Não quis Albuquerque que Virgínia saísse da casa-grande, depois de casada, não obstante chegar para duas famílias a casa que ele mandara preparar para os pais da menina. Muitas razões dava, quando queria justificar a resolução de ficar com os noivos em sua companhia; as más línguas, porém, diziam que a predominante, que ele ocultava sempre, era a de não lhe inspirar confiança a harmonia dos esposos reconciliados.
Não quis igualmente que a mudança de Maurícia com o marido para a nova habitação se realizasse, senão na mesma noite do casamento da filha. De feito, quando o último convidado se despediu, Maurícia abraçou Virgínia, abraçou Paulo e tomou o caminho da porta. Tinha nos olhos lágrimas nitentes. Bezerra deu-lhe o braço que ela aceitou sem hesitar. Depois de três anos, era aquela a primeira vez que estes corpos se tocavam.
Ao passar pela senzala dos pretos, um deles disse:
— Sinhá Maurícia também teve hoje o seu noivado.
Maurícia viu neste pensamento um epigrama que lhe dirigira a fatalidade.
Em silêncio, atravessaram o pátio do engenho e entraram na habitação, que lhes estava destinada. Ficava distante obra de cem passos da casa-grande. Para que oferecesse cômodos bastantes, mandara Albuquerque que se aumentassem quartos e salas. Noivos amorosos e felizes tinham achado ali modesto e perfumado ninho, onde aqueciam os seus anelos. Os novos habitadores, porém, estavam longe de achar na convivência mútua o contentamento que só o amor verdadeiro proporciona.
Duas conveniências os tinham levado a ajuntar-se novamente: Maurícia sacrificava-se pela filha; Bezerra, o que queria era um meio de vida e as perspectiva de um futuro melhor. Ao princípio, chegara a acreditar na possibilidade despertar no coração da mulher a afeição que, verdadeiramente falando, aí nunca existira. Mas as freqüentes recusas, objeções e lágrimas de Maurícia convenceram-no de que, se a primeira parte de sua esperança não estava longe de realizar-se, a última era de todo o ponto irrealizável. Esta convicção trouxe-lhe certo descontentamento, mas não o levou a considerar-se de todo infeliz. Tal momento houve em que pensou conseguir para o tempo adiante o que atualmente lhe parecia de difícil aquisição, a saber, a graça da mulher. Eram estas as idéias em que se deixava absorver, quando achou no caminho a carta escrita por Ângelo. Houve, então, uma revolução em seu interior, que ocasionou notável mudança no que ele trazia assentado no raciocínio. Nesse documento, viu não só a prova de um crime dela, mas, também, o testemunho irrefragável da desgraça dele. Teve ímpeto de meter uma bala na cabeça do homem, que armava ciladas à sua honra, e um punhal no coração da mulher que a não sabia guardar devidamente. O primeiro impulso foi considerar o dito por não dito, o feito por não feito, desaparecer dos olhos de Albuquerque e tratar de sua vingança, exclusivamente.
Pensava em tudo isto ao entrar na casa-grande. Deparando-se-lhe com Virgínia, que o fora receber com afabilidade carinhosa, sentiu-se mais fraco ainda de que estava. Havia de dar um passo que redundasse na desgraça de sua filha? - "Não!" - tal foi a resposta que encontrou em si mesmo como revelação do sentimento que atualmente predominava em seu coração.
A primeira demonstração de Bezerra para sua mulher tanto que se viu a sós com ela, não foi de amor, mas de rigor. Maurícia, entretanto, nunca se mostrara tão formosa, posto que a tristeza íntima a devesse trazer abatida no exterior. Quando ela fugira da companhia do marido, estava magra, angulosa e feia.
Mas não foi o mesmo esqueleto, a mesma múmia egípcia o que ele veio achar em Pernambuco; foi sim, uma beleza adorável, que, pelo completo desenvolvimento, parecia ter tocado a meta das proporções que devem ter, no ponto mas elevado das suas graças, as belezas plásticas. Naquela noite trazia ela vestido de escumilha azul cor de céu, apanhado de arregaços das cavas para as ombreiras com tranças e brilhantinas.
— Não sei se sabe - disse-lhe ele, pegando-lhe da mão com certas mostras de autoridade ameaçadora, não sei se sabe que tenho em meu poder um terrível documento contra a senhora.
Maurícia, julgando reconhecer no semblante do marido, até àquela hora risonho, a expressão de arrogância, que lhe era habitual nos tempos em que vivera com ela, sentiu coar-lhe pelos membros o frio da morte.
— Contra mim o senhor não pode ter nenhum documento, nenhuma prova que mereça fé.
— Talvez não houvesse chegado às suas mãos o que eu tenho nas minhas; mas que ele faz grande prova contra a senhora, não há que duvidá-lo.
— Sei que alude a uma carta. Eu a tive em minhas mãos, mas a não cheguei a abrir. Joguei-a fora, sem a ler. A sua asseveração é, portanto, inexata.
— A senhora tem um apaixonado. Tratava de fugir com ele, e se o não fez, não foi porque lhe repugnasse esse passo, mas porque talvez compreendesse quanto ele era falso e perigoso.
— O homem que escreveu tal carta poderá amar-me, mas não é nada meu. Vi-o uma vez em casa e meu cunhado, e outra na povoação. E que culpa tenho eu de que ele escrevesse essa carta? Que mulher pode estar livre de que alguém lhe escreva? Mas o que me espanta em suas palavras é que o senhor as tenha tão cruas e desamorosas para mim depois de três anos de separação, depois de mil esforços empregados ultimamente para que tal separação cessasse.
Dizendo estas palavras, Maurícia soluçava.
— Espanta-se de que eu procure tomar-lhe contas? Não terei este direito? Não me pertence fazer uma interrogação ao passado? Vindo novamente para minha companhia, julgaria a senhora que continuava sem um juiz para os seus atos?
— O que eu julguei, acedendo aos votos da minha filha, por bem da sua felicidade, foi coisa diferente, e sempre o disse, porque nunca, depois de separada do senhor, me iludi jamais acerca dos seus sentimentos; o que eu suspeitava encontrar no senhor, vim encontrar por desgraça minha. Eu quisera ter diante de mim o juiz, severo embora; o que tenho é o mesmo inimigo, o mesmo carrasco dos meus primeiros anos de casada.
Maurícia quis levantar-se, mas Bezerra por um gesto de violência a reteve na cadeira que ela ocupava ao lado dele.
— É cedo ainda para se levantar, Maurícia - disse-lhe. Tenho algumas palavras que lhe dizer. É minha vontade que a senhora nunca mais veja esse homem.
— Quer, então, que eu não ponha mais os pés em casa de minha irmã?
— Quero-o, se for isto necessário para que a minha vontade se cumpra.
— Pois eu o farei. Hei de levar ao fim sem pesar o meu sacrifício.
— Não sou tão mau, como já fui - tornou Bezerra, tirando de um dos bolsos da calças um papel dobrado. Olhe. Aqui está a carta que lhe foi dirigida. Vou queimá-la para lhe ser agradável. Isto quer dizer que aceito sua justificação. Certo, nenhuma mulher está isenta de que algum insolente lhe dirija epístolas desonestas. Dou pela sua defesa. É um indulto que lhe quero conceder no meu segundo noivado.
Bezerra chegou a carta à vela que ardia dentro de um candelabro sobre a mesa no meio da sala e atirou-a inflamada no chão.
— Havia nesse papel palavras tão infames que nunca a senhora as devera saber; tão infames são elas que, se outrem as pudesse vir a ler, talvez fosse isso motivo para que eu me atirasse no caminho do crime, a fim de desafrontar-me. Façamos agora as pazes. Maurícia.
Bezerra conchegou a mulher com ambos os braços ao seu peito, e deu-lhe um beijo na boca. Quando retirou os lábios, trazia-os úmidos de lágrimas da infeliz.
Dentro de pouco mais de um mês, começou Maurícia a notar a frieza do marido, acompanhada de circunstância que parecia terem com ela a maior ligação. A filha de Januária. que quase nunca passara além da meia-água, atravessava agora o restante do pátio do engenho várias vezes, durante a semana e passava pela porta da casa, onde ela morava. Um dia, chegou a perguntar a um moleque do serviço doméstico, se Bezerra estava em casa. Mais de uma vez, saindo mais cedo do que costumava para ir tomar a lição de Alice, não encontrou Maurícia na casa-grande o marido, que para aí lhe dissera ir. Maurícia não deu mostras e ciúme, e não o sentia. Não se casara como Bezerra por amor, mas por fazer as vontades dos pais. Tinha, então, Bezerra catorze anos menos; dispunha de meios que lhe permitiam aparecer com mais decência na sociedade; não trazia consigo um passado odioso. Mas, não obstante reunir semelhantes condições favoráveis, não lhe havia inspirado afeto especial; tinha para ele olhos simplesmente benévolos, palavras corteses e respeitosas. Agora, as circunstâncias o favoreciam ainda menos. Estava pobre, alquebrado e carregava ás costas um saco de mazelas. Procurava de novo a sua companhia para ter segura a vida que era sumamente custosa de manter. Quase dependia dela. Perdera grandes partes da antiga arrogância e cultivava a conveniência. Era um homem de corpo aberto. Mas não obstante, mostrava-se magoada, e uma vez chegou a revelar-lhe a cena que um mês antes o tinha visto representar com a mestiça entre a meia-água e a porteira. Bezerra deu pouca importância, ou nenhuma, aos ressentimentos da mulher, e não alterou o seu hábito de fazer ausência de noite e de dia.
Por esse tempo, adoecendo a escrava que Albuquerque encarregara do serviço em casa de Bezerra, veio preencher-lhe a falta uma crioula nova, por nome de Brígida, que D. Carolina tinha em grande estimação. Com esta rapariga, entraram na casa novos desgostos para Maurícia. Bezerra dirigia-lhe gracejos a furto, e lançava-lhe olhares de ternura ignóbil. Um tarde, em que Maurícia voltara mais cedo do engenho, surpreendeu o marido em prática familiar com a cativa. Deu-se por ofendida, e as lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Teve ímpetos de ir imediatamente contar à D. Carolina o que vira; mas a vergonha de revelar a vileza reteve-a silenciosa. Ela, porém, não pode acabar consigo que não desse grande demonstração da sua profunda mágoa àquele que era desta causador.
— Senhor - disse - daquela porta para fora, poderemos continuar a ser dois consortes que, depois de várias e cruéis vicissitudes, convieram em encurtar a distância que os trazia afastados, e emendar o roto laço do combatido afeto, mas, das portas adentro, espero que estejamos de hoje em diante tão distantes como se entre nós se interpusessem, como já se interpuseram, dezenas de léguas de oceano.
Bezerra teve para esse assomo de justo e elevado agravo risos mofadores. Saiu e voltou tarde. A porta da alcova estava trancada por dentro. Bezerra ficou alguns momentos em pé junto dessa porta, que o ameaçava com ares de sentença de desquite.
— Eu podia por no chão esta porta e entrar; mas era dar muita importância ao que merece pouca.
Encaminhou-se para o gabinete fronteiro, onde havia uma cama de solteiro, algumas cadeiras, uma mesa e um toucador.
Ao lado da cama, viu os baús que mandara conduzir do Recife no dia da sua mudança para o engenho. Dos ganchos de um cabide de faia, pendiam os seus paletós e calças. Aos pés da cama, estava o seu par de chinelas.
— É um mandado de despejo. Por tão pouco!...
Maurícia praticara este ato de energia não tanto por ciúme, como por ferida em seus melindres; e estava no ânimo de não retroceder, ainda diante das mais graves conseqüências.
— Depois disto - dissera ela - só se deve seguir ou a completa emenda dele, ou a saída de um de nós dois.
Bezerra, que, ao princípio, tomara esta resolução em ar de mofa, caindo em si depois, julgou-se na obrigação de refletir mais maduramente. Tinham mudado muito as suas condições. No Pará, três anos antes, as coisas eram outras, e ainda assim Maurícia triunfara da sua tirania, quanto mais em Pernambuco, estando ela no seio de uma família respeitável, que da sua honra e discrição tinham o melhor documento em vê-la praticar o sacrifício de voltar à companhia dele. Outras considerações de não inferior tomo lhe ocorreram. Se, por qualquer modo, viesse a desgostar Albuquerque, de que iria viver? No engenho estava incumbido de fazer a escrituração relativa à venda dos açucares, do mel, da aguardente e dos demais produtos da grande propriedade. Por este trabalho, que Paulo costumava fazer aos domingos, arbitrara-lhe Albuquerque módico vencimento; mas lhe dava de graça casa para morar, carne e farinha para a mesa, escravos para o servirem. Se lhe faltassem tudo isto, de repente, a que ficaria reduzido? A não ter um lugar onde cair morto. Faltava-lhe coragem para tentar novos meios de vida. O cabelo, que começava a alvejar-lhe a testa que mostrava cortada de grandes rugas; os olhos fundos, as faces murchas indicavam que as forças começavam a desampará-lo.
Da sua cogitação veio tirá-lo o relógio que do alto, entre as duas janelas, parecia fitá-lo impassível como a fatalidade. Foram doze pancadas que deu.
Ele então levantou-se da cama, onde estivera a pensar, e encaminhando-se para a alcova, disse:
— Façamos as pazes, ainda que para isso seja preciso pedir mil perdões.
Bateu na porta devagarinho, depois mais fortemente, chamando por Maurícia, que não lhe deu uma só palavra em resposta. Esteve alguns instantes de pé, a olhar para dentro através da fechadura. De uma das vezes, abalou a porta com toda força, quase deliberado a dar com ela em terra por maior que fosse o ruído que produzisse tal violência; mas julgou prudente variar de conselho, ouvindo ruído de vozes da banda de fora; dois negros do engenho tinham-se sentado no batente da casa, e aí conversavam em sua algaravia ininteligível. Ocorreu-lhe, então, escalar a parede, e este pensamento veio seguido de outro. Ainda estava encostada ao pé da parede do oitão da casa uma escada do engenho, de que se tinham servido os pedreiros por ocasião das novas obras. Bezerra tomou pela porta que ia dar no interior, e voltou pouco depois com a escada que colocou de manso na parede. Subiu. Entre a parede e a telha vã, havia o espaço da altura de um homem; fácil, portanto, se afigurou a Bezerra a sua descida para dentro do quarto com o auxílio do mesmo instrumento por onde subira. Maurícia dormia. A vela de uma manga de vidro, colocada sobre uma mesa do lado da cabeceira, tinha chegado ao papel que lhe servia de calço, e ardendo com ele derramava no âmbito do aposento clarão amarelado, que trazia à imaginação o começo de um incêndio.
Bezerra, equilibrando-se conforme pode, pegou da escada e levantou-a; mas quando já a travessava sobre o frechal, que corria ao longo d parede, ela, escorregando, caiu quase para o lado da sala e ele para não cair teve de a soltar.
Despertada pelo estrondo, Maurícia sentou-se trêmula, atemorizada, e dando com os olhos no marido, tudo compreendeu.
— Ainda me persegue? - disse saltando envolta na longa colcha.
— Maurícia, por que foge de mim? - perguntou Bezerra.
Maurícia tinha de feito corrido à porta do aposento e desdado à volta da chave. Bezerra viu-a dirigir-se ao quarto, onde ele estivera e trancar-se outra vez pior dentro.
— Hei de vencê-la, hei de vencê-la, hoje mesmo - disse ele.
Mas como havia de descer? Faltava-lhe ânimo para saltar. A parede tinha talvez cinco metros de alto. Era uma altura suficiente para guardar uma mulher, mas excessiva para a descida de um homem sem outro auxílio que as mãos e os pés. E contudo urgia descer. Na sala de visitas e no aposento onde Maurícia se refugiara estava tudo às escuras. dentro em pouco tempo, na alcova, fariam invasão as trevas. Não deixava de ser em certo modo aflitivo o momento.
Quase desesperado, Bezerra, calculando que poderia ser vítima de risos mofadores, decidiu-se a saltar, deliberado a deitar por terra a porta que se interpunha entre ele e a mulher. Pôs as mãos sobre o frechal, onde tinha os pés, e com as pontas destes tentou descer ao longo da parede. Mas depressa as mãos fugiram do alto, e ele julgou que ia quebrar-se de encontro ao ladrilho da sala. Quando já se considerava vítima do desastre, sentiu-se com surpresa cair entre uns braços robustos, que o apararam com firmeza descomunal.
Então, ainda aturdido, ouviu à meia voz estas palavras:
— O Sr. queria morrer? Se não fosse eu, podia estar quebrado.
— Brígida! - exclamou Bezerra, sentindo-se apertado ente os braços e os seios resistentes da negrota.
Não tinha dormido ainda, e, sabendo o que se passara entre Maurícia e Bezerra, quase previra o que acabara de dar-se. Vendo-o entrar com a escada fora de horas. viera pé ante pé, e colocara-se à porta da sala de visitas, que abria a comunicação para o corredor. Dali, testemunhara a ascensão de Bezerra, a saída violenta de Maurícia e os embaraços dele para descer. Enfim, vendo-o tentar a descida, correra a tempo de o aparar entre os braços.
— Estava aqui há muito tempo? - perguntou-lhe Bezerra;
— Eu vi tudo - respondeu Brígida. O que admiro é a pachorra de vosmecê. Tanta mulher que há no mundo.
— É verdade - retorquiu Bezerra.
E em vez de atirar-se contra a porta fronteira, entrou na alcova, onde a vela agonizante despediu o último clarão e apagou-se.