VI

A modorra



UM dia Pedrinho enganou dona Benta que ia visitar tio Barnabé, mas em vez disso tomou o rumo da mata virgem de seus sonhos. Nem o bodoque quis consigo. “Para que armas, se levo o saci na garrafa e ele é uma arma melhor do que quanto canhão ou metralhadora existe?”

Que beleza! Pedrinho nunca supôs que uma floresta virgem fosse tão imponente. Aquelas arvores enormes, velhissimas, barbadas de musgos e orquideas, com as raizes de fóra dando ideia de monstruosas sucuris; aqueles cipós torcidos de todos os jeitos, que passavam de uma arvore para outra como se fossem redes; aquela galharada, aquela folharada e sobretudo aquele ambiente de umidade e sombra, lhe causaram uma impressão que nunca mais se apagou.

Volta e meia ouvia um rumor estranho, de inambú ou jacú a esvoaçar por entre a folhagem, ou então de algum galho podre que tombava do alto e vinha num estardalhaço — brah, ah, ah... esborrachar-se no chão.

E quantas borboletas, das azues, como cauda de pavão; das cinzentas, como casca de pau; das amarelas, côr de gema de ovo!

E passaros! Ora um enorme tucano, de bico maior que o corpo e lindo papo amarelo. Ora um picapau, que interrompia o seu trabalho de bicar a madeira de uma arvore para atentar no menino com interrogativa curiosidade.

Até um bando de macaquinhos ele viu, pulando de galho em galho com incrivel agilidade e balançando-se, pendurados pela cauda, como pendulos de relogio.

Pedrinho foi caminhando pela mata adentro até alcançar um ponto onde havia uma agua muito limpida, que corria, cheia de barulhinhos mexeriqueiros, por entre velhas pedras verdes de limo. Em redor erguiam-se os esbeltos samambaiuçús, esses fetos enormes que parecem palmeiras. E quanta avenca de folhagem mimosa e quanto musgo pelo chão! Encantado com a beleza daquele sitio, o menino parou para descansar. Juntou um monte de folhas caidas; fez cama; deitou-se de barriga para o ar e mãos cruzadas na nuca. E ali ficou num enlevo que nunca sentira antes, pensando em mil coisas em que nunca pensara antes, seguindo o vôo silencioso das grandes borboletas azues e embalando-se com o chiar das cigarras.

De repente notou que o saci dentro da garrafa fazia gestos de quem quer dizer qualquer coisa.

Pedrinho não se admirou daquilo. Era tão natural que o capetinha afinal aparecesse...

— Que aconteceu que está assim inquieto, meu caro saci? perguntou-lhe em tom brincalhão.

— Aconteceu que este lugar é o mais perigoso da floresta, e que se a noite pilhar você aqui, era uma vez o neto de dona Benta...

Pedrinho sentiu um arrepio correr-lhe pelo fio da espinha.

— Por que? perguntou, olhando ressabiadamente para todos os lados.

— Porque é justamente aqui o coração da mata, ponto de reunião de sacis, lobishomens, bruxas, capora e até da mula sem cabeça. Sem meu socorro você estará perdido, porque não ha mais tempo de voltar para casa, nem você sabe o caminho. Mas o meu auxilio eu só o darei sob uma condição...

— Já sei, restituir a carapuça! adiantou Pedrinho.

— Isso mesmo, confirmou o capeta. Restituir-me a carapuça e com ela a liberdade. Aceita?

— Que remedio! respondeu Pedrinho.

Pedrinho sentia muito ver-se obrigado a perder um saci que tanto lhe custara a apanhar, mas como não tinha outro remedio senão ceder, jurou que o libertaria se o saci o livrasse dos perigos da noite e pela manhã o reconduzisse, são e salvo, á casa de dona Benta.

— Muito bem, disse o saci. Mas nesse caso você pode abrir a garrafa e me soltar. Terei assim mais facilidade de ação. Você jurou que me liberta; eu dou minha palavra de saci que mesmo solto o ajudarei em tudo. Depois o acompanharei até ao sitio para receber minha carapuça e despedir-me de Narizinho.

Pedrinho soltou o saci e durante o resto da aventura tratou-o mais como um velho camarada do que como um escravo. Assim que se viu fora da garrafa, o capeta pôs-se a dansar e a dar cabriolas, com tanto prazer que o menino ficou arrependido de por tantos dias ter conservado presa uma criaturinha tão irrequieta e amiga da liberdade.

— Vou revelar os segredos da mata virgem, disse-lhe o saci, e talvez seja você a primeira criatura humana a conhecer tais segredos. Para começar, temos de ir ao “sacizal” onde nasci, onde nasceram meus irmãos e onde todos os sacis se escondem durante o dia, enquanto o sol está de fora. O sol é o nosso maior inimigo. Seus raios espantam-nos para as tócas escuras. Somos filhos da noite e eternos namorados da lua.

E´ porisso que os poetas nos chamam de filhos das trevas. Sabe o que é trevas?

— Sei. O escuro, a escuridão.

— Pois é isso. Somos filhos das trevas, como os beija-flores, os sabiás e as abelhas são filhos do sol.

Assim falando, o saci levou o menino para uma cerrada moita de taquaruçús existente num dos pontos mais espessos da floresta.

Pedrinho assombrou-se diante das dimensões desses taquaruçús, de gomos quasi da sua altura e grossos que nem uma laranja de umbigo.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.