade de macaco, aos pinotes, saltando as pedras de duas em duas, de tres em tres, num momento se achou no ponto onde Pedrinho, ainda no deslumbramento da beleza, jazia de olhos arregalados, imovel, feito uma estatua.

— Louco! exclamou o saci lançando-se a ele e esfregando-lhe nos olhos um punhado de folhas colhidas no momento. Não fosse o acaso ter posto aqui ao meu alcance esta planta maravilhosa e você estaria perdido para sempre. Louco, dez vezes louco, louquissimo, que você é, Pedrinho! Por que me desobedeceu?

— Não pude resistir, respondeu o menino logo que a fala lhe voltou. Era tão linda, tão linda, tão linda, que me considerei feliz de perder até os dois olhos em troca do encantamento de contempla-la por uns segundos.

— Pois saiba que cometeu uma grande falta. Não devia pensar unicamente em si, mas tambem na pobre dona Benta, que é tão boa, e na sua mãe e em Narizinho. Eu, apesar de um simples saci, tenho melhor cabeça do que você, pelo que estou vendo...

Aquelas palavras calaram no menino, que nada teve a dizer, achando que realmente o saci tinha toda a razão.

— Bem, continuou o duendezinho, agora que o perigo já passou, tratemos de voltar á caverna da Cuca. E depressa, antes que amanheça. Lembre-se que prometemos a dona Benta estar no sitio com a menina sumida logo ao romper da manhã.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.