XXXIII

Desencantamento



A madrugada já vinha rompendo quando os dois aventureiros chegaram de novo ao sitio. Dona Benta e tia Nastacia estavam ainda acordadas, porém mais calmas do que da primeira vez. Assim que os viram entrar, exclamaram ambas ao mesmo tempo:

— Trouxeram Narizinho?

— Sim, vóvó, respondeu Pedrinho sem ter a certeza de que ela se desencantaria ou não. Espere mais um minuto que vai ver de novo sua neta, forte e corada como sempre.

Disse e correu a ver se atrás do pote existia alguma flor azul.

Lá estava ela, a tal flor azul— exquisitissima e diferente de todas as flores conhecidas. O menino tomou-a, desfolhou-a e lançou-a ao vento, como a Cuca mandara.

Mal acabou de fazer isso, um fato maravilhoso se deu. Uma pedra do terreiro, que ninguem se lembrava de ter visto ali, principiou a inchar, a crescer e a tomar forma de gente. Segundos depois essa forma de gente começou a apresentar os traços de Narizinho, que, por fim, reapareceu tal qual era, forte e corada como Pedrinho o prometera a dona Benta.

Foi uma alegria. As duas velhas atiraram-se á menina e choraram quantas lagrimas ainda tinham dentro dos olhos — mas desta vez do mais puro contentamento.

— Então, minha filha, que foi que aconteceu? perguntou dona Benta.

Narizinho, ainda tonta, de pouco se recordava. Minutos após, entretanto, suas ideias principiaram a aclarar-se e pôde contar o que havia sucedido.

— Estou me lembrando, disse correndo a mão pela testa. Foi assim. Eu estava com Emilia debaixo da jaboticabeira. De repente, uma velha, muito velha e coróca, aproximou-se de mim com um sorriso muito feio na cara.

— “Que é que a senhora deseja?” perguntei-lhe naturalmente.

— “Desejo apenas oferecer á menina esta linda flor”, respondeu ela, apresentando-me uma flor azul muito exquisita. “Cheire; veja que maravilhoso perfume tem”.

Eu, sem desconfiar de coisa nenhuma, cheirei a tal flor — e imediatamente meu corpo principiou a endurecer. Perdi a fala; virei pedra. De nada mais me lembro senão que, de repente, fui revivendo outra vez e aqui estou...

Só então dona Benta compreendeu que Pedrinho a tinha enganado para evitar que ela morresse de dor — e perdoou-lhe aquela boa mentira. Depois fez-lhe grandes elogios, quando soube do muito que ele e o saci tiveram de lutar para que a horrenda Cuca desencantasse a menina.

— Vejo, Pedrinho, que você é um verdadeiro herói. Essa proeza que acaba de realizar até merece aparecer num livro como uma das mais notaveis que um menino da sua idade ainda praticou.

— Espere, vóvó, disse Pedrinho com modestia. Se a senhora emprega essas palavras para mim, que palavras empregará para o meu amigo saci? Na verdade foi ele quem fez tudo. Sem a sua astucia e conhecimento da vida misteriosa da floresta e dos habitos da Cuca, eu sozinho nada teria conseguido. Absolutamente nada. Agradeçam ao saci, que não faz senão dar o seu ao seu dono, como diz tia Nastacia.

Todos se voltaram para o saci. Mas...

— Que é do saci? exclamaram a um tempo. Procuraram-no por toda a parte, inutilmente. O heroico duendezinho duma perna só havia desaparecido...

— Que ingrato! exclamou Narizinho com tristeza. Foi-se embora sem nem ao menos despedir-se de mim...

De noite, porém, ao deitar-se, verificou que havia sido injusta. Em cima do travesseiro encontrou um raminho de miosotis, que não podia ter sido posto lá senão pelo saci. Miosotis em inglês é forget-me-not que significa “não-te-esqueças-de-mim”.

— Que alma poetica ele tem! murmurou a menina, comovida.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.