Na mesma sala em que Albuquerque e Maurícia tinham conferenciado sobre o grave assunto que vimos, foi introduzido, seriam noves horas da manhã, no dia da festa em honra de Eugênia, um homem que poderia ter quarenta anos de idade. Era alto, magro, pálido. Tinha a fisionomia desfigurada. Trajava de peto. Trazia os cabelos e a barba crescidos, a camisa enxovalhada.
— Queira ter a bondade de dizer o que o trouxe a esta casa, disse-lhe Albuquerque.
— Senhor, disse o sujeito, estava eu no leito de morte, quando um amigo, com o intento de reanimar-me, deu-me a ler uma carta em que uma pessoa desta cidade recomendava a outra, moradora na em que eu agonizava, que lhe desse informações minuciosas acerca do meu estado moral, sobre os meus meios de vida, etc.
— Estou falando com o Sr. Bezerra? - inquiriu Albuquerque.
— Sim, senhor; tornou o sujeito.
— Sente-se.
Depois de um minuto e silêncio, Bezerra prosseguiu:
— V.S. terá bem presente tudo o que disse nessa carta?
— Lembra-me por alto o que escrevi.
— Falo-lhe nestes termos porque eu a tenho de cor, o que não deve causar espanto, visto ser ela a minha salvação. Posso assegurar a V.S. que as suas letras me arrancaram das garras da morte.
— Eu tudo ignoro a seu respeito, porque a pessoa a quem pedi informações nenhuma me deu ainda.
— Essa pessoa julgou-se dispensada de o fazer, quando soube que eu vinha a Pernambuco. Procurou-me para me pedir que entregasse a V.S. a presente carta.
Assim falando Bezerra punha nas mãos de Albuquerque a carta a que se referira.
— É uma carta de apresentação.
Albuquerque, depois de lê-la, disse a Bezerra:
— Antes de passarmos adiante, julgo no meu dever declarar-lhe que nenhuma parte teve no passo que dei para obter as informações a seu respeito a Sra. D. Maurícia.
— Minha mulher... disse Bezerra.
— Andei nisso por exclusiva inspiração minha, e até a este momento ela tudo ignora a semelhante respeito.
A estas palavras, Bezerra tornou-se mais pálido do que era.
— Ah! disse. Eu cuidava que tudo se havia feito por indicação dela.
— Não, senhor.
— Sei, prosseguiu Bezerra, que minha mulher não encontrou em V.S. somente um cavalheiro, encontrou também um irmão.
— Não lhe tenho feito senão aquilo a que tem direito, pelas suas qualidades pessoais.
— V.S. diz a verdade nestas últimas palavras, minha mulher é uma adorável criatura; e só a cegueira em que vivi nos primeiros anos depois do meu casamento poderia dar origem a cenas fatais que hoje eu recordo com pejo. Mas, senhor, posso assegurar-lhe que a cegueira está agora de todo extinta; e que, ensinado pela experiência, castigado pela sorte, trago para minha mulher o primeiro dos meus afetos, e para a minha querida Virgínia todos os extremos de que é capaz o mais terno dos pais.
Albuquerque tinha os olhos fixos em Bezerra, que parecia exprimir-se não com os lábios, mas com a alma.
Bezerra não fora destituído de graça nas suas feições, de vivacidade no olhar. Conhecia-se pelas ruínas ainda notáveis destes dotes que eles tinham sido pingues. O senhor de engenho ouvia-o com toda atenção, e não sem prazer.
Bem depressa, Bezerra conheceu que da parte do seu interlocutor havia toda a benevolência para ele. Considerou, então, ganha a sua causa.
Continuou:
— Apanhei muito na cabeça, senhor, apanhei muito mesmo. Fui negociante, fazendeiro, advogado, jornalista. Tudo o que era meu se foi pela água abaixo; mas o meu primeiro tesouro, a minha única fortuna, que eu julgava para sempre perdido, a Deus aprouve que tivessem em V.S. um defensor, um protetor, um depositário venerável. Obrigado, senhor, brigado. Vendido e revendido eu não poderia pagar-lhe este serviço, esta honra, esta esmola, esta felicidade.
— Sr. Bezerra, atalhou Albuquerque, o senhor está laborando em verdadeira equivocação informando-me do estado da sua vida. Não foi meu intento chamá-lo a Pernambuco para restituir-lhe a família que o senhor deixou sair pela porta afora em pranto e desespero. Não tinha e não tenho autoridade para isso. Informei-me por mera curiosidade. Eu queria saber se a mulher que eu recebera no seio de minha família tinha razão de estar separada do marido, até certo ponto pareceu-me até dever meu ter disso conhecimento para minha direção. Se, pelas minhas informações, eu chegasse a convencer-me de que a Sra. D. Maurícia não era digna de viver à minha sombra, retirar-lhe-ia imediatamente toda a confiança, e sobre as suas costas fecharia para sempre as portas de minha casa. Felizmente, senhor, parece-me que não foi ela quem mais concorreu para a separação que lastimo.
— Toda a responsabilidade deste deplorável acontecimento me pertence. Minha mulher foi mártir das minhas loucuras. Quero pedir-lhe que me perdoe, e que venha d'ora em diante proporcionar-me a felicidade, a que eu não soube dar o devido valor.
— Neste particular, senhor, tudo correrá por sua conta.
— Mas V.S. há de auxiliar-me na extinção do escândalo e da desgraça que há três anos trazem apartados de mim dois entes que hoje constituem a minha única riqueza.
— Tenho os melhores desejos de que cessem este escândalo e desgraça; e prometo-lhe que tudo farei para que o senhor e ela voltem a viver em harmonia, respeitados e estimados dos homens de bem. Antes, porém, de chegarmos a qualquer resultado, exijo do senhor um serviço, a que me considero com direito.
— Tenha V.S. a bondade de declara que serviço é.
— Exijo que o Sr. Bezerra faça ver a sua mulher, em termos que metam fé, que a sua vinda a Pernambuco é o resultado de deliberação sua na qual não tive a menor parte. Há três anos que D. Maurícia vive em minha casa, em tão estreita cordialidade que só nos tem proporcionado horas de contentamento. Todos a têm aqui na maior conta. Eu voto-lhe particular estima, porque não vejo nela somente uma mulher de qualidades distintas, vejo principalmente a educadora carinhosa, a quem minha filha deve prendas de grande preço que constituem o melhor do seu dote. O senhor compreende que em condições tais muito desagradável me seria que, sem fundamento, aliás, tivesse sua mulher motivo para de qualquer modo atribuir-me neste negócio solução que não fosse de seu agrado.
— A minha defesa e a minha glória estão principalmente na espontaneidade com que resolvi procurá-la. Sem essa espontaneidade, nenhuma segurança daria eu de ser no futuro o reverso do que fui no passado.
Quando Bezerra soube que a mulher a e filha não estavam no engenho, grande foi a sua contrariedade. Compreende-se que ele tivesse pressa em ver decidida tão importante questão.
Bezerra dissera, não a verdade inteira, mas só meia verdade a Albuquerque relativamente às diferentes fases de sua vida. Ele, no Pará, fora quase tudo o que pode ser um homem que se deixa resvalar no plano escorregadio do desmando, principiando o escorrego pelo lar doméstico. Vendera tudo o que lhe restava dos poucos bens que a mulher lhe levara em dote, para consumir seu valor na dissipação, no jogo, na malandragem. Tivera várias aventuras, e por uma delas chegara a ir à prisão pública. Quando ficou livre, meteu-se a rábula. Ele não era inteiramente inábil, e porque as necessidades urgiam, chegou, pelo esforço, fazer aquisição dos conhecimentos que no foro se exigem. Por algum tempo se manteve nesta carreira; mas tendo-se sumido dos autos de uma questão importante o documento em que a parte contrária fundava o seu direito, jurou ela vingar-se extrajudicialmente. De feito, uma noite em que Bezerra, ao lado de uma das últimas companheiras lia uma novela, quatro sujeitos mascarados tomaram-lhe as portas da entrada e saída, e dentro de sua própria casa deram-lhe tamanha surra que por morto o deixaram. A companheira desamparou-o nesta hora de suprema agonia, e se não fosse um caridoso vizinho, que dele se condoeu, não sairia da cama senão para a sepultura. Estava ele neste estado, quando a carta de Albuquerque chegou ao Pará. A pessoa mostra-lha; ele cria alma nova. Lembra-se da mulher e da filha, e em voltar à vida conjugal, por tanto tempo desamparada, julga estar a sua salvação; considera-se arrependido; pede a Deus que lhe conserve a vida para que ele tenha, ao menos, ensejo de dar até aos fins dela prova pública de sua emenda. Seus desejos foram cumpridos.
Mas era tamanho o empenho em ver Maurícia, que não se resignou a esperar que ela voltasse a Caxangá. Tendo ficado de voltar no dia seguinte, depois de jantar no Engenho, regressa a Recife e encaminha-se para a casa de Martins.
Entretanto, Albuquerque dava-se os parabéns do desfecho feliz que o triste drama parecia ter.
Ficara toda a tarde no aterrado do engenho com sua mulher. Alice tinha ido passar o domingo em casa de uma parenta; e como se a sorte julgasse necessário todo o tempo a Albuquerque para refletir sobre a nova situação que se desenhava a seus olhos, nesse dia não apareceu nenhum dos habituais freqüentadores da casa.
— Eles ficarão aqui ao pé de nós - dizia Albuquerque a D. Carolina, referindo-se a Bezerra e Maurícia. A casa onde faleceu minha irmã será para eles. É uma boa casa, em que poderão morar o tempo que lhes parecer. Como não tem esse homem nenhum meio de vida por ora, verei o que se há de fazer para que fique arranjado. Se proceder bem, como espero, Paulo casar-se-á, e restar-me-á o prazer de ter chamado ao bom caminho um casal que andava desnorteado, e de ter realizado a felicidade do meu filho.
D. Carolina, depois de algumas reflexões, ou objeções, que Albuquerque destruiu, achou tudo o mais muito bom, e já desejava que todo esse castelo fosse levado a efeito quando uma carruagem do engenho, que voltava, trouxe Maurícia e Virgínia.
Albuquerque e D. Carolina foram ao encontro das duas senhoras.
Pegando da mão de Maurícia, o senhor do engenho, com o sorriso nos lábios, disse-lhe:
— Tenho uma feliz nova que lhe comunicar, D. Maurícia.
— Uma feliz nova! Eu também tenho uma novidade que lhe referir. Mas esta, Sr. Albuquerque, é triste: É a minha desgraça.
Então Maurícia deu alguns passos para D. Carolina.
— Ah! minha boa amiga. A minha tranqüilidade, o meu sossego, acabaram. Foram-se os dia felizes. Ai de mim!
Assim falando, Maurícia lançou-se nos braços da senhora do engenho, e umedeceu-lhe o seio com lágrimas.